O “encantamento” de Domingos Montagner
Roberto Malvezzi (Gogó)
Várias pessoas me pediram uma palavra sobre a tragédia com Domingos Montagner. Como moro a 500 quilômetros do lugar de seu decesso, não tenho detalhes do fato. Mesmo assim, decidi fazer esse texto a partir do que sei do rio e do fato.
Minha mulher é beradeira do São Francisco, assim como nossos filhos e filhas. Ela sempre dizia aos meninos: “água não tem cabelo”. Ela mesma foi salva quando criança ao cair de um barco por uma pessoa que pulou na água quando viu apenas seus cabelos passando à flor da água. Foi salva pela cabeleira.
Eu conheci Domingos pessoalmente na oficina sobre o rio São Francisco que fiz para atores, diretores e produção no Rio de Janeiro. No intervalo da oficina conversamos bastante, junto com Letícia Sabatella – ia fazer o papel de Camila Pitanga – e Lucy Alves. Pessoa muito simples e muito cidadã.
Eu passava sempre por Canindé do São Francisco, indo ao baixo São Francisco. Há uma ponte que liga Alagoas (Piranhas) e Sergipe (Canindé). Quando se acaba de atravessar a ponte, está a referida prainha. Sempre muito quente, a vontade que dá é mesmo pular na água. Foi o que ele e Camila Pitanga fizeram.
Acontece que a referida prainha está apenas a uns 300 metros abaixo da barragem de Xingó. Era o final antigo do Cânion, hoje represado; logo abaixo, em Piranhas, o rio voltava a ser navegável. Hoje, com a barragem, a dinâmica das águas ficou modificada. O rio está raso, há muita pedra e muita correnteza, com poços profundos.
Quando eles decidiram ir mais para o meio do rio, não imaginavam o risco que corriam. Pelo relato de Camila, a força da água aumentou e, pior, havia um “remanso”, isto é, redemoinho na água que puxa para o fundo. Além do mais, ele tentou nadar contra a corrente, quando o normal seria descer com a correnteza, tentando se aproximar de outra pedra ou procurar a margem do rio.
A tragédia teria sido pior se ela tivesse pulado na água para salvá-lo. Estamos acostumados a ver o afogamento de duas ou três pessoas aqui no Velho Chico, quando um tenta salvar o outro, mas sem saber nadar direito ou sem técnica de salvamento. Esses dias dois irmãos morreram abraçados aqui na Ilha do Fogo, entre Juazeiro e Petrolina.
As lendas do São Francisco falam nos “encantados”, aqueles que estão ali presentes, mas são invisíveis aos nossos olhos. Assim são as pessoas, assim é o “vapor encantado”. A novela trabalha com essas lendas.
Impossível não ficar perplexos com essa situação. Só pude mandar um abraço aos atores e atrizes que conheci nesse contexto. Mesmo sem conhecer, aqui em casa pensamos muito na família real. Foi isso também que Letícia Sabatella me disse.
Domingos tornou-se mais um encantado do Velho Chico, um rio sofrido e cheio de mistérios.
(*) Roberto Malvezzi atua na Comissão Pastoral da Terra na região do rio São Francisco.
(Com o Correio da Cidadania)
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