Videla confirma que Igreja ajudou a ocultar desaparecimentos na ditadura argentina
O repressor argentino voltou a minimizar a articulação entre países do Cone Sul para a repressão na América Latina
[O ex-ditador argentino Jorge Rafael Videla (centro), em 1978]
Wikicommons
“A igreja ofereceu seus bons ofícios” e “assumiu os riscos”. Com estas palavras, o primeiro líder da ditadura argentina (1976-1983), Jorge Rafael Videla, define a cumplicidade da igreja católica na omissão de informações sobre o paradeiro de pessoas desaparecidas durante os anos de terror no país.
As declarações feitas em 2010 à revista El Sur foram publicadas no último sábado (21/07), devido a uma condição imposta por Videla de que fossem divulgadas somente após sua morte. A restrição foi rompida após a publicação de declarações concedidas por Videla a outros jornalistas.“Durante 24 meses, nada foi publicado. (...) Não acreditamos estar violando um acordo”, justifica o autor, sobre a publicação do conteúdo antes do falecimento do ex-ditador.
Videla concedeu a entrevista durante sua passagem pela prisão de Bouwer, em Córdoba, quando era réu de um julgamento no qual foi condenado à reclusão perpétua. “A igreja ofereceu seus bons ofícios [em relação ao desaparecimento de pessoas] e aos familiares que tinham certeza que não usariam politicamente a informação, disseram que não procurassem mais seus filhos porque [eles] estavam mortos”, afirmou.
Além de confirmar pessoalmente a participação de bispos da Conferência Episcopal Argentina na ocultação de desaparições, o ditador também minimizou a articulação entre países do Cone Sul para a repressão: “Eu nunca vi uma pasta que dissesse “Operação Condor”. Se tinha unidade na forma de enfrentar o problema, era pela reação frente a uma situação gerada pela União Soviética que estava em confronto com os Estados Unidos”, justifica.
Para ele, as guerrilhas revolucionárias foram estimuladas pelo bloco soviético, que utilizava as lutas contra o colonialismo e a desigualdade social como “argumentos” para “avançar na conquista do mundo”. Quando questionado se a suposta “licença para matar” dos militares incluía torturas, roubo de bebês e de bens, Videla justifica: “Quando se dá tanto poder e liberdade de ação a uma força como o Exército, é inevitável que muitos utilizem estas liberdades em benefício próprio”.
No texto, o jornalista considera que uma das contradições da ditadura foi a negação inicial de que a repressão seria uma "guerra", alegação atual de militares que perpetraram torturas, mortes e desaparecimentos, cujo número de vítimas é estimado em 30 mil por organizações de direitos humanos. Deste modo, argumenta o jornalista, os membros do grupo guerrilheiro ERP (Exército Revolucionário do Povo) não tinham os direitos de prisioneiros de guerra reconhecidos.
Quando questionado sobre o uso desta palavra, Videla afirma que “a guerra não podia ser revelada neste momento”, garantindo que a repressão foi uma resposta “à medida dessa agressão” que “não cumpria com os direitos de guerra”. Segundo ele, hoje se ignora a existência de uma “agressão prévia” à ditadura, o que faz com que as vítimas da repressão sempre contem suas histórias “a partir do momento em que foram presos”, perspectiva que leva a que só os militares sejam julgados.
Documentos
Sobre a revelação da lista de mortos pela ditadura e da localização das fossas comuns onde os corpos foram enterrados, Videla afirma que “muitas coisas [documentos] foram destruídas, porque teve uma ordem. Mas ainda podem existir algumas listas para reconstruir um pouco do acontecido. Deve ter alguma coisa. Mas não acho que publicar as listas hoje traria alívio”, diz, após afirmar que a divulgação dos documentos não foi feita por ser considerada “inconveniente”.
Apesar de afirmar que a informação do paradeiro dos mortos “é um direito que todas as famílias têm”, Videla afirma que os desaparecimentos “eram uma das derivações prováveis” de “uma guerra". “Para mim, fica como uma dívida pendente. Mas não sei como saldá-la. Não sei do destino final dos desaparecidos nem dos voos da morte. Acho que já é uma questão que não poderá ser resolvida, só com o esquecimento”, fala.
Como em outras entrevistas recentes, o ex-ditador atribuiu aos governos do casal Néstor e Cristina Kirchner - que acabaram com as leis de anistia para a retomada dos julgamentos dos militares - a má imagem que tem perante a sociedade argentina. “Nos últimos tempos, isso foi muito atiçado pelo atual governo. Acho que com outro isso poderia amenizar de alguma maneira”, analisa, qualificando a opinião pública como “uma cruz” que terá que carregar para o resto da vida. (Com o Opera Mundi)
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