Jovem síria sobrevive a naufrágio e passa os dias em praia grega à espera de marido desaparecido


                                         Fotos: Guilherme Balza/Opera Mundi             
Sondos Abo Shanab vai todos os dias à praia para esperar marido desaparecido no Mediterrâneo
                                      


Guilherme Balza 

No meio da travessia entre Turquia e Grécia, barco afundou e marido de Sondos cedeu colete salva-vidas a uma mulher em apuros; nadando para terra firme, os dois se separaram e, desde então, jovem vai à praia esperar por ele
      
Na orla da ilha grega de Kos, porta de entrada da Europa para quem vem da Turquia, o sentimento entre as centenas de refugiados acampados em situação precária pelas ruas é de euforia. A parte mais perigosa do trajeto até a Alemanha já ficou para trás, e, dificilmente, algum outro obstáculo vai impedi-los de chegar lá.

A imagem dos acampados, no entanto, contrasta com a da síria Sondos Abo Shanab, que, aos 20 anos, vê o peso do mundo desmoronar nas suas costas. Até aqui, ela representa o lado que não deu certo na loteria que se tornaram as viagens de barco pelo mar Egeu. 

Dona de casa, Sondos vivia com o marido, o mecânico de automóveis Hasan Hag Kasem, 27, na cidade de Latakia, principal porto sírio e reduto alauíta. O casal estava disposto a construir a vida no país, tentando resistir à guerra civil que já matou mais de 240 mil pessoas e obrigou metade da população a fugir de casa.

A história de Sondos e Hasan dá sinais de que a guerra síria está avançando até para áreas antes consideradas seguras, o que pode explicar o aumento no número de refugiados sírios neste ano. Os dois desistiram de permanecer na Síria depois que Hasan, que já cumprira serviço militar obrigatório, fora convocado pelo Exército para lutar contra os jihadistas. Em agosto e setembro, Latakia foi alvo de ao menos três ataques terroristas, sempre com carros-bomba.

"Ainda consegui ouvir Hasan gritando o meu nome", conta a jovem síria.

A rota de fuga usada pelo casal foi a mesma de todos os sírios: cruzar toda a Turquia e embarcar em direção à Grécia a partir de algum ponto avançado no litoral turco. Os dois embarcaram em Bodrum, na madrugada de 13 de setembro, num barco de dois andares, com mais 150 refugiados. 

Já na embarcação, vestindo coletes laranjas, tiraram uma foto para enviar aos familiares e mostrar que estava tudo bem. Otimistas, os dois sorriam, como se estivessem numa viagem de férias.

No meio da travessia, o capitão desligou o motor do barco para despistar a polícia grega, conforme relatos de três passageiros. Pouco tempo depois, a embarcação começou a afundar, aos poucos. ]

                                                                   
                                                                       Arquivo Pessoal
                            Última foto tirada pelo casal no barco que os levaria à Grécia

Muitos ocupantes caíram no mar depois de serem atingidos por uma onda. Sondos e Hasan, que sabiam nadar, ajudaram a salvar os demais, levando-os até o que sobrou do barco. O mecânico decidiu dar o colete a uma mulher em apuros e ficou desprotegido. Com o mar agitado, os náufragos foram se dispersando e se afastando do barco. 

O casal começou a nadar em direção à terra firme. Exausto e com dor nas costas, Hasan decidiu fazer uma pausa e boiar. Sondos, ainda com o colete, continuou a nadar. "Foi a última vez que o vi. Logo em seguida veio uma onda e nos afastou. Ainda consegui ouvir ele gritando o meu nome."

Mesmo com dor no ombro direito, Sondos nadou por quatro horas seguidas até chegar na ilha de Farmakonisi. Hasan nunca mais foi visto. Ele é um dos 18 desaparecidos do naufrágio, um dos maiores já registrados ali, com 34 mortos, entre eles quatro bebês e 11 crianças. 

Restos recolhidos de embarcação de refugiados que naufragou na costa da Grécia

A última postagem de Hasan no Facebook, em 4 de setembro, foi a famosa foto do conterrâneo curdo Aylan Kurdi, 3 anos, morto na travessia Kos-Bodrum, seguida da mensagem "Deus fique com o povo da Síria."

Antes de ser levada a Kos, onde os refugiados são registrados, Sondos percorreu duas ilhas atrás do marido - ou do corpo dele - e nada encontrou.

Desde então, a jovem passa os dias inteiros em algum ponto da orla, sempre com os olhos fixos no mar, com um ar que alterna tristeza, apreensão e um fio de esperança de que o marido irá aparecer.
Toda a família da jovem vive na Síria. Em Kos, ela está sendo amparada por outros sobreviventes do naufrágio, como Alaa Aladib, 22, que também deixou a Síria junto com o marido após ele ser convocado pelo Exército.

"Perdemos todo o nosso dinheiro. Agora me sinto mal em qualquer contato com a água. Não sei como vou fazer para entrar em um barco de novo e ir à Atenas", diz Alaa, que na Síria era voluntária do Crescente Vermelho (nome da Cruz Vermelha nos países islâmicos) e pretende chegar à Suécia, onde moram alguns familiares.
                                                              
Na ilha de Kos, famílias dormem em barracas improvisadas enquanto aguardam momento de seguir para o continente

Mona Hamadan, 26, estava no barco com o marido e a filha Sara, de 5 anos, que se afogou e chegou a ficar alguns minutos desacordada. "Sempre que durmo sonho com isso. Todos os dias da minha vida vou lembrar do que aconteceu", afirma a síria, que pretende chegar à Alemanha.

Alaa e Mona devem partir nos próximos dias à Atenas. Mesmo sozinha, Sondos pretende continuar em Kos até receber alguma notícia do marido. Não pensa no futuro, não sabe se volta à Síria para encontrar os pais ou se continua a viagem ao norte da Europa. "Vou ficar aqui, todos os dias, até encontrá-lo. Não quero saber de mais nada."

Negócio lucrativo

A pressão internacional que se seguiu à morte de Aylan Kurdi fez com que as autoridades gregas agilizassem a autorização para a entrada de refugiados e imigrantes pela ilha grega. Agora são 32 funcionários trabalhando nos processos, ante quatro há algumas semanas, segundo o coordenador do Acnur (Agência da ONU para Refugiados) em Kos, Roberto Mignone. 

"Somos cristãos, e no Irã não há nenhuma liberdade para exercermos o cristianismo", diz Nancy Sharhani, 18, que está com a família em Kos

A agilização fez despencar o número de refugiados na ilha. Agora eles são cerca de mil, contra quase 10 mil no auge da crise. "Antes eles ficavam semanas esperando a autorização. Agora são dois ou três dias", afirma Mignone.

Os refugiados ainda não dispõem de infraestrutura adequada. Tomam banho em uma torneira improvisada, usam banheiros químicos e se alimentam com a ajuda de voluntários.

Diariamente, centenas de botes continuam a chegar em Kos. Os imigrantes pagam, em média, entre US$ 1.000 e US$ 1.500 a atravessadores, que lhes fornecem botes e coletes. É uma loteria. "Todas as semanas há mortes, mas é um negócio que dá lucro. Já passaram por aqui 36 mil pessoas, que pagam US$ 1.500 pela travessia. Isso dá mais de US$ 50 milhões", diz o coordenador do Acnur. 

Rota atrai novos refugiados

Os refugiados sírios acabaram abrindo uma rota que atrai pessoas de outras regiões, que, apesar de não estarem em guerra propriamente dita, como a Síria, vivem em permanente estado de exceção em função da pobreza e perseguição religiosa. 

Há uma nítida diferença social entre os estrangeiros. Os sírios, em geral, conseguem se hospedar em bons hotéis, muitos dos quais cobram uma diária acima da normal, aproveitando-se do drama dos refugiados. Já no acampamento na orla da ilha, o grupo mais numeroso é formado por paquistaneses, seguidos de iranianos, bengalis, afegãos, iraquianos, camaroneses e senegaleses, além de alguns sírios sem dinheiro para os hotéis. Até imigrantes da República Dominicana, no Caribe, já passaram por Kos.

"No fundo, vivemos a mesma situação da Síria", diz o paquistanês Nazeef Ahmad, 19, que deixou o país asiático pela pobreza e pela violência perpetrada pelo grupo Talibã. Antes de entrar na Europa, após três tentativas de travessia --em duas a polícia o deteve no mar-- ele morou por seis meses no Irã e na Turquia, mas não arrumou emprego. 

"No fundo, vivemos a mesma situação da Síria", diz o paquistanês Nazeef Ahmad, 19

Quase todos os acampados são homens. A reportagem encontrou mulheres somente entre os camaroneses e em uma família iraniana, que deixou o país xiita por problemas religiosos. "Somos cristãos, e no Irã não há nenhuma liberdade para exercermos o cristianismo", diz Nancy Sharhani, 18.

Também do Paquistão, Qasim Shah, 33, levou um mês para cruzar Irã e Turquia até chegar à Grécia. "Quando cheguei aqui, me senti totalmente seguro. No meu país não tem nada disso", diz, apontando para voluntários. 'Queremos ir a qualquer lugar onde passamos encontrar a paz e ajudar as nossas famílias." (Com Opera MundiI)

Comentários