120 anos do fim da Guerra de Canudos: uma ferida em aberto no Brasil (Canudos, além de Euclides da Cunha e de outras histórias. José Carlos Alexandre)
Imagem exposta no Parque Estadual de Canudos, que preserva dados e informações sobre os acontecimentos da época / Caio Clímaco
Caio Clímaco (*)
No mês outubro completaram-se 120 anos do fim da Guerra de Canudos. O massacre começou no dia 7 de novembro de 1896, quando a primeira expedição do Exército brasileiro foi destacada para combater os “conselheiristas” (nome dado aos seguidores de Antônio Conselheiro). No dia 5 de outubro de 1897, após 11 meses de intenso combate no sertão baiano, a guerra teve seu fim, levando à morte cerca de 20 mil conselheiristas e 5 mil soldados, além da destruição completa do arraial.
A guerra contra Canudos teve como saldo final a destruição total do arraial, o incêndio de todas as casas, o extermínio de prisioneiros civis, o abuso sexual, a prostituição e a degola de mulheres e crianças, deixando até os dias de hoje uma ferida em aberto no sertão brasileiro. O Exército havia cumprido, portanto, com o objetivo proposto pelo então presidente, Prudente de Morais, que chegou a fazer a seguinte declaração: "Em Canudos não ficará pedra sobre pedra, para que não mais possa se reproduzir aquela cidadela maldita".
Segundo o descendente de conselheiristas, historiador e monitor de turismo do Parque Estadual de Canudos, João Batista, a violência da guerra permaneceu durante bastante tempo no imaginário coletivo dos moradores da região. No início do século XX os professores temiam em falar de Canudos para as crianças na escola. Segundo João Batista, o assunto deixou traumas profundos na população local: “Temiam quando se ouvia alguma comemoração em que havia queima de fogos, as pessoas corriam pra suas casas ou fugiam para caatinga com medo de que fosse algum tiroteio ou alguma nova tentativa de se destruir Canudos”.
A segunda grande ingerência do Estado brasileiro sobre Canudos se deu após a guerra, no período da Ditadura Militar, quando a construção criminosa do açude do Cocorobó acarretou no alagamento intencional da região, na tentativa de abafar a crueldade, a vergonha e o fracasso das expedições do Exército.
O alagamento criminoso se insere no rol de iniciativas que historicamente cumprem o papel de retirar do povo brasileiro o seu direito à história, à memória e à Justiça. O governo dos militares prometeu abastecer 20 municípios da região através da construção do açude, mas o fato é que a obra sequer cumpriu com a demanda de abastecimento da própria Canudos.
Quem foi Conselheiro
Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, nasceu no ano de 1830 em Quixeramobim, no sertão do Ceará. Ao longo de sua história, foi ridicularizado pela imprensa republicana, sendo chamado de farsante, fanático, desvairado e inconsequente. Descendente de uma família de vaqueiros e pequenos proprietários de terra, foi desde jovem incentivado por seu pai, Vicente Mendes Maciel, a seguir a carreira sacerdotal. Teve o privilégio de aprender a ler e a escrever, numa época em que o acesso à educação era ainda mais elitizado que nos dias de hoje. Aprendeu também o latim, trabalhou como comerciante, professor, caixeiro e escrivão de paz.
Antônio Conselheiro encontrou na religiosidade o guia para a sua ação prática. Recebeu influências do Padre Ibiapina – que também inspirou o Padre Cícero através de suas missões evangelizadoras –, vinculando-se ao “catolicismo popular”, corrente que mescla crenças cristãs vindas da Europa e práticas indígenas e africanas. Como não se submete à hierarquia eclesiástica, é vista pelos setores conservadores da Igreja Católica como uma ameaça aos dogmas.
Conselheiro chegou a ser torturado, preso e acusado injustamente de ter matado a própria mãe e a esposa. No entanto, o que ocorreu foi a criação de um fato político por parte de setores da Igreja que eram contrários às suas pregações. Teve sua inocência comprovada, foi libertado e voltou para o sertão, dando continuidade as suas peregrinações. Após peregrinar incansavelmente por quase 20 anos pelo sertão nordestino, mobilizando o povo humilde e construindo igrejas e açudes, Conselheiro estabeleceu-se em Canudos em 1893, fundando, juntamente com seus seguidores, o povoado de Belo Monte.
Para Batista, os ideais e o trabalho realizado junto ao povo fez de Antônio Conselheiro um líder revolucionário do século XIX: “Antônio Conselheiro é um grande revolucionário porque em meio a toda a conjuntura social, política e econômica ele traz uma mensagem de libertação para o povo. Enquanto o povo estava sendo cativo, tentando viver uma liberdade que foi dada entre aspas pela Princesa Isabel, Conselheiro buscou uma liberdade real, convincente e em que todos eram livres dentro do movimento de Canudos.
Ao sair pregando pelo sertão uma mensagem de libertação contra a República, no qual se pregava um regime a favor dos coronéis e latifundiários, dos barões, ele estava lutando contra a correnteza, a favor dos pequenos, dos que estavam padecendo de fome, dos que estavam padecendo de sede. Conselheiro dá a eles essa esperança. Enquanto os padres daquela época pregavam de costas e em latim para o povo, Conselheiro pregava em meio ao povo, de forma clara, objetiva e numa linguagem que o povo do sertão conhecia e a partir daí a fé movia todo o povo.”
A formação de Belo Monte (Canudos)
No ano de 1893, Antônio Conselheiro e seus seguidores estabeleceram-se às margens do rio Vaza Barris, dando início à construção do povoado denominado por Conselheiro de Belo Monte, na região de Canudos. O nome “Canudos” advém, segundo Batista, de uma planta típica da região, o Canudeiro de Pito, comumente utilizada para fabricação de cachimbos.
Na virada do século XIX para o século XX, o sertão brasileiro vivia uma de suas mais profundas crises: miséria, fome, seca e superexploração. Os moradores que ergueram o povoado de Belo Monte eram de diferentes matizes: povos indígenas (entre eles os valentes Kiriris), escravos libertos, sem-terra, pequenos lavradores, ex-prostitutas e ex-cangaceiros.
Considerados pela imprensa como “fanáticos”, os moradores de Belo Monte eram um povo sem posses que recusaram a exploração senhorial e buscavam uma terra para seu sustento.
Interesses que motivaram a guerra
Três elementos são fundamentais para compreensão do massacre perpetrado contra o povoado de Canudos:
A ida dos sertanejos e de escravos libertos para o arraial acabou gerando escassez de mão-de-obra barata na região, atingindo diretamente os interesses dos fazendeiros donos de terras e gerando grande descontentamento por parte deste setor da sociedade.
A Igreja Católica passava por um processo de fortalecimento de sua estrutura hierárquica, em que apenas o representante oficial do Vaticano podia falar sobre as mensagens de Jesus Cristo. O questionamento de lideranças religiosas “leigas” foi intenso, na tentativa de deslegitimar aqueles que iam contra a corrente majoritária do Catolicismo da época.
A recém-proclamada República do Brasil (1889) encontrava-se em crise econômica e passava por uma instabilidade política, sendo que a guerra aberta contra Canudos serviria para aglutinar e buscar a unidade e o apelo popular em torno do regime republicano.
Canudos hoje
Após ser destruída por duas vezes, a cidade foi reconstruída e atualmente está localizada a 13 quilômetros do antigo arraial, área onde atualmente se encontra o Parque Estadual de Canudos, inaugurado no centenário da guerra em 1997. O massacre de Canudos não teve reparação e as condições atuais de vida do povo canudense são bastante difíceis diante da falta de emprego, da carência de investimentos e programas sociais que possibilitem a superação da pobreza na região.
Atualmente a economia da cidade se desenvolve, principalmente, através do comércio e da produção de banana, sendo que a grande parte da população sobrevive através da prestação de serviços e da aposentadoria. A infraestrutura do município é bastante precarizada, demonstrando que o descaso com o povo e com a história do local continuam vigentes ainda nos dias de hoje.
Para se ter uma ideia, a agência do Banco do Brasil do município não disponibiliza o serviço de saque nos caixas eletrônicos devido aos vários assaltos ocorridos no local. Além disso, a cidade não possui sequer um terminal rodoviário, e o embarque e desembarque de passageiros se dá em meio às ruas esburacadas e sem pavimentação.
Para além do descaso dos poderes públicos com a infraestrutura local e com as condições de vida do povo canudense, a história de Canudos também é algo que não é valorizado pelos organismos públicos. O motoboy João Camilo, 35 anos, afirma que os visitantes conhecem mais sobre a história de Canudos do que a própria população local, pois segundo ele, não há por parte das instituições públicas um esforço suficiente para resgatar essa importante história de luta e de resistência.
Para Batista, o contato com a história de Canudos é fundamental para compreensão e para a construção da identidade: “O sentimento de pertencimento deve acontecer continuamente porque vem surgindo novas gerações e é preciso construir a ideia de que é necessário lutar pela memória da guerra e da história de Canudos. Não da guerra de Canudos em si, mas a memória, pois somos descentes desse povo. Cerca de 60% das pessoas que vivem em Canudos são descendentes do povo que lutou na guerra, por isso é preciso trabalhar bastante a nossa identidade.”
Segundo Batista é necessário também narrar a história de Canudos pelas lentes dos remanescentes do local, pois muita das vezes a história que se conta sobre o lugar carrega uma perspectiva preconceituosa e conservadora, distante dos valores praticados no arraial: “A guerra de Canudos não foi uma guerra de Canudos, foi uma guerra contra Canudos. O povo de Canudos não procurou guerra, estava defendendo seu lado, defendendo sua história, seus sonhos, seus ideais que foram construídos a partir da partilha, da comunhão, da fé e da pregação de Antônio Conselheiro”.
Diante da complicada situação em que o povo canudense se encontra, Batista é categórico ao responder sobre o que deveria ser feito por parte do governo brasileiro para se buscar uma reparação: “Para reparar tudo que foi feito no palco de guerra com os filhos e filhas de Canudos não tem preço, mas investir em políticas públicas e educação seria uma tentativa, um início, para poder reparar um pouco isso. É o que nosso país clama: educação, por tudo que é canto.
É necessário inserir Canudos no contexto da história para que as pessoas saibam o que foi realmente o movimento e a partir de uma linguagem que não diga que somos os matutos, mas sim homens e mulheres de fibra que lutaram por seus ideais, que tentaram viver uma vida mais digna longe das intervenções do governo, mas com dignidade, fé, luta e resistência no sertão, pois intervenções positivas por parte do Estado não ocorreram de forma alguma por aqui.”
(*) Caio Clímaco é comunicador popular e militante da Frente Brasil Popular
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(Com o Brasil de Fato)
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