O imperialismo dos direitos humanos e a falsidade das suas premissas
A universalização dos direitos humanos (que também aparece como “difusão dos valores da democracia”) não é construída sem intenções: é apenas uma nova justificativa para o exercício de um novo poder mundial, no caso dos Estados Unidos
Ronaldo Bastos (*)
Le Monde Diplomatique
Hoje é muito discutida a questão da universalização dos direitos humanos. Conectado a esse paradigma, que é contestado e contestável, emerge um problema difícil de ser resolvido, que consiste em saber como fica a autonomia dos Estados num contexto em que eles, enquanto signatários da Carta das Nações Unidas, seriam corresponsáveis pelo estabelecimento do chamado sistema de “governança global” e, por conseguinte, teriam que respeitar e promover o direito internacional dos direitos humanos.
No século XXI, isso tem uma importância ainda mais abrangente, pois, principalmente após 1989, com o desmantelamento da União Soviética e a ascensão dos Estados Unidos como única superpotência mundial, fica evidente, na política externa norte-americana, o imperialismo desempenhado pelos (e em nome dos) direitos humanos. Isso porque tal política consiste na invasão dos mais variados Estados (é só pensar nas invasões ao Iraque e ao Afeganistão e, mais recentemente, na discussão sobre a invasão da Síria) para a aplicação da democracia ou para o enfrentamento da “guerra contra o terror”. Como é notório, ambos os objetivos dizem respeito à universalização dos direitos humanos, vale dizer, universalização de uma específica forma de governar e guiar o Estado.
Segundo Hobsbawm,[1] o imperialismo dos direitos humanos tem características peculiares. Em primeiro lugar, parte da proposição da legitimidade e até da necessidade de intervenções armadas internacionais para introduzir ou impor os direitos humanos em uma era de crescente barbárie. Em segundo lugar, os regimes tiranos seriam imunes à mudança interna, de modo que apenas a força armada externa poderia conduzi-los a adotar os valores e instituições políticas ocidentais. Em terceiro lugar, acredita-se que tais instituições podem ter êxito em qualquer lugar e, assim, cuidar eficazmente dos problemas transnacionais e trazer a paz ao invés de instaurar a desordem.
O objetivo deste artigo é problematizar essas premissas.
Quanto à primeira, embora os direitos humanos sejam o instrumento apto para acabar com a barbárie e instaurar a ordem, não é o que vimos no Afeganistão e no Iraque – os dois últimos países que os Estados Unidos interviram nos últimos tempos. Para só ficar num exemplo, uma pesquisa da Escola de Saúde Pública John Hopkins Bloomberg estimou que ocorreram mais de 600 mil mortes no Iraque desde a ocupação da coalizão liderada pelos norte-americanos, embora menos de um terço (26%) tenha sido atribuído aos militares da coalizão que invadiu o país de Saddam Hussein.[2]
Isso revela que a invasão do Iraque, que deu origem a uma guerra civil sem precedentes neste país, ao contrário de semear a ordem, provocou a barbárie, e hoje, mesmo com a retirada das tropas do Iraque, esse país não conseguiu retomar o controle administrativo que possuía antes da invasão.
Quanto à segunda premissa, embora alguns países só consigam mudar as suas estruturas políticas a partir de uma ação externa, não é o que vimos com os recentes acontecimentos que originaram a “Primavera Árabe”. Na Tunísia, após um jovem atear fogo no próprio corpo em razão das condições de vida do país, o então presidente Zine el-Abdine Ben Ali, pressionado pela situação e pelos protestos que se multiplicavam, fugiu para a Arábia Saudita.
No Egito, os manifestantes, inspirados pela situação da Tunísia, foram às ruas e provocaram a renúncia de Hosni Mubarak. Nenhum desses países recebeu ajuda do Ocidente, assim como as suas revoltas não foram fruto de uma intervenção internacional. É claro que é possível o contra-argumento, no sentido de que não houve a instauração de uma democracia liberal, mas houve, inegavelmente, alguma mudança no modo de fazer as coisas.
Por fim, quanto à terceira premissa, embora os direitos humanos possam ser aplicáveis em qualquer lugar e serem instrumentos competentes para resolver os problemas de qualquer sociedade, essa assertiva incorre em um erro fundamental, que é a ideia de que os atos de força podem produzir de imediato grandes transformações culturais.
O problema é que a menos que já existam condições favoráveis na sociedade receptora dos direitos humanos, como a possibilidade de adaptação (o que exige certa flexibilidade cultural) e aceitação da nova política, há chances bem remotas de uma manobra desse tipo dar certo. O argumento de Hobsbawm é nesse sentido: “A democracia, os valores ocidentais e os direitos humanos não são como produtos tecnológicos de importação, cujos benefícios são óbvios desde o início e que são adotados de uma mesma maneira por todos os que têm condições de usá-los, como uma pacífica bicicleta ou um mortífero AK-47, ou serviços técnicos, como os aeroportos. Se fossem – continua o autor – haveria maior similaridade política entre os numerosos Estados da Europa, da Ásia e da África, todos vivendo (teoricamente) sob a égide de constituições democráticas similares”.[3]
Outra crença bastante antiga, que dá base a essa premissa, é que é possível universalizar a democracia porque ela se trata de uma técnica. Em primeiro lugar, a política é composta por uma série de valores específicos e não há sistema de governo que possa desprezá-los, e, nesse sentido, a democracia não pode ser aplicada de forma padronizada (vale dizer, ocidentalizada) em todos os lugares.
Em segundo lugar, é possível que a (ilusória) neutralização gerada pela noção de que a democracia é uma técnica gere injustiças que contradigam a própria formação dos direitos humanos. É só pensar, como alerta Marcelo Neves, no caso de ordens indígenas que “violam” os direitos humanos ocidentais, como aquelas que matam os recém-nascidos que nascem com alguma deficiência física. Uma aplicação superficial do “universalismo dos direitos humanos” poderia gerar uma “ultracriminalização” de toda a comunidade de autores e coautores dos referidos “atos criminosos”.[4]
Por fim, como já advertiam Adorno e Horkheimer, ainda que se referindo à indústria cultural, o campo onde a técnica atua é o espaço dos economicamente mais fortes e a padronização daí originada não é um imperativo da técnica enquanto tal, mas da sua função específica na economia atual. Isso porque a técnica carrega uma “neutralização” cuja função é eximir o sujeito de assumir as responsabilidades por sua ação. Isso vale para qualquer um que decide: do magistrado (que supostamente não decide por si, mas “aplica” as leis, e faz parecer que a decisão, como já criticava Kelsen, é um “ato de conhecimento” e não um “ato de vontade”) ao político (que não fala por si, mas pelo “povo”, embora nas democracias indiretas e nas semi-diretas o “povo”, após a escolha eleitoral, praticamente não tem ingerência sobre as decisões dos seus “representantes”).
O problema é que esta padronização, criada pela técnica, não se restringe mais à indústria cultural da época dos teóricos frankfurtianos e agora ela se irradia por caminhos ainda mais globais – os sistemas políticos. A alienação cultural, assim como a alienação religiosa, é uma alienação ainda parcial, mas a alienação da política, assim como a da propriedade privada (da qual Marx se queixava), é muito mais abrangente, pois diz respeito à própria sobrevivência.
O perigo na proposta de universalização dos direitos humanos está no fato de que a sua aplicação é feita por meio de intervenções militares (Iraque e Afeganistão) e de embargos econômicos (Cuba), ambas envolvendo a vida de muitos civis. Todos os Estados que não permitem a livre circulação (seja de capital, seja de pessoas: ambas com fins mercadológicos) escolhem com quem querem lidar: com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e o Conselho de Segurança da ONU, no caso de intervenções militares (foi o caso de Kosovo), ou a Assembleia Geral da ONU, no caso das sanções políticas (é o caso do Irã).
Uma conclusão possível é que, afora os efeitos simbólicos, o que está por trás da universalização dos direitos humanos é a possibilidade da livre circulação do capital. E antes que os conservadores de plantão comecem a esbravejar, entendemos que isso não é tão difícil de ser verificado. Em primeiro lugar, não existe o menor interesse em promover a igualdade social (a menos que a desigualdade interfira no poder de compra de mercadorias) e o controle estatal da economia (a não ser quando o sistema capitalista está em crise, como é o caso desde 2008; nessas horas, o velho burguês, que contesta tanto o Estado “grande”, corre logo para ele em busca de salvação).
Em segundo lugar, é só pensar na preocupação dos Estados Unidos e da União Europeia (e, de certo modo, do Ocidente em geral) com a chamada “Primavera Árabe”. De fato, embora os governos ocidentais apoiassem o movimento “pró-democracia”, que incluía a disseminação dos valores “universais” da liberdade, eles começaram a ficar incomodados com o teor emancipatório do movimento egípcio: é que mais do que a liberdade de mercado, os manifestantes queriam a justiça econômica e social.
Ambiguidades desse tipo (“queremos democracia, pero no mucho”) acontecem porque a despeito do universalismo dos direitos humanos ser algo novo, propostas universalistas não são bem uma novidade na história das ideias, assim como também não são novidade propostas universalistas que fundamentam e, ao mesmo tempo, escondam os reais motivos por trás das ações dos grandes impérios. O Império Britânico, por exemplo, dizia que o uso do seu poderio naval tinha por fim “abolir o tráfico de escravos”, bem como, no século XIX, os neocolonialistas exploravam os Estados africanos e, em troca disso, levavam a esses povos (supostamente) “atrasados” os “benefícios da civilização”.
No século XVI, os jesuítas ibéricos “salvavam as almas dos índios” e um pouco mais atrás os cruzados conduziam uma “guerra santa”. Portanto, a universalização dos direitos humanos (que também aparece como “difusão dos valores da democracia”) não é construída sem intenções: é apenas uma nova justificativa para o exercício de um novo poder mundial, no caso dos Estados Unidos. A pretensão de universalismo de grandes impérios é uma ideia tão velha quanto a história; a novidade sempre está nas justificativas que fundamentam as pretensões universais, e não propriamente na construção de universais.
A nossa tese é que a ideia da universalização dos direitos humanos é uma hipótese improvável; isso porque, enquanto cultura, os direitos humanos fazem parte de uma tradição muito específica – a civilização ocidental. Mas, embora não seja o nosso objetivo discutir a universalização em termos tão abrangentes, o que conduziria este breve artigo ao problema do multiculturalismo, e embora a proposta de universalização seja provavelmente falsa, o problema não é só epistemológico. Antes fosse. Do ponto de vista político, essa é uma tendência tanto atual quanto perigosa, pois esconde o imperialismo por trás de intenções pacifistas e garantidoras de dignidade.
(*) Ronaldo Bastos - Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e autor de “O conceito do direito em Marx” (Ed. Sergio Antonio Fabris, 2012)
[1]HOBSBAWM, Eric. Prefácio. In: Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, pp. 14-15.
[2]JOHN HOPKINS BLOOMBERG SCHOOL OF PUBLIC HEALTH. Updated iraq survey afirms earlier mortality estimates. Disponível em: . Acesso em: 29 jan. 2012.
[3]HOBSBAWM, Eric. Prefácio. In: Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 18-19.
[4]NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 266.
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