Fátima e a enigmática meditação de José Luís Peixoto
Miguel Urbano Rodrigues
… «José Luis Peixoto abstêm-se de atacar a religião, as crendices populares e a vidente Lúcia. Empurra para os leitores a tarefa de extrair ensinamentos da sua obra. Um dos méritos de Em teu ventre é, creio, a ausência de teorização. O escritor, humanista fora de época, medita e convida à meditação sobre a aventura humana em busca de Deus por temor da morte.»
José Luis Peixoto é um escritor que deixará marcas profundas na literatura portuguesa. Um dos mais importantes das últimas décadas.
A minha companheira, grande admiradora de José Luis Peixoto, perguntou-me o que pensava de Em teu ventre, o seu mais recente livro.
Respondi que tinha gostado, mas sentia dificuldade em emitir uma opinião pela complexidade da obra.
É diferente de tudo o que escreveu antes. Ele fez-me recordar Kafka e Joyce, mas a sua escrita não tem afinidades com a de Joyce nem com a de Kafka.
Em teu ventre, perturba, surpreende e desorienta da primeira à última página. O leitor interroga-se na busca de respostas que não encontra.
Grandes media internacionais têm elogiado muito o livro. Tudo gira em torno das chamadas aparições de Fátima e da pastorinha Lúcia que, junto de uma azinheira, viu a mãe de Jesus e dela recebeu mensagens que somente revelou parcialmente e a conta-gotas. A última, a da «conversão da Rússia», foi tornada pública pelo Papa Joao Paulo II, que recebeu dela esse segredo.
O livro é uma simbiose daquilo a que chamarei um relato novelesco, de poemas em prosa, e de uma meditação caótica do autor sobre a relação entre o humano, o divino, a maternidade, e a rotina de aldeias do mundo rural português habitadas por seres abertos à procura do transcendente. A ignorância e a banalidade monótona, com frequência dolorosa, das suas existências são indissociáveis do cenário.
O livro abre com uma fala poética de Deus sobre a esperança, mas o Senhor logo empurra quem o escuta para a casa de uma família da aldeola de Aljustrel, Fátima.
Ali nasceu Lúcia, a futura vidente, a ultima de sete filhos de uma camponesa, Maria, e de Abóbora, um pequeno agricultor que prefere conversas na taberna ao falatório sobre aparições de Nossa Senhora. É católico como todos na aldeia, mas não acredita nas aparições. Maria, a mulher, também não e sofre pela filha.
A reza de ave marias e padre nossos e o ritual do agradecimento a Deus das refeições integram o quotidiano da família.
Durante algum tempo até o pároco desconfia das visões dos pastorinhos e das mensagens divinas.
Mas o rumor dos contatos de Lúcia e dos primos Francisco e Jacinta com a mãe do nazareno já ultrapassou o casario da aldeia.
De muito longe começam a chegar peregrinos rumo à Cova da Iria, lugar onde anos depois será construída a capela das aparições e, posteriormente, uma enorme e feia basílica. Numa das primeiras peregrinações ao lugar milhares de pessoas garantem ter visto o sol parar.
Muitos tocam com as mãos Lúcia e os primos, que também viram a Virgem mas não lhe escutaram as mensagens, dirigidas apenas a Lúcia.
Fala-se em milagre e uma auréola de santidade principia a envolver a misteriosa menina, interlocutora da divina judia que gerou Jesus sem pecado.
Maria, a mãe de Lúcia, continua angustiada e o bispo de Leiria, por algum tempo, adota uma atitude de expectativa.
Na aldeia, onde a maioria dos moradores é analfabeta, a Historia é uma ciência desconhecida e ignora-se que a Virgem, afinal, não era virgem, pois Jesus tinha irmãos mais velhos.
Entretanto, o nome da até então obscura freguesia de Fátima (palavra árabe e nome de uma filha do Profeta Maomé, esposa de Ali, o quarto Califa Omeiade, venerado como santo pelos xiitas), já corre pelo vasto mundo.
As supostas aparições são instrumentalizadas pela Igreja atingida pelo ateísmo da I Republica. As gigantescas peregrinações da primavera e do outono chamam a Fátima, hoje cidade, centenas de milhares de devotos da Virgem.
As aparições e mensagens ganham a dimensão de milagres inexplicáveis. Francisco e Jacinta, que morreram adolescentes, com a epidemia da pneumónica, foram beatificados.
Quatro Papas já foram a Fátima e um deles, Joao Paulo II, recebeu de Lúcia, que se tornara freira da Ordem dos Carmelitas Descalços, a revelação do segredo da «conversão da Rússia». Os outros segredos constam de depoimentos da vidente, amplamente divulgados pela hierarquia da igreja católica. Lúcia fala como profeta, anuncia o fim da guerra, a inevitabilidade de outra, maior, alude ao Inferno, que segundo o papa Francisco aliás não existe, tal como o Purgatório.
O falecimento de Lúcia em 2005 ficou assinalado por três dias de luto nacional, decretados pelo governo de Sócrates, que ignorou a morte do general Vasco Gonçalves a 5 de Junho do mesmo ano. A vidente será certamente canonizada, a avaliar pelo processo de beatificação que desrespeitou normas históricas do direito canónico.
As dioceses portuguesas e o Patriarcado estão já ativamente empenhados a preparar as comemorações do centenário das aparições em l917.
O acontecimento terá uma dimensão mundial e atrairá a Fátima o Papa Francisco, devoto como os seus predecessores da Virgem portuguesa. A campanha de divulgação do grande evento já principiou, aliás, a assumir um cariz ideológico que extrapola a religião.
No seu ambicioso livro, José Luis Peixoto abstêm-se de atacar a religião, as crendices populares e a vidente Lúcia. Empurra para os leitores a tarefa de extrair ensinamentos da sua obra. Um dos méritos de Em teu ventre é, creio, a ausência de teorização. O escritor, humanista fora de época, medita e convida à meditação sobre a aventura humana em busca de Deus por temor da morte.
Vila Nova de Gaia, Março de 2016
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