O Correio da Cidadania não deixa por menos:‘Ou se rompe totalmente com o PT ou seremos engolidos pela onda conservadora’
Manifestação de junho de 2013/internet |
Gabriel Brito e Paulo Silva Júnior
O Brasil continua observando a crise política que a cada dia parece imobilizar mais o governo Dilma, que agora promove reforma ministerial para atender às mais recentes chantagens de seu principal “aliado”, como se vê na pasta da Saúde. Ao lado disso, mais de 260 petistas eleitos se desfiliam do partido e começam a configurar um novo cenário. Sobre o complexo quadro político, conversamos com o sociólogo carioca Marcelo Castañeda.
“É uma pena que a justa indignação seja capitaneada por segmentos mais conservadores da direita. No momento, mantém-se uma polarização, que é sórdida, entre PT e PSDB e sua alternância, ou não, no governo federal. Está faltando à institucionalidade uma via diferente, que rompa com isso. Não é o PMDB e tenho dúvidas também se a Marina e a Rede seriam tal alternativa, ainda mais depois da última campanha eleitoral”, analisou Marcelo.
Para o sociólogo, mais entusiasta da micropolítica, como demonstra sua atuação no grupo de formação Círculos de Cidadania, o país vê fechar-se uma brecha democrática aberta pelas manifestações de junho de 2013. A seu ver, elas sepultaram de vez o PT como esperança de uma sociedade mais justa. Por isso, e por acreditar que o governo Dilma “não tem muito mais a fazer”, defende a ruptura definitiva com o lulopetismo.
“No momento, ou temos uma configuração clara de ruptura com essa ordem, que está posta há 13 anos, ou estamos juntos da ordem. O PT não assumiu o governo ontem, e, sim, se acomodou. O ‘apoio crítico’ só serve de respiro ao governo. Ou a gente pressiona por mudanças ou seremos engolidos por essa onda conservadora e mais à direita. O que já está acontecendo. A direita está muito fortalecida, pois está no governo e tem seus interesses atendidos; ao mesmo tempo, critica veementemente o governo e capitaliza a indignação popular”.
Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como você avalia o atual momento político brasileiro, com uma presidente enfraquecida e uma articulação política praticamente terceirizada para o PMDB, que por sua vez hesita entre a colaboração e a ruptura ou chantagem com o governo?
Marcelo Castañeda: O enfraquecimento da Dilma tem a ver tanto com o momento do país como com as condições globais, a partir do encerramento do ciclo das commodities, o que já vinha de 2013. E está enfraquecido também pelo arco de governabilidade ensejado, desde o governo Lula, com aproximação cada vez maior do PMDB, em opção de ficar próximo a este partido, no centro do poder desde a redemocratização. Período do qual, aliás, não saímos. Ainda estamos constituindo uma democracia, há 30 anos.
É um enfraquecimento que se deve tanto às condições globais como à aproximação ao PMDB, que ganha cada vez mais poder, tem papel protagonista dentro do governo e dá as cartas. Há o enfraquecimento da figura da presidente, com baixíssima popularidade e muita contestação. Uma indignação justa, pelas crises que assolam o país. Não é só uma crise econômica; é política, ambiental (que ainda não vimos), metropolitana etc.
Assim, existe uma justa indignação, agora capitaneada por segmentos que podemos considerar mais à direita no cenário político. A isso se soma a proximidade dos movimentos mais institucionalizados e ligados ao PT, que fazem contraponto e dão “apoio crítico” ao governo Dilma.
De modo geral, temos o PMDB com um protagonismo muito grande e a presidente Dilma colhe os frutos da escolha que seu partido fez para se manter no poder.
Correio da Cidadania: Como enxerga o lulismo à luz desse momento?
Marcelo Castañeda: O lulismo apresenta sua agonia. Teve sua época áurea no final do segundo mandato do Lula, quando elegeria qualquer pessoa. Acabou elegendo a Dilma. Isso se nota no “grito do Lula”, através da necessidade que teve de começar a circular pelo país e praticamente antecipar a campanha para 2018 – tendo em vista que ele não sabe os desdobramentos possíveis da Operação Lava Jato, que a cada hora só aumentam o nível de comprometimento de pessoas próximas a ele.
É uma estratégia de defesa e de garantir o que ainda lhe resta de popularidade, que não é pouca. Mesmo se considerarmos que está afastado do poder desde 2010 e manteve-se relativamente calado durante a última campanha eleitoral, ele ainda teria 30% de intenções de votos.
No entanto, o lulismo se encontra um pouco descolado do que é o governo Dilma. Ao mesmo tempo, assume um papel de articulador político ao lado do PMDB e, de outro lado, faz uma espécie de crítica, como se ocupasse os dois espaços simultaneamente, numa onipotência que não sei como vai se sustentar ao longo de um mandato que só tem 9 meses.
Correio da Cidadania: O que achou das manifestações que marcaram o mês de agosto, tanto à esquerda como à direita?
Marcelo Castañeda: Como tinha falado, é uma pena que a justa indignação seja capitaneada por segmentos mais conservadores da direita. São Paulo, que é o maior termômetro, sem desprezar as outras partes do Brasil, teve uma manifestação forte no dia 16 de agosto, com grande número de pessoas na rua.
A pesquisa dos professores Pablo Ortellado e Esther Solano mostrou que, apesar do nível de renda ser extremamente alto, o perfil da manifestação não era de pleito pelo Estado mínimo. Pelo contrário, também se reivindicaram questões como saúde pública, educação pública...
Questões como a volta da ditadura são fragmentos que tentam refletir o todo. Ainda que seja um número alto de defensores dessa opção (25%), não era o hegemônico. Assim, temos de tomar cuidado ao avaliar atos como o do dia 16 de agosto.
Depois, teve a manifestação do dia 20, que mostrou que realmente “não vai ter golpe”. A Dilma tem base de sustentação em alguns movimentos, o que marca uma diferença em relação ao Collor em 1992. Em São Paulo, tal passeata foi bem menor do que no dia 16, mas ainda assim forte.
Não sei como as coisas vão se desdobrar daqui pra frente, mas vejo a hipótese do impeachment mais afastada. O que venho observando é um sangramento muito grande da Dilma. Desse modo, acho que ela chega muito enfraquecida ao final do mandato e, consequentemente, quem tentar sucedê-la acabará prejudicado.
No momento, mantém-se uma polarização, que é sórdida, entre PT e PSDB e sua alternância, ou não, no governo federal. Está faltando à institucionalidade uma via diferente, que rompa com isso. Não é o PMDB e tenho dúvidas também se a Marina e a Rede seriam tal alternativa, ainda mais depois da última campanha eleitoral.
Correio da Cidadania: Especificamente sobre o dia 20, convocado pelo MTST, que avaliação faz do ato, que pra muita gente acabou sequestrado e distorcido pelo governismo?
Marcelo Castañeda: Teve o viés de apropriação, mas seria cauteloso em colocar de forma simplista. São segmentos que têm preocupação legítima com a legalidade democrática, mas ao mesmo tempo são muito próximos do governo, de forma relacionada a políticas públicas específicas, a exemplo do MST e MTST, os dois principais sustentáculos da manifestação, e que são críticos do governo.
O problema é: enquanto se apostar no PT como alternativa ao campo das esquerdas, estaremos perdendo. Quando o PT se configura como “menos pior”, acaba sendo o “mais pior”, porque é, hoje, o principal dispositivo de gestão do capital no Brasil. O que precisamos, nos movimentos, é romper qualquer ilusão com o PT. Romper com a ilusão de que existem frações do partido que disputam hegemonia etc. A hegemonia está dada, desde o final da década de 90, e entregue aos interesses do capital e do mercado. O próprio Lula a representa muito bem.
Portanto, enquanto sociedade civil e movimentos tiverem ilusão de ser o PT o “menos pior”, não vamos conseguir avançar. Defendo ruptura total com o PT e fortalecimento da sociedade civil e dos movimentos, de forma que possamos influenciar qualquer governo. Assim, não penso que movimentos como MTST, ainda que tenha sua relevância e importância na configuração de espaços de moradia, uma luta importante, ou o MST, que tem um histórico de lutas importantes, possam dar conta de tais necessidades.
Por exemplo: o Stédile falou que se a Marina ganhasse a eleição, “ia ter ocupação de terra todo dia”. Ora, a Dilma está fazendo exatamente a mesma coisa que a Marina disse, no caso, o ajuste. E o Stédile não ocupa fazenda e terra todo dia. E olha que tem a Katia Abreu no Ministério da Agricultura. Como lidar com a ambiguidade dos movimentos, que criticam de um lado e apoiam do outro?
No momento, ou temos uma configuração clara de ruptura com essa ordem, que está posta há 13 anos, ou estamos juntos da ordem. O PT não assumiu o governo ontem, e, sim, se acomodou no poder. E é muito ruim manter tal relação. O “apoio crítico” só serve de respiro ao governo. Ou a gente pressiona por mudanças ou seremos engolidos por essa onda conservadora e mais à direita. O que já está acontecendo. A direita está muito fortalecida, pois está no governo e tem seus interesses atendidos; ao mesmo tempo, critica veementemente o governo e capitaliza a indignação popular. Um quadro muito complexo.
Correio da Cidadania: Como relaciona toda essa conjuntura com as manifestações de junho de 2013 e os ecos daquele momento? Considera que as esquerdas perderam, e talvez continuem a perder, uma grande chance de reorganização?
Marcelo Castañeda: Junho foi um acontecimento e um evento que pegou todos de surpresa, pra começo de conversa. Ninguém previa que podia acontecer aquilo no Brasil. Isso significa que as estruturas institucionais que identificamos à esquerda, como partidos e movimentos mais tradicionais e institucionalizados, não esperavam.
Foi um levante com características massivas. Aqueles 15 dias marcaram o Brasil e, ao mesmo tempo, não mudaram o Brasil. Não tivemos capacidade de articulação para estabelecer uma “frente constituinte”, no sentido de constituir formas alternativas de proposições, de governo etc.
Tivemos um levante que realmente abalou as estruturas e abriu uma brecha democrática. Que, a meu ver, representou a morte do PT, pois o partido, na época, optou pela repressão e criminalização. Naquele momento, a opção foi de fechar a brecha e fazer com que o sistema político voltasse a rodar em torno do próprio rabo. E isso realmente marcou, para mim, o fim de qualquer esperança em relação ao Partido dos Trabalhadores.
Colocando de forma simples, o que aconteceu depois de junho foi o fechamento progressivo dessa brecha democrática, com direito a momentos altos, como a “Copa das Copas”, encerrada com cunho nacionalista, e depois com as eleições, que achataram de vez qualquer possibilidade de alternativa. Aliado a todo o processo de criminalização, esteve o comando do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo.
Dessa forma, junho abriu uma brecha que não consigo saber em que momento conseguiremos abrir novamente. Do lado dos movimentos e articulações, há um esgarçamento e também certa disputa, além de uma desconfiança, gerada pela repressão. É complexo o panorama, mas junho foi o acontecimento mais marcante do período democrático, visto que a sociedade brasileira sempre foi vista como passiva, sem costume de ir para a rua...
De fato, antes de junho colocar 500 pessoas na rua era uma conquista. Hoje achamos pouco. E voltamos ao nível de mobilização anterior a junho de 2013. Realmente, não conseguimos nos organizar. E há a própria questão repressiva, que achatou a brecha aberta. O cenário não é nada animador. Não é labirinto ou beco sem saída, mas é um campo que terá de ser novamente semeado para colhermos algo mais à frente.
Correio da Cidadania: Em meio à recessão econômica e vazio político, como imagina que caminhará o governo Dilma nos próximos meses e anos?
Marcelo Castañeda: É bem delicada a situação, porque não há muito a fazer. A Dilma está marcada pelas eleições, quando vendeu um cenário de maravilhas no país. Agora, quando vamos ao mercado ou andamos pelas metrópoles vemos um cenário de desagregação social. Em Osasco teve aquela chacina que matou 19 pessoas, a estrutura da polícia militar continua uma coisa sórdida...
São coisas que não passam diretamente pela Dilma, mas, indo direto ao ponto, ela não tem muito que fazer politicamente. Vai ficar cada vez mais isolada, até porque não tem a habilidade do Lula, que sabia comunicar, se abrir, propor novas estratégias para lidar com a crise. Ela está totalmente na mão do mercado e do PMDB, que faz o que quer com ela. Provavelmente, vai ficar com uma popularidade menor que a de FHC, o que seria lamentável para o Partido dos Trabalhadores depois de 15, 16 anos no poder central.
Claro que tudo pode mudar. E não falo da pessoa, mas do que ela representa na presidência. Em vez de mostrar habilidade e propor saídas, ela assume que a crise já existia e prevê um 2016 muito complicado, conforme suas declarações recentes, dentro de um cenário global nada alentador.
O que realmente espero é que a gente não dependa apenas do governo, mas, enquanto sociedade, encontremos formas de lidar com a crise e pressionar o governo. Na verdade, o governo opera de forma quase autônoma. Há um deslocamento entre o campo político governamental e os anseios da sociedade, como se o primeiro jogasse um jogo separado do nosso. Mas precisamos influenciar o jogo. Nesse sentido, é o fortalecimento da sociedade civil que pode promover as maiores inovações. Do governo Dilma, não espero nada.
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Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas. (Os grifos são meus, José Carlos Alexandre)
(Com o Correio da Cidadania)
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