"Roma" desperta orgulho e racismo nos mexicanos
Alfonso Cuarón e Yalitza Aparicio durante as filmagens do longa da Netflix
A história de uma empregada doméstica de raízes indígenas numa família branca de classe média e o sucesso da atriz principal, Yalitza Aparicio, reacendem debate sobre classismo, diversidade e intolerância no México.
Classismo e racismo são os principais temas abordados em Roma, filme do diretor mexicano Alfonso Cuarón. O sucesso da obra deu a volta ao mundo e bateu recordes em premiações internacionais. Concorre em dez categorias no Oscar deste ano, incluindo a de melhor filme, nomeação raramente concedida a produções estrangeiras. Sua protagonista, Yalitza Aparicio, também tem sido ovacionada pelo público, ao mesmo tempo em que recebe fortes críticas por sua ascendência indígena.
A atriz de 25 anos tem mãe da etnia triqui e pai mixteca, ambos originários de povos indígenas do estado de Oaxaca, no México. Em Roma, ela interpreta Cleo, empregada doméstica de uma família de classe média na Cidade do México. A personagem é inspirada em Liboria Rodríguez, babá de Cuarón durante a infância.
Cleo expõe as desigualdades raciais e sociais dos povos indígenas no México. Tanto a personagem quanto a própria atriz têm sido tema de controvérsias. Por um lado, a sociedade se orgulha de mostrar o verdadeiro México; enquanto, para outros, Aparicio e Cleo têm histórias de vida que não merecem ser contadas.
"Índia maldita" foram as palavras usadas por um ator mexicano para se referir a Aparicio e à sua indicação ao Oscar de melhor atriz. Essa é apenas uma das tantas ofensas que tem recebido. "Ela não sabe atuar, não deveria ter sido indicada" e "ela não atuou, ela é assim" estão entre outros comentários comuns nas redes sociais.
Contudo, Aparicio conveceu a crítica internacional e foi reconhecida mundo afora por sua atuação. Além de uma série de indicações em premiações de cinema, ela levou o prêmio de atriz revelação no Hollywood Film Awards em 2018.
Crianças abraçam a personagem Cleo em uma praia no filme Roma
Segundo algumas atrizes mexicanas, lhes chama a atenção que alguém cuja aparência não atende aos padrões de beleza socialmente estabelecidos possa ter sucesso nos Estados Unidos e ser capa de revistas de moda. Comentaristas de veículos de comunicação têm inclusive pedido publicamente que a atriz se vista como indígena nas cerimônias de premiação.
"Isso é um reflexo das posições de privilégio e do racismo tradicionais no México. As reações mais depreciativas vêm de pessoas que não têm a menor chance de ganhar um prêmio na vida. São manifestações de inveja do talento e do sucesso dos outros", comentou, em entrevista à DW, Federico Navarrete, pesquisador da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam).
"A elite mexicana acredita que os espaços de poder pertencem a ela. As pessoas brancas, com seu privilégio racial, ocupam lugares de destaque na sociedade e agora se sentem ameaçados e com coragem", acrescentou Navarrete, autor do livro México racista: uma denúncia.
Aparicio, o verdadeiro rosto do México
Preto, moreno ou negro são adjetivos pejorativos na sociedade mexicana – o que é surpreendente, já que mais de 80% da população tem a pele escura, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística e Geografia (Inegi). Os números permitem concluir que a imagem de Aparicio é o verdadeiro rosto do México, apesar das críticas que recebe.
O fato de uma mulher indígena alcançar o sucesso significa muito para a sociedade mexicana, já que esse grupo social é o mais marginalizado em termos econômicos, quanto ao acesso à educação, à saúde e aos direitos reprodutivos.
Apenas ter a pele escura já é motivo de discriminação no México. De acordo com estudos do Inegi, a cor da pele exerce influência no nível de educação e nas oportunidades de emprego que chegam às pessoas. Nesses levantamentos, 72,2% dos entrevistados disseram considerar que existe racismo no país, e 47% acreditam que os indígenas não têm as mesmas oportunidades de emprego, muito menos em cargos de chefia.
Roma, uma mensagem poderosa
O classismo exposto no filme revela um dos traços mais vergonhosos dos mexicanos: a veneração à pele branca, apontam especialistas. Além de convidar os espectadores à nostalgia ao retratar um México nos anos 1970, Roma faz uma reflexão sobre a pouca mudança das estruturas sociais nas últimas décadas.
A realidade atual não está longe da vista no filme. Um exemplo é o tratamento que a atriz Marina de Tavira, coadjuvante no longa, tem recebido. Ao contrário do que acontece com Aparicio, Tavira não foi alvo de comentários ou ofensas racistas por seu desempenho, porque sua imagem, branca e de cabelos claros, não mexe com as estruturas.
"No México, a ascensão social implica branqueamento, de forma literal. No país existem inclusive cremes para clarear a pele. Ser branco é uma aspiração. É associado à posição econômica, a sofisticação e a ser cosmopolita", diz Navarrete.
Agora, Aparicio se destaca num mundo destinado, em grande parte, a pessoas de traços caucasianos. Assim como Roma, ela reacendeu o debate sobre as desigualdades. Ganhando ou não a estatueta do Oscar, a atriz já é inspiração para todas as mulheres negras e indígenas, pois sua história rompe todos os paradigmas.
(Com a DW)
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