O PARAÍSO EM SUAVES PRESTAÇÕES

Somos, todos nós, vítimas em potencial dos

bem nutridos gurus que nos fazem consumir


Hermínio Prates (*)


Pesquisa encomendada pelo comércio varejista chegou à conclusão que as classes D e E continuam sem dinheiro, mas dispostas a comprometer o parco salário em infindáveis prestações. Classe D, como decidiram os pesquisadores, é aquela que tem renda familiar de até quatro salários mínimos e a E pouco mais de mil reais, bem abaixo do que seria necessário para a sobrevivência de uma família de até quatro pessoas.

Segundo a ABEP – Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa -, quase 85% dos brasileiros estão no que imaginam ser o nirvana do consumismo. Índice idêntico aos que aprovam o governo do torneiro-mecânico que não deveria ter dado certo, para desencanto dos mandarins que trafegam pela paulicéia cada vez mais desvairada com a implosão da serra dos desiludidos.
O estudo, tido como científico, garante que a atual euforia consumista é idêntica àquela do início do Plano Real, quando os sem teres e haveres acreditavam ter alcançado o paraíso. E tome compras, sempre com crediários a perder de vista, para alegria dos lojistas, barões dos bancos e de financeiras e economistas de aluguel que teorizam para os donos do poder, pois estes sempre ganham com ou sem estabilidade da moeda.
Não sou especialista em economia, mas nem é preciso para perceber que o que está acontecendo não é nenhum milagre. Simplesmente os mesmos “afortunados” que hipotecaram a alma nos infindáveis crediários finalmente pagaram a última prestação e estão propensos a começar tudo de novo, pois o consumismo é a ideologia reinante. É preciso comprar, mesmo que para cada real referente ao custo do bem adquirido se paguem dois ou três a título de juros, taxas, ou que outro nome tenha nesse sucedâneo da mais-valia desenfreada.
Somos, todos nós, vítimas em potencial dos bem nutridos gurus que nos fazem consumir. E para facilitar o trabalho de convencimento em massa até fatiaram a sociedade em castas, sempre de acordo com o que cada um tem e não com o que cada um é. Para eles, o importante é TER e não SER.
Nessa linha de raciocínio a televisão - e a Globo, por excelência - força o consumo, inclusive com artificiosas mentirinhas, que seriam “inocentes” se não fizessem parte da grande estratégia da enganação.
Exemplo? Outro dia a televisão mostrou fila enorme de jovens que passaram a madrugada ao relento e, na manhã seguinte, disputaram aos empurrões e aos milhares não uma vaga na universidade e muito menos um emprego com salário gordo, mas, simplesmente, o direito à aquisição de um celular de última geração, que filma, fotografa, dá acesso à internet, disponibiliza webcam, baixa filmes e clips musicais e, além de outras miuçalhas virtuais, até permite as ligações convencionais. Uma estupidez dessas, merecedora de uma reprimenda educativa, foi incensada em todos os canais noticiosos como se fosse a chegada do homem a Marte. Mocinhas e mocinhos, patricinhas e mauricinhos abnegados dos templos do consumo fútil, foram entrevistados e disseram do grande sacrifício e da incalculável conquista que foi a aquisição do artefato eletrônico, ao custo de quase dois mil reais. Imaginem a inveja e a frustração dos milhões de adolescentes que viram ou ficaram sabendo dessa oitava maravilha da modernidade, a que não terão acesso. Nada também foi dito que a sangria não era desatada, pois nos próximos dias chegaria às lojas aparelhos de mesma sofisticação e de menor preço.
E a televisão, na ânsia de fazer mais uma louvação aos que sugam, em gotas mensais, o ralo sangue dos consumidores deslumbrados, incentiva a ida às lojas de tudo quanto há e aos balcões que vendem dinheiro. É preciso fazer circular a riqueza – asseguram os sacanas – mas escamoteiam que só resta a pobreza para aqueles que se escravizam sob o cabresto da publicidade bem urdida.
A televisão, que ainda é a ponta-de-lança nesse ataque contra os desvalidos e a favor da enganação, nunca quis saber do eterno conflito entre o plim-plim da caixa registradora e a responsabilidade social de um veículo que deveria assimilar a defesa da sociedade.
Todos se lembram que a mídia, no reinado de Fernando II – o sociólogo do ócio e não o caçador de marajás -, na ânsia de agradar aos neoliberais de plantão - ou, quem sabe, justificar a gorda fatura publicitária -, transformou a desprotegida dona Maria em símbolo daquele país de economia “forte”, desenvolvimento “crescente” e moeda “estável”. Depois do frango, do iogurte e da dentadura, o reeleito ociólogo do nhém nhém nhém se divorciou da gentalha e decidiu transformar o computador em novo símbolo da inserção social, embora milhões ainda não pudessem comprar e nem soubessem para que servia aquela “televisão” cheia de mistérios que só uns poucos dominavam e usufruíam.
Não teria sido mais ético e útil se a imprensa tivesse usado a mesma dona Maria das prestações sem fim como motivo para um correto proceder de autêntico jornalismo, esse mesmo jornalismo que o finado Papa João Paulo II reconheceu como sendo o real objetivo dos meios de comunicação? É, o homem de branco disse que o jornalismo deveria ser usado como defensor dos oprimidos e enriquecedor cultural da humanidade. Se não foi isso, foi quase, pois o que disse o Cardeal Karol Woytilla sempre teve muito valor nesse mundo globalizado, embora não possa ser aceito como santo dizer, pois o passado de colaboracionista dos nazistas e de incentivador da ganância ocidental sobre o patrimônio coletivo dos países que nunca se esconderam atrás de cortina de ferro nenhuma, deve ser analisado sob a ótica da isenção. Aliás, a expressão “cortina de ferro” foi dita por Joseph Goebbels, repetida por seu sucessor, Johann Ludwig Graf Schwerin von Krosigh, mas quem dela se apropriou foi o esperto Winston Churchill, mestre em anotar, incluir em discursos e posar como dono de falas alheias.
Voltando ao release eletrônico. Imagine que impacto teria uma reportagem televisiva com a dona Maria, mostrando-a como realmente é, ou seja, uma mulher sozinha, discriminada, sub remunerada (também por ser negra e mulher), sustentando uma adolescente com o minguado salário, sem ter podido estudar por falta de escolas, tempo e condições, já que criou sozinha a filha, sofrendo com a violência urbana, morando longe e sem as mínimas condições urbanísticas, transporte caro e insuficiente e uma infinidade de mazelas para listar?
Essa sim, teria sido uma boa reportagem, mas a que se diz grande imprensa prefere o embuste, a manipulação dos fatos, os sofismas dos que defendem o status quo que favorece sempre aos que têm uma fatia do poder e não aos que são os verdadeiros heróis, mesmo no anonimato.


(*) Hermínio Prates é jornalista
(Imagem: Latuff/Divulgação)

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