Todo direito é um golpe
Conjur
Alysson Leandro Mascaro (*)
Todo direito é um golpe. É a forma do engendramento da exploração do capital e da correspondente dominação de seres humanos sobre seres humanos. Tal golpismo jurídico se faz mediante instituições estatais, sustentando-se numa ideologia jurídica que é espelho da própria ideologia capitalista. Sendo o direito sempre golpe, a legalidade é uma moldura para a reprodução do capital e para a miríade de opressões que constituem a sociabilidade. Todo o direito e toda a política se fazem a partir de graus variados de composição entre regra e exceção.
Pelos espaços nacionais das periferias do capitalismo, cresce, no presente momento, a utilização dos mecanismos jurídicos e judiciais para estratagemas políticos e capitalizações ideológicas. Presidentes da República, como no caso do Paraguai, são alijados do poder em razão de artifícios jurídicos. No caso mais recente e talvez mais simbólico e impactante, Dilma Rousseff sofre processo de impeachment e é tirada do cargo presidencial no Brasil por conta de acusação de crime de responsabilidade por “pedalada fiscal”, um tipo penal inexistente no ordenamento jurídico brasileiro.
Tal processo de impeachment irrompe após anos de sangramento dos governos Lula e Dilma, mediante reiteradas investigações e julgamentos judiciais de corrupção que não se estendem a políticos de outros partidos mais conservadores e reacionários. O palco jurídico passa a ser exposto pela imprensa tradicional com requintes de espetáculo. O direito, jogando luzes e sombras na política do presente, faz, em alguns países periféricos do capitalismo, o mesmo que processos de insurgência popular faz nos países da chamada primavera árabe ou no caso da Ucrânia: destituem partidos, grupos, classes e facções do poder, engendrando realinhamentos internacionais e reposicionando, a menor, tais países no contexto geopolítico mundial.
A compreensão do papel do direito nas políticas de cada nação e na geopolítica atual exige uma mirada tanto naquilo que o direito é estruturalmente, como forma social necessária e inexorável do capitalismo, quanto, também, naquilo que é seu talhe e sua manifestação hoje. Aponto cinco questões envolvendo o direito, sua política estrutural nos Estados capitalistas e na geopolítica presente:
1. A natureza capitalista do direito e do Estado
O direito é forma social capitalista. Sua materialidade se funda nas relações entre portadores de mercadorias que se equivalem juridicamente na troca. A forma jurídica é constituinte da sociabilidade capitalista. O mesmo quanto à forma política estatal, terceira necessária em face dos agentes da exploração capitalista.
O Estado, mesmo quando governado por agentes e classes não burguesas, é capitalista pela forma. Direito e Estado se arraigam nas relações sociais capitalistas, estando atravessados pelas vicissitudes e contradições de tal sociabilidade da mercadoria. Legalidade e política estão submetidas à dinâmica da acumulação, nacional e internacional.
2. Política, direito e formações sociais insignes
Diferentes formações sociais do capitalismo estabelecem distintas instituições políticas e jurídicas pelo mundo. Há um vínculo necessário entre capital, Estado e direito, mas são variáveis os graus de arraigamento institucional, utilização da legalidade, segurança jurídica e mesmo de soberania nacional e estatal efetiva.
Embora todos os Estados contemporâneos sejam juridicamente soberanos, sua autonomia está condicionada à sua força econômica. As condições institucionais da política e do direito dão balizas à constituição de cada formação social específica mas, em especial, são constituídas pela dinâmica das determinações materiais e econômicas.
Países periféricos na economia capitalista mundial, como os da América Latina, têm um grau menor de assentamento das instituições nas quais se fundam política e juridicamente. O horizonte principiológico e normativo que os guia tem limites e contradições necessárias com a própria dinâmica do capital que os atravessa e os constitui. Eventuais políticas de esquerda e juridicidades “independentes” têm dificuldade de materialização em tais formações sociais.
3. Injunções jurídico-políticas neoliberais
Sendo Estado e direito formas sociais do capital, a força e a estratégia das burguesias nacionais e sua relação com as classes sociais locais e os capitais internacionais geram a coesão e o desenvolvimento institucional da política e do direito em cada país. Tal processo, no entanto, é plantado em contradições internas e internacionais.
As lutas de classes e grupos e as disputas entre frações do capital fazem com que as instituições políticas e jurídicas sejam atravessadas por tensões, antagonismos e contradições. Por isso, não se pode pensar em Estado e direito como aparatos consolidados, neutros ou técnicos, mas como correias de transmissão de movimentações gerais da dinâmica social. Havendo descompasso entre forças econômicas e posições político-jurídicas, a resolução da reprodução social capitalista se faz sempre em detrimento do plano institucional.
A América Latina sofre, no presente momento, uma rearticulação das classes burguesas e médias nacionais, sob sintonia do capital mundial, empunhando slogans do direito e reconstituindo movimentos conservadores e reacionários que buscam contrastar e diminuir conquistas jurídicas e políticas públicas de caráter mais progressista. Trata-se de momento aberto da luta de classes. O direito é arma privilegiada para tal injunção.
Como não há força material em princípios jurídicos nem em meras repetições ou sacralizações da legalidade, a exceção e o uso seletivo da legalidade, sustentados por vastos controles da informação por meios de comunicação de massa, passam a ser os instrumentos excelentes da luta de classes atual. O direito e a negação do direito se misturam para ações de golpe que possibilitem o rearranjo das classes capitalistas.
Contra os horizontes de alguns dos Estados latino-americanos do início do século XX – mais soberanos economicamente e tendentes a uma dosagem maior de inclusão social dentro do quadro capitalista –, classes burguesas e médias da América Latina encontram-se em um rápido processo de submissão às estratégias do capital internacional. O reagrupamento de frações das burguesias nacionais se faz em torno de projetos e linhas de força patentemente neoliberais.
4. Ideologia jurídica e ideologia dos juristas
Nas injunções das classes e frações do capital latino-americano contemporâneo, o direito tem servido como seu instrumento privilegiado. A ideologia jurídica conduz golpes que não aceitam ser narrados como tais e, ao mesmo tempo, a mesma ideologia jurídica tem sido a bandeira requerida por governos e movimentos sociais progressistas latino-americanos. Até mesmo aqueles depostos por golpe, como o caso do PT no Brasil, conclamam pelo respeito às leis e às instituições...
A ideologia jurídica tem tal primazia porque é constituinte da própria ideologia capitalista. Ser sujeito de direito, cidadão, contratar livremente entre iguais (formalmente), respeitar as instituições, cumprir as normas e jungir-se à legalidade, tudo isso é o campo de condições pelo qual a subjetividade se estrutura na sociabilidade do capital. Por isso, da direita à esquerda, as posições políticas disputam a legalidade, mas não rompem com tal horizonte ideológico. No entanto, como a forma jurídica é espelho da forma mercadoria, a ideologia jurídica só se presta à reprodução do capital, não para sua superação.
Os juristas são constituídos pela mesma ideologia jurídica geral, mas portam discursos e formulações que modulam e exacerbam a relevância da juridicidade. Profissionais do direito pertencem à classe média, distinguindo-se então da população apenas no campo econômico, sem maior lastro intelectual que não seja aquele da técnica da dogmática jurídica. O ambiente de convivência dos juristas e dos agentes dos poderes judiciários é a classe média que partilha dos espaços do capital. Por isso, o interesse imediato da burguesia passa a ser o horizonte prático da ideologia dos juristas. No caso da América Latina, o recente alinhamento do capital gera também uma classe de juristas e de agentes dos poderes judiciários que capitaneia uma injunção jurídica regressista.
Com a recente integração tecnológica e de comportamento das classes médias mundiais, os juristas latino-americanos são formados em horizontes de pensamento norte-americanos e capitalistas. A common law, a segurança do capital e dos contratos e um moralismo legalista são louvados mundialmente. Nesse ambiente, eventuais projetos nacionais contrastantes com a movimentação do capital mundial encontram, nos juristas latino-americanos, oponentes ativos.
5. Direito, espetáculo e golpe
Na reprodução social contemporânea, midiática e baseada em informações massificadas e de rede, o direito assume papel importante como espetáculo e como fortalecimento de posições ideológicas. As acusações constantes de ilegalidade, rompimento do republicanismo e corrupção, feitas contra governos de esquerda, encontram cadeia de transmissão nos meios de comunicação de massa e nos aparatos judiciários de cada Estado.
Assim, formas contemporâneas de luta de classes e de afirmação ainda mais sobrepujante de interesses do capital se fazem à custa dos governos e do direito posto, mas com auras de respeito às instituições. Desde Manuel Zelaya a Dilma Rousseff, passando pelos combates constantes aos governos venezuelanos, dentre outros, a combinação de poder judiciário com mídia substitui, no presente, o papel dos militares no passado.
As vantagens de golpes e compressões do espaço político mediante espetáculos jurídico-midiáticos são inúmeras, a começar da incapacidade de reação popular contra injunções que não são claramente de força armada. Acima disso, golpes, constrangimentos e linhas de força conservadoras e reacionárias que agem pelo direito e pelos meios de comunicação de massa pavimentam a ideologia do capital de modo pleno: seus trâmites se dão com a linguagem e dentro do espaço que constitui a própria compreensão da subjetividade – sujeito de direito, lei, ordem, processo judicial, rito, procedimento. Somando-se a isso pleitos morais religiosos conservadores, como no caso dos que capitaneiam o impeachment de Rousseff, o quadro da ideologia estruturante da sociabilidade capitalista se confirma.
Com isso, a reprodução da sociabilidade capitalista na América Latina contemporânea se faz na marcha de golpes que não se deixam chamar como tais, com constituição de entendimentos ideológicos a partir de meios de comunicação de massa e com poderes judiciários aderentes ao capital que veem a lei como expressão de seu horizonte de mundo. O golpe está no mundo jurídico porque dentro, nas margens ou fora da lei, se fala direito.
(*) Alysson Leandro Mascaro é jurista e filósofo do direito. Autor do livro Estado e forma política.
Texto retirado Blog da Boitempo e escrito escrito para o número 6/4, de maio de 2016, da revista Megafón: La batalla de las ideas do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais com o título “Políticas e geopolíticas do direito”.
(Com o Correio da Cidadania)
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