Dandara e a luta por habitação em Belo Horizonte
Ocupação urbana demonstra importância de experiências comunitárias no acesso a moradia e revela falhas do setor público no cumprimento do Estatuto da Cidade, expondo a primazia da especulação imobiliária sobre a função social da propriedade
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Felipe Magalhães, Douglas Resende (*) |
Em meio à cidade, na regional da Pampulha, norte de Belo Horizonte, repousava ocioso um robusto terreno de 40 hectares, que há cerca de quarenta anos não tinha qualquer proveito ou função social. Inserido num contexto urbano repleto de desafios, sendo o acesso a moradia um dos principais – a capital mineira tem um déficit habitacional de 50 mil moradias –, quedava descampado o terreno até abril de 2009, quando 150 famílias o ocuparam, articuladas pelas Brigadas Populares e pelo MST.
Propriedade da construtora Modelo e acusando uma dívida de mais de R$ 2 milhões em seu IPTU, o terreno foi ocupado em 15% de sua totalidade. Logo depois, diante da concretização da ocupação, as lideranças da ação reuniram uma equipe de profissionais das áreas do urbanismo, da geografia e do direito, para elaborar um projeto urbanístico de ocupação de toda a gleba. Nesse momento, a ocupação, batizada de Dandara, começou a assumir seu caráter original. O objetivo era ter um planejamento que alcançasse alto grau de legitimidade diante do Estado, respeitando a legislação urbanística atual, apoiando-se na lei federal do Estatuto da Cidade, de 2001, e sua exigência da função social da propriedade; as questões ambientais, preservando a parte determinada como Área de Preservação Permanente (APP), assim como as nascentes e o córrego Olhos d’Água, que serpenteia às margens do terreno; e, por fim, as questões urbanísticas, respeitando os padrões de parcelamento e ocupação da legislação municipal,1 e criando boas condições para uma eventual introdução de infraestrutura. Em pouco tempo, mais de mil famílias estavam construindo casas de alvenaria, num processo de autoconstrução, e com isso consolidando a ocupação. No contexto político-social de Belo Horizonte, por surgir num momento de crescente tensão entre uma política municipal conservadora e a insatisfação de setores diversos da sociedade, a Dandara se tornou um dos principais emblemas da luta pelo direito à cidade, tendo sua comunidade participado ativamente das principais manifestações políticas locais. A Dandara tornou-se “o maior conflito social urbano hoje no Estado”, como nos disse Joviano Mayer, líder das Brigadas Populares, e teve ao mesmo tempo reconhecimentos simbólicos relevantes recentemente. Num deles, o projeto da ocupação foi selecionado para participar da Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, no final de 2011. Em outro, o Graveola e o Lixo Polifônico, banda do cenário independente da cidade, reuniu num show na Dandara mais de mil pessoas de fora da comunidade. “Entendemos que o ponto de equilíbrio entre a remoção e a negociação é o ônus político que o despejo representaria”, comentou Mayer. “Chegamos à situação – para nós inusitada – de um desembargador do Tribunal de Justiça nos chamar a seu gabinete para lhe dar conselhos.” O acesso a terra A importância do caso Dandara transcende a questão particular do problema do acesso a moradia das famílias envolvidas, passando a expor a natureza dos conflitos em torno do direito à cidade no contexto atual, marcado por uma dinâmica de valorização imobiliária em patamares inéditos (que causa uma ampla reorganização da cidade), cujos principais beneficiários são os capitais que atuam no setor imobiliário, gerando uma nova rodada de expulsão dos mais pobres para áreas mais distantes. “Essa ação [da Dandara] coloca o dedo na principal ferida: o maior problema urbano no Brasil tem menos a ver com a questão da moradia em sentido estrito e mais com a questão do difícil acesso regular à terra urbana –2 não qualquer terra, mas terra bem localizada e com serviços”, nos disse, em entrevista por e-mail, o pesquisador Edésio Fernandes, uma das principais referências do país na área do direito urbanístico.“A construção/melhoramento das moradias informais tem sido feita pelos ocupantes há décadas, em processos individuais e/ou de mutirão; a iniciativa Dandara mostra que, com o apoio de outros atores (sobretudo organizações políticas e universidade), as comunidades também podem ser participantes ativas – juntamente com a administração do município – do processo de urbanização das áreas”. Qualquer resistência a esse projeto de elitização (e gentrificação) da cidade deve, portanto, ter uma preocupação central com o espaço, pois esse é um elemento-chave na produção da cidade neoliberal: ela se concretiza produzindo o espaço urbano a seu modo. Daí a relevância de ações diretas (que não deixam de ser uma forma de planejamento urbano democrático) como Dandara, que não só entram no embate direto pela justiça socioespacial, mas proveem elementos para novas formas de pensar a questão da habitação e a própria metrópole contemporânea.3 Assim, Dandara é também um caso emblemático de um processo que se repete em qualquer grande cidade brasileira: a primazia da especulação imobiliária sobre a função social da propriedade. A ocupação representa um caso claro em que a aplicação desse princípio constitucional garantiria o direito a moradia para centenas de famílias, desestimulando que novos casos de não utilização de áreas em regiões dotadas de infraestrutura urbana (esperando que as regras sejam alteradas para que a valorização dos terrenos se torne mais elevada em função de potenciais construtivos mais generosos) sejam reproduzidos na metrópole, onde a carência de habitação de interesse social permanece um dos principais problemas. “A verdade é que, historicamente, o Estado brasileiro, sobretudo na esfera municipal, não tem agido no sentido de determinar/reservar espaços adequados para que os pobres possam viver em áreas centrais e com alguma medida de integração socioespacial, deixando, ao contrário, que as forças de mercado determinem as condições de acesso a terra e contribuindo para a natureza excludente desse processo com leis urbanísticas elitistas, gestão urbana tecnocrática e burocrática, e concentração de equipamentos e serviços em poucas áreas das cidades”, disse-nos Fernandes. “O paradigma jurídico da função social da propriedade, juntamente com o princípio constitucional do direito social de moradia, já permitem articular todo um discurso jurídico consistente para enfrentar essa questão de outra maneira, e com outro vigor, do que fazem as interpretações tradicionais, que com frequência se baseiam em uma leitura ultrapassada do Código Civil.” BH na contramão A capital mineira tem, a propósito, uma trajetória nessa área considerada de vanguarda no Brasil, desde o programa Pró-Favela, de 1983, “o qual teve grande influência na conformação da nova ordem jurídico-urbanista nacional”,4 ganhando impulso com as políticas progressistas das gestões petistas ao longo dos anos 1990. Na última década, no entanto, especialmente a partir da gestão de Fernando Pimentel, houve uma inflexão nessa trajetória da gestão urbana municipal, e atualmente “Belo Horizonte está na contramão da história sociojurídica contemporânea”.5 Um dos motivos que explicam a mudança de rumos é a “burocratização” de lideranças dos movimentos sociais que exerciam forte influência na política urbana, mas que com o tempo foram perdendo a capacidade de diálogo com os conflitos atuais, conforme nos ressaltou o urbanista Tiago Lourenço Castelo Branco, que coordenou a elaboração do projeto Dandara com uma equipe da UFMG e da PUC-Minas. A falta de diálogo entre a prefeitura e essas ocupações mais recentes na cidade foi ressaltada pela urbanista Raquel Rolnik, relatora da ONU para o assunto da moradia, que depois de visitar a ocupação em 2010 foi recebida por Márcio Lacerda em seu gabinete e nos relatou, numa entrevista, a deliberada ausência de disposição para o diálogo por parte do prefeito.6 Um ano depois, no último mês de dezembro, numa oficina pública realizada na regional de Venda Nova, da qual participamos, Lacerda declarou aos representantes da Dandara que a prefeitura não tem nenhum projeto para a área, que não pode tolerar invasões dessa natureza (apesar de reconhecer áreas irregulares já consolidadas e mais antigas), pois incentivaria novos casos de “invasão”, e que tal postura seria simplesmente um cumprimento do aparato jurídico institucionalizado hoje. Fernandes nos afirmou que tal fala ilustra bem o caráter “reacionário” da administração do atual prefeito e que é salutar que as lideranças da comunidade demonstrem como sua ação é “essencialmente propositiva e construtiva, e tem base na nova ordem jurídico-urbanística”.
(*) Felipe Magalhães
Economista e doutorando em Geografia na UFMG(*) Douglas Resende Jornalista Ilustração: Douglas Resende 1 Foi traçado um parcelamento arejado respeitando a Lei do Uso e Ocupação do Solo de Belo Horizonte, com lotes de 128 metros quadrados, e o Plano Diretor do município em sua lógica viária. 2 É justamente pelo fato de não lidar com o problema do acesso a terra que o programa Minha Casa Minha Vida reforça tendências do próprio mercado de distribuição da população no território segundo seu poder aquisitivo, impedindo que em cidades como Belo Horizonte (onde já não há mais espaço via mercado para a moradia voltada para a população de baixa renda) os mais pobres tenham qualquer chance de ser atendidos pelo programa, sendo expulsos para outras localidades na região metropolitana. A maioria dos municípios não tem visto com bons olhos essa migração de baixa renda oriunda da capital, por se tratar de grupos que em geral continuam trabalhando lá, mas exercendo fortes pressões sobre os serviços públicos locais e com possibilidades nulas de incrementar receitas municipais via IPTU. Não por acaso muitos desses municípios metropolitanos esforçam-se bastante, e têm sido bem-sucedidos em sua maioria, na atração de condomínios residenciais de alta renda cercados. 3 Edésio Fernandes afirmou, na entrevista, que “o caso Dandara questiona o mito de que o planejamento é uma ‘narrativa única’, monopólio da administração pública, tendo os planos comunitários (a exemplo dos community plans existentes em outros países) seu lugar e sua importância”. Há muito, os teóricos do planejamento urbano e regional insistem que, em sociedades que se pautam pelo fortalecimento de práticas democráticas, essa função não pode ser exclusiva do Estado (ver, por exemplo, John Friedmann, Planning in the public domain [Planejamento no domínio público], e Marcelo Lopes de Souza, Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbanos). 4 Idem. 5 Idem. 6 Felipe Magalhães e Douglas Resende, “As ameaças ao direito à moradia em Belo Horizonte”, Revista Fórum, n.94. (Com Le Monde Diplomatique) |
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