DIREITOS HUMANOS
Procurador italiano pede condenação de 4
brasileiros por crimes da Operação Condor
Janaina Cesar | Roma
Leivas Job, Ponzi, Rohrsetzer e Silva Reis: ex-agentes da ditadura brasileira serão processados pelo desaparecimento do ítalo-argentino Lorenzo Viñas em 1980
A Procuradoria de Roma apresentou denúncia formal para que os brasileiros João Osvaldo Leivas Job, Carlos Alberto Ponzi, Átila Rohrsetzer e Marco Aurélio da Silva Reis sejam julgados criminalmente pelo sequestro e assassinato do cidadão ítalo-argentino Lorenzo Ismael Vinãs Gigli, desaparecido em 26 de junho de 1980, vítima da Operação Condor, rede de repressão política e troca de prisioneiros formada pelos serviços de inteligência das ditaduras do Cone Sul: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai.
O ítalo-argentino Lorenzo Ismael Viñas Gigli (foto) desapereceu em junho de 1980 na fronteira entre Argentina e Brasil
Caso a Justiça italiano aceite o pedido, os quatro denunciados, que mantêm residência no Brasil, serão incluídos na lista de 33 réus do processo e poderão ser condenados a prisão perpétua na Itália.
Para cada um dos brasileiros foi designado um defensor público italiano; os advogados foram notificados oficialmente na semana passada e têm 20 dias para apresentar a defesa preliminar dos ex-agentes brasileiros, três militares e um da polícia civil.
Caberá ao juiz Alessandro Arturi, do Tribunal de Roma, decidir se aceita ou não a denúncia — todos os pedidos feitos pela Procuradoria italiana para incluir réus no processo foram confirmados pelo magistrado.
“Inicialmente o processo correrá em separado, mas após a audiência preliminar, cuja data ainda deve ser fixada, pediremos à corte que o anexe ao caso principal. Foi assim que aconteceu com os outros réus do caso — entre eles o ex-tenente uruguaio Nestor Troccoli — que foram incluídos após a abertura do processo”, explica a Opera Mundi Giancarlo Capaldo, procurador responsável pelo caso, que começou a ser julgado na Itália no mês de fevereiro.
Para Capaldo, a participação brasileira na rede repressiva sul-americana é clara. “O Brasil foi parte operativa do Plano Condor, tendo exercido papel importante na atuação repressiva e punitiva contra os movimentos que se opunham aos regimes militares da América do Sul. Não é possível que as autoridades brasileiras não fossem cúmplice do que estava acontecendo”, afirma o procurador italiano.
Para o advogado e ex-coordenador da CNV (Comissão Nacional da Verdade), Pedro Dallari, a denúncia dos brasileiros na Justiça italiana "é um elemento a mais para que a verdade emerja". "Por um lado é um dado positivo, por outro, não deixa de ser irônico que um país que não seja o Brasil esteja fazendo aquilo que nós deveríamos estar fazendo", afirma Dallari, acrescentando que a iniciativa italiana pode ter um aspecto positivo de "incentivar" a Justiça brasileira a agir. Mas ressalva: "É uma triste notoriedade, que, entre os países do Cone Sul, só não haja militares julgados e condenados no Brasil".
A reportagem do Opera Mundi obteve com exclusividade acesso à notificação enviada aos advogados em que constam as denúncias do Ministério Público italiano contra os quatro brasileiros. Eles são acusados de terem participado da prisão, tortura e assassinato de várias pessoas, em particular, do cidadão italiano Lorenzo Ismael Vinãs Gigli:
São acusados por terem praticado ações com intenções criminais, tendentes a pôr em perigo a segurança de um número indeterminado de pessoas, até mesmo pelo simples fato de serem suspeitos de militarem no Montoneros ou de serem parentes e amigos de quem militava no movimento. Por terem prendido ilegalmente um número indeterminado de pessoas por suas supostas ligações com a organização política acima mencionada, por tê-los submetidos a tortura para extrair informações e por terem participado da morte de muitos deles, especialmente, dos cidadãos italianos Horácio Domingo Campiglia Pedamonti e Lorenzo Ismael Vinãs Gigli.
De acordo com a denúncia da Procuradoria italiana, na data em que Vinãs foi sequestrado, Leivas Job era secretário de Segurança do Rio Grande do Sul; Ponzi chefiava a agência do SNI (Serviço Nacional de Informações) em Porto Alegre; Rohrsetzer era diretor da Divisão Central de Informações do Rio Grande do Sul; e Silva Reis, delegado de polícia, cobria o cargo de diretor do Dops (Departamentos de Ordem Política e Social) do Rio Grande do Sul. A reportagem tentou contatar os defensores públicos italianos, mas não obteve resposta.
Desde 2007, Leivas Job, Ponzi, Rohrsetzer e Silva Reis já estão na lista dos investigados pelo procurador Capaldo — além de outros nove brasileiros entre os quais estavam os dois últimos presidentes do período militar, Ernesto Geisel (1974-1979) e João Baptista Figueiredo (1980-1985).
Quando o processo foi aceito pela Justiça Italiana em dezembro daquele ano, a juíza responsável pelo caso emitiu ordens de prisão preventiva contra 146 pessoas, incluindo os quatro brasileiros. Por meio de carta rogatória enviada pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) em 2011 [leia a íntegra abaixo], os quatro denunciados defendiam-se da notificação judicial: Leivas Job, além de “insurgir-se contra o fato” de o documento italiano não ter sido traduzido por professional juramentado, afirmou ser “inepta” a denúncia, alegando “ilegitimidade passiva” e invocando a Lei de Anistia brasileira; Ponzi afirmou que não era o chefe da agência do SNI em Porto Alegre na data indicada; Rohrsetzer declarou que “não se submete à jurisdição italiana, por entender absurdas as acusações”; e, sobre Silva Reis, não consta manifestação no documento.
As investigações sobre a Operação Condor na Itália já duram 15 anos e tiveram início após denúncias apresentadas pelos familiares dos italianos desaparecidos na América do Sul. Os autos do processo se estendem por mais de 170 mil páginas, entre depoimentos tomados e documentos recolhidos em arquivos secretos dos países do Con Sul. Das 146 pessoas indiciadas após as investigações preliminares — 61 argentinos, 32 uruguaios, 22 chilenos, 13 brasileiros, 7 bolivianos, 7 paraguaios e 4 peruanos —, apenas 33 viraram réus, sem contar os quatro brasileiros.
Lorenzo Vinãs foi sequestrado no dia 26 de junho de 1980, entre os municípios de Paso De Los Livres e Uruguaiana, fronteira entre Argentina e Brasil, e jamais foi visto novamente. Por conta da militância nos Montoneros, guerrilha que fazia resistência à ditadura argentina, Viñas já havia sido preso em 1974.
No exílio, foi para o México em 1975, com sua esposa Claudia Olga Allegrini; e em 1977, para o Brasil. Em 1979, retornou à Argentina, onde nasceu sua filha, Maria Paula. Por conta das perseguições políticas, o casal decidiu ir viver na Itália.
Assim, em junho de 1980, Viñas embarcou em um ônibus em Buenos Aires com destino ao Rio de Janeiro — sua esposa Claudia faria o mesmo percurso um mês de depois e, juntos, pegariam um voo para a Itália. No entanto, Lorenzo Viñas não completou o percurso e desapareceu na fronteira entre a Argentina e o Brasil.
Carlos Latuff/Opera Mundi (2008) |
Nos anos 70, Operação Condor construiu rede de colaboração entre serviços de inteligência e repressão política das ditaduras sul-americanas
Para Giancarlo Maniga, advogado de defesa que representa sua mulher Claudia Olga Ramona Allegrini e sua filha, María Paula, “é mais do que justo que os brasileiros também sejam processados. Eles participaram do sequestro e, em decorrência, do assassinato de Vinãs”, diz. A família, que mora em Buenos Aires, seguirá as audiências do caso. Segundo Maniga, o processo trará justiça a Vinãs e as outras vítimas do terrorismo de estado que deixaram seus familiares e desapareceram. "Estes julgamentos são importantes porque além de serem atos de memória, estimulam os países afetados a lutarem por justiça", diz.
Reconhecimento
Desde agosto de 2005, o Estado brasileiro, através da CEMDP (Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos), reconhece a responsabilidade sobre o caso de Lorenzo Viñas, tendo indenizado a família pelo desaparecimento forçado do ítalo-argentino.
Em dezembro de 2014, o relatório final da CNV (Comissão Nacional da Verdade) diz que, “diante das investigações realizadas”, Lorenzo Viñas desapareceu “em contexto de sistemáticas violações aos direitos humanos”.
“Recomenda-se a continuidade da cooperação entre Brasil e Argentina para o esclarecimento da prisão ilegal e do desaparecimento de Lorenzo Viñas, assim como a continuidade das investigações sobre as circunstâncias do caso, para a identificação e responsabilização dos demais agentes envolvidos”, aponta o documento final da comissão, que também concluiu que a Operação Condor fez uso sistemático de esquadrões da morte e sindicatos do crime, em “clara situação de terrorismo de Estado”.
* Colaborou Felipe Amorim
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* Lorenzo Ismael Viñas Gigli é um dos 434 mortos e desaparecidos contabilizados pela Comissão Nacional da Verdade. Abaixo, veja o que o relatório final da CNV, entregue à presidente Dilma Rousseff em dezembro de 2014. (Com Opera Mundi)
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