A classe trabalhadora volta do paraíso


                                                         
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 Henrique Costa (*)

“O pobre é que sofre”, diz Maria Angélica Lima, a babá envolvida na polêmica foto em que empurrava o carrinho de bebês, vestida de branco, com os filhos dos patrões que se postavam à frente de verde e amarelo. Moradora de Nova Iguaçu ela conta que “o preço da comida aumentou muito. Íamos reformar a casa, mas não vai dar”. A solução, para ela, não passa por tirar a presidente Dilma Rousseff do cargo. Também não acredita em Michel Temer. Votou duas vezes em Aécio Neves (PSDB) em 2014, diz, e também admira a figura do juiz Sérgio Moro. “A solução do Brasil começa por mudar o Congresso todo”.

Há os que dão valor desmedido à economia, e há os que acreditam que ela é uma dimensão produzida pelo acaso – ou pela política – e, portanto, que a poupança do trabalhador e bilhões em investimentos produtivo ou especulativo são forjados em uma animosidade pessoal entre Dilma e Eduardo Cunha, no ego de Temer ou no recalque de Aécio. Quando a política começa a se transformar em transtorno para a reprodução do capital e seus donos trabalham para se livrar do problema, vê-se claramente a face oculta da racionalidade neoliberal que atravessa os governos contemporâneos.

Por exemplo, a intervenção providenciada pela banca europeia na Itália em 2011, quando o economista Mario Monti foi implantado no cargo de primeiro-ministro em despudorado desapego pela democracia, mostra que a política e os jogos de cena envolvidos são tolerados quando não atrapalham. Dilma e Berlusconi representam diferentes formas de gestão social e econômica mal sucedidas. Garantiam por algum tempo, contudo, que os diferentes graus de barbárie criassem condições necessárias para lucros e dividendos – no caso da brasileira, como ressaca do lulismo.

O freio de arrumação da recessão atual já estava em curso e agora parece caminho sem volta. Já havia comentado em artigo anterior como as forças sobretudo econômicas já se movimentavam nesse sentido, apesar de ainda haver grandes dúvidas quanto à escolha do novo gerente do neoliberalismo à brasileira. Fato é que, apesar do avanço em direção ao impeachment de Dilma, ainda remanesce entre os donos do dinheiro grosso a insegurança com a sucessão quando mesmo analistas conservadores duvidam da legitimidade e da capacidade gerencial dos principais pretendentes ao cargo.

Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central de FHC e um dos porta-vozes do establishment, reafirmou recentemente que se não houver uma mudança tanto do governo quanto da economia o Brasil terá um cenário de “perda de emprego e renda como nunca se viu”. Diz ele que a “maior vítima é o povo, que acreditou que esse modelo daria certo, se endividou e agora, como sempre, paga o preço”. Sem contar a evidente hipocrisia, diz o óbvio.

Terra em transe

Indicadores socioeconômicos mostram que não só a promessa lulista não se realizou no longo prazo como dá mostras de que o retorno do recalcado virá junto da debacle econômica. A taxa de desemprego no trimestre encerrado em janeiro chegou a 9,5%, salto de 2,7% em um ano. São quase 3 milhões de pessoas a mais no olho da rua. Em 2015, a renda do trabalho despencou 3,2%, já descontada a inflação. Como resultado, já é oficial a reversão da desconcentração de renda no Brasil dos últimos anos.


Enquanto isso, os principais partidos, inclusive o atual ocupante da cadeira, se engalfinham sobre a grande questão política e filosófica de nossos tempos de reestruturação produtiva e financeirização da vida: quem gere melhor e quem rouba menos (ou quem rouba com melhores intenções ou aceita doações de empreiteiras legalmente). Nesse intervalo a esquerda contemporânea hegemônica se preocupa em proteger pessoas e frear tragédias em curso com seus programas sociais: no caso do Brasil e do PT, trata-se de dar algum destino à enorme massa de trabalhadores precarizados do país antes que imploda pela desigualdade estrutural e pela humilhação que ela proporciona.

Neste momento infame, o precariado brasileiro, na definição de Ruy Braga, acorda do transe da ascensão social notando em tempo relativamente curto que pior que a longa escalada, a queda é rápida e sem corda de arrimo, comprovando quem o fim da contenção da crise profunda jogaria primeiro ao mar.

Ninguém parece querer saber, contudo, qual é a dessa turma. Segundo um petista, “a periferia está com Lula”, sugerindo que esta é uma condição imutável. Sem dúvida que uma parte dela ainda tem o ex-presidente em alta conta. Contudo, as pesquisas não são tão otimistas e, se não há panelaços nos bairros da periferia, tampouco elas têm se manifestado em defesa do projeto lulista. De junho de 2013 até aqui, esperava-se que a popularidade na lona do PT e de Dilma fosse revertida pela reação do precariado, mas isso não aconteceu.

Um dos motivos é que a despeito de uma recuperação sensível das condições materiais e da abertura do crédito para uma massa antes excluída dele, a década lulista foi marcada por uma hiperexploração do trabalho que só não se compara a países como a China. Na medida em que 80% da queda da desigualdade nesses anos são atribuídos à renda do trabalho, que empregou tanto enquanto esfolava a população, o tombo econômico atual continua explorando, mas já não remunera como antes, e ainda pior.

Estudo apresentado em setembro do último ano pelo Ministério da Fazenda mostra que profissionais que participaram do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) não têm mais vantagem em retornar ao mercado de trabalho formal do que aqueles que não chegaram a fazer um curso pelo programa. Os cortes no Fies já foram exaustivamente comentados e seguem impondo aflições aos jovens oprimidos pela necessidade de se manterem em condições competitivas em um mercado de trabalho cada vez mais implacável.

Pacto conservador

Se o jogo no andar de cima se joga pela ideologia do dinheiro (em que todos vêm deixando de ganhar depois de uma década de prosperidade), entre os mais pobres André Singer já havia decifrado seus códigos ainda nos idos de 1989: os que votavam em Fernando Collor o faziam contra o radicalismo de Lula. Queriam mudanças, Estado, desenvolvimento, e queriam dentro da ordem.

Foi exatamente essa fatia da população que ficou ao lado de Lula em 2006, segundo o cientista político, beneficiada por ganhos materiais precipitados pelo pacto conservador lulista. Tinham, nos estertores da ditadura, valores conservadores (favoráveis a soluções militares, rejeição às greves etc.) e nada indica que isso tenha mudado, pelo contrário. O neopentecostalismo a empurrar cada vez mais gente para as câmaras e assembleias legislativas não deixa mentir.

O lulismo é, além de um pacto conservador, uma maneira racional de se gerir recursos humanos, e seus programas sociais são bem-sucedidos planos de gestão da barbárie da hiperexploração neoliberal. A barafunda é que a afirmação do dinheiro enquanto canal de acesso à cidadania e a serviços privados em detrimento do público, por sua vez, retorna em furiosa espiral contra seus idealizadores, pois o teto da ascensão social por esta via foi finalmente alcançado pelo precariado. Deu no que deu.

Cidadania regulada

É preciso refletir sobre o que significa a tal “defesa da democracia” que tem comovido militantes e simpatizantes do PT, cujo ato do dia 18 de março foi demonstração inconteste. Efetivamente, o que significa defender o Estado democrático de direito em um país que, além da hiperexploração patrocinada, encarcera 217 mil pessoas sem julgamento, promove com frequência espantosa chacinas como as de Osasco e Cabula, que assassina quase 60 mil pessoas em um ano?

Significa defender um sistema em que se vota a cada quatro anos e que, no meio dessa democracia de baixa intensidade, “respeita-se o resultado das urnas”. Nem importa muito também que o sistema eleja à esquerda e à direita os candidatos financiados pelo andar de cima, desde que “sejam doações legais”, como agora suplicam mais de 300 políticos anabolizados pela Odebrecht, nem que se faça um “varejão” de cargos de primeiro e segundo escalão para manter o atual condomínio de poder de pé dando a Fundação Nacional de Saúde para o PTN.

Que o digam os 170 mil funcionários demitidos pela Petrobras no último ano, resultado do cofre da estatal arrombado por gente indicada ou abençoada pelo lulismo. Selvageria fisiológica no Congresso combinada com rios de dinheiro podre vitaminando essa democracia aleijada é o que cabe agora ao petismo defender.

Pois bem, está o precariado novamente silencioso, enquanto a esquerda petista faz atos de inspiração messiânica em Tucas e Sanfrans para regozijo democrático narcísico, sem contar as toneladas de posts e as lamúrias indecifráveis na rede social. Ninguém se arrisca a sair da zona de conforto. Por dois motivos: o primeiro, mais intuitivo, é o medo do desconhecido. O segundo motivo é a própria esquerda. Cabe a ela hoje defender esse sistema, que funcionou razoavelmente bem durante a conciliação pós-ditadura e que se deixou desvelar em junho de 2013. É justo, na medida em que o petismo ajudou a forjá-lo junto dos mesmos que estão sendo rechaçados à sua direita.

Desinvestindo na política

No caso da esquerda petista, não se trata simplesmente de uma “perda de discurso”. Veja-se a defesa do fim do financiamento privado, por exemplo. Há alguns meses, Rui Falcão afirmou que o partido não mais receberia dinheiro de empresas. Quando a realidade atropelou a demagogia e o partido não apenas enterrou a proposta como atuou para garantir que o governo aprovasse um fundo partidário três vezes maior que a proposta original, o discurso mudou para se realinhar novamente à necessidade de pagar as contas.

O problema central da narrativa é que a tese de que o avanço conservador (e o “refluxo” dos movimentos sociais antes dele) exige que a esquerda se apegue às conquistas da Constituição cidadã e aos ganhos do lulismo (como se fossem conjugados) parte da premissa de que depois de assegurá-los através de uma frente de esquerda será possível voltar atrás, resgatar a essência do petismo e avançar para as reformas de inspiração fordista e finalmente construir a sociedade do trabalho no Brasil.

Nem o Estado de Bem-Estar Social se efetivou, engolido em suas aspirações pela avalanche da reestruturação produtiva, nem a política conciliatória forjada pelo PT está armada para responder àquilo que ele mesmo ajudou a criar.

Para o petismo, falar hoje em luta de classes é, portanto, não só uma ironia vinda de quem trabalhou para gerir a sociedade desarmando-a politicamente, como o duro golpe da realidade de uma sociedade desintegrada, desigual e mediada unicamente pelo dinheiro novamente vem provar o quanto esta tal democracia se revestia de ouro e o que mais se encaixava na manutenção do status quo do que em sua subversão.

Nós e eles

Vê-se novamente como a máquina do desenvolvimento precisa de gente para moer e gente para ser moída. Para a elite dos advogados do país, para dirigentes partidários e sindicais e parte graúda da burguesia brasileira, Amarildo era um cidadão de segunda categoria que não merece manifestos, muito diferente de políticos, banqueiros, empreiteiros e administradores de fundos de pensão.

Um bom exemplo dos pesos e medidas diferenciados é o Pinheirinho. Por ser uma espécie de anti-Minha Casa Minha Vida, a esquerda petista o rejeitou e lhe deu absolutamente nenhum suporte, legal ou solidário, simplesmente por ser um projeto que estava fora da galáxia do chamado campo democrático-popular. Um bairro popular, planejado, sem financiamento estatal e fora dos padrões de habitação que sempre foram regra nas políticas públicas, pagou pela ousadia de ser um precariado não absorvido pelo oficialismo.

A dimensão horizontal da luta de classes mostra sua cara na violência crescente da polícia contra os pobres e que precisa de maquiagem estatística para ser posta debaixo do tapete do governo Alckmin, ou nem isso, como na chacina do Cabula, na Bahia. A militarização do cotidiano, reflexo da gestão armada da paz social, vai matando em chacinas e linchamentos pelo país, que continuam a existir aos rodos sem sensibilizar boa parte do pensamento social brasileiro.

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(*) Henrique Costa é cientista político.


(Com o Correio da Cidadania)

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