Raposas no galinheiro: uma análise da conjuntura brasileira
Em festa de jacu, inhambu não entra.
Jacques Gruman(*)
Podia comentar a iminente extinção do gorila de Grauer, o maior primata do planeta, cuja população diminuiu 77% em duas décadas. São caçados implacavelmente nas florestas do Congo e simbolizam a prepotência da nossa espécie, que vai dizimando rapidamente a si e a Natureza ao redor. Também cabia falar sobre o grupo de médicos amazonenses, que, sem alternativas e no desespero, recorreu a uma vaquinha para manter, em Manaus, o único centro de oncologia ocular da região Norte. Retrato acabado da falência dos serviços de saúde no Brasil.
Não seria impertinente repercutir o mais recente levantamento do Ministério da Fazenda sobre a concentração de renda e patrimônio no Brasil. Os dados são escandalosos: os 5% mais ricos da população brasileira concentram quase 30% da renda sujeita a tributação. Já o 0,1% mais rico da sociedade (27.500 pessoas) fica com 6% dos rendimentos do país.
Quem pensa em poder político, deve olhar para esse condomínio de alto luxo. As manchetes são apenas malhas opacas, que escondem, convém não se iludir, os verdadeiros burgomestres. Viajando no tempo, esbarraria no longínquo 18 de maio de 1721. Naquele dia vergonhoso, a Santa Inquisição espanhola queimou na fogueira Maria Barbara Carillo, a mais idosa vítima dos terroristas eclesiais, torturadores de batina. Com 95 anos, ela foi condenada à morte por praticar secretamente o judaísmo. Nada a comemorar nestes quase três séculos de intolerância religiosa. Subiu-se um degrau infame no rumo da bestialidade.
Tudo isso poderia estar na pauta. No entanto, sou convocado, por um provérbio ibérico, a olhar para outras planícies. Diz o adágio: Lá vão leis para onde querem os reis. Correndo sério risco de me repetir, e por isso já vou me desculpando, passeio pela conjuntura política brasileira. Essa que, mesmo formalmente republicana, adora pequenos monarcas e grandes bobos da corte. Orwelliana pátria, em que, mais do que nunca, vale a máxima de que “todos os bichos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros”.
Começo pelo que acaba de terminar. O governo Dilma. Seu desastre é, seguramente, o desastre do PT. Um partido que, nascido nas entranhas de um segmento da esquerda, do movimento sindical e de clero progressista, abandonou faz tempo qualquer veleidade socialista. A partir daí, e fascinado pelo poder artificial do Planalto, cometeu, pelo menos, três erros capitais.
O primeiro, elegantemente apontado pelo senador Humberto Costa, está na renúncia à política. “Dilma é uma pessoa que tem dificuldade de dialogar, de ouvir, é o perfil dela”. Estendendo para o corpo partidário, privilegiou-se o diálogo com as forças políticas mais atrasadas do país e o abandono da articulação com as frações organizadas da sociedade, fora do parlamento. O símbolo mais constrangedor disso foi a feijoada da cúpula coroada petista, Lula à frente, na casa do paladino da ética, Paulo Maluf. Em nome de apoio numa eleição municipal. Trata-se de uma lógica esdrúxula: pactuar com o atraso levará ao progresso (sic). Deu no que deu.
O segundo foi a conciliação de classes. No Brasil, em que as chamadas elites (categoria analítica pouco rigorosa, mas que serve para essa síntese) sempre odiaram o povo, as crises quase sempre se resolvem com acordos de cúpula. Conciliar é um esporte nacional. O resultado é que o povão fica a reboque dos grandes interesses dominantes, e caberia à esquerda romper essa tradição. Não foi o que aconteceu nos governos petistas, que, nas palavras do sociólogo Ricardo Antunes, “serviram muito bem às classes dominantes”.
É muito diferente incluir pelo consumo, via aumento de crédito bancário, do que inserir pela política, pela organização e politização dos excluídos. Hoje, se grita nas ruas “o povo não é bobo, abaixo a rede Globo”. Pois bem, quando Roberto Marinho morreu, Lula, então presidente, compareceu ao velório junto com cinco ministros.
Referiu-se ao godfather das Organizações Globo como “grande homem” e “homem de vanguarda”. É necessário maior exemplo de vassalagem ? No poder, o PT não deu um único passo para massificar o debate sobre a democratização dos meios de comunicação. Em nome, sempre ela, da “governabilidade”. Esse e outros temas na agenda da esquerda foram abandonados.
A chave do terceiro está numa entrevista dada pelo ex-ministro Jaques Wagner à Folha de São Paulo, no início deste ano. Referindo-se às práticas do partido no poder, disse que ele se “lambuzou”. Não esclareceu o que quis dizer com isso, mas dá para imaginar. Fugindo das teorias conspiratórias, é evidente que, como bem lembrou Vladimir Safatle, “a sequência de escândalos de corrupção não foi uma invenção da imprensa, mas uma prática normal de governo”.
Não adianta repetir que “todos fazem isso”. Não é consolo, pelo contrário. É a primeira vez na história brasileira que a esquerda se envolve com corrupção pesada. As consequências são dramáticas. Não é apenas o PT que está manchado, mas, no imaginário popular, estimulado pela mídia, toda a esquerda está no mesmo saco. Quantas décadas precisaremos para limpar as cavalariças do rei Augias ?
Isto posto, e não há nenhuma alegria no esboço crítico sobre o PT, o que acaba de acontecer com a presidente Dilma não passa de um conchavo para troca de guarda. As pedaladas fiscais não passaram de um pretexto oportunista para defenestrar a senhora Rousseff. Pretexto que, de resto, pouquíssima gente consegue entender. Coisa de juristas, cada um escolhe o seu. Restou um Fla x Flu agressivo e intolerante, cujo ridículo ficou exposto na sessão da Câmara dos Deputados no dia 17 de abril.
A discussão sobre o rótulo – é golpe ou não – é um pormenor. O que importa é reconhecer os atores por trás dos bastidores e seus objetivos. Isso ficou muito claro na formação do governo interino. Vêm por aí as velhas propostas de reformas trabalhistas e na Previdência, privatização generalizada, desvinculação orçamentária para saúde e educação, desvinculação do salário mínimo aos benefícios sociais e conservadorismo econômico. Vão passar ? Dependerá das ruas, das fábricas, dos bairros, das escolas, dos campos. A repressão, ora pois, está garantida. PMDB e PSDB têm pós-doutorado na matéria.
Neste período de transição, percebo várias desonestidades intelectuais. Fala-se do Congresso como sendo “a casa do povo”. Mistificação. Composto por 80% de homens brancos, quase 50% de milionários e mais de 30% de ruralistas, não é nem remotamente um espelho fiel da sociedade brasileira.
Segundo Safatle, “o Congresso transformou-se numa partidocracia corrompida, que gerencia eleições eivadas de distorções ligadas à presença do poder econômico, a casuísmos, ao limite brutal do tempo de campanha, à mobilização de uma imprensa recheada de canais de comunicação de posse, direta ou indireta, dos próprios políticos”.
Há também os que dizem ser o impeachment uma “vitória do povo”. Cinismo ? Cafajestagem ? Ilusionismo ? Oportunismo à cata de boquinhas ? O povo entra, aqui, com o pescoço na frente da guilhotina. Quem está no comando são as velhas oligarquias, o patronato que criou patinhos amarelos e agora nada de braçada no novo ministério. O gerentão da economia no primeiro governo Lula volta agora como o líder da “salvação nacional”. É a banca em estado de graça. Um empresário do agronegócio é o ministro da Educação, outro chefia a pasta da Agricultura. Cheiro de povo, sem dúvida alguma.
Poderia ser pior ? Sim, se estivéssemos nas Filipinas. Lá, um “justiceiro” acaba de ser eleito presidente. Na campanha, disse o seguinte: “Em Davao (cidade em que foi prefeito), bandidos não saem vivos. Eles podem sair da cidade, mas em um caixão. É isso que chamam de assassinatos extrajudiciais ? Então levarei traficantes aos juízes e os matarei lá para que deixem de ser assassinatos extrajudiciais. Esqueçam as leis de direitos humanos. Se chegar ao palácio presidencial, farei exatamente o que fiz quando era prefeito. Traficantes, bandidos e vagabundos devem partir do país, porque eu os matarei”. Não riam.
Este fascismo tem similar verde-amarelo. Jair Bolsonaro acumula 20% das intenções de voto entre os eleitores com renda acima de dez salários mínimos. Este é o Brasil do jeitinho, da conciliação, do estupra mas não mata, do elogio aos torturadores.
Mesmo que minh’alma esteja coberta por merencória película, a esperança é teimosa. Não partiremos do vazio. A experiência histórica é cumulativa. Aos que se lambuzaram, chegou a hora de uma portentosa autocrítica. É preciso avançar na direção de uma Frente de Esquerda, que articule partidos, movimentos sociais, setores progressistas organizados, sempre com uma perspectiva de classe. É preciso quebrar, de uma vez por todas, a espinha dorsal da conciliação.
É trabalho para mais de uma geração, mas que não pode tardar. Na minha caminhada dominical de ontem, cruzei com uma pequena manifestação. Eram alunos, professores e pais de alunos do Colégio de Aplicação, da UERJ. Denunciavam o sucateamento da rede pública de ensino e justificavam as ocupações de prédios escolares.
Vi muitos rostos jovens, que talvez fossem calouros neste tipo de manifestação. Felizes e, parece, orgulhosos. Gente que não se conforma, que está disposta a esquecer os fins de semana, a ajudar a construir, não apenas uma escola diferente, mas uma cidade mais humana e solidária. Um exemplo e um alento para os tempos duríssimos que estamos vivendo.
(*) Jacques Gruman é diretor da ASA - Associação Scholem Aleichem do Rio de Janeiro.
(Com o Portal do PCB)
(Com o Portal do PCB)
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