Você vai se deliciar com uma cidadezinha mineira: Passa Tempo, a "Cidade do Aconchego"
Fátima de Oliveira
O povo de Passa Tempo sabe como passar o tempo. Festa de música, campeonato de truco, barzinhos abertos até alta madrugada, praça cheia de gente, pessoas fora de casa aproveitando a luz da lua, o frio gostoso que começa mais cedo por lá, trocando prosa, conversando atoa, sendo feliz.
E porque tudo isso? Comemorava-se alguma coisa? Era aniversário da cidade? Do santo padroeiro? Não era nada. Comemorava-se mais um dia, um dia qualquer. Mas lá em Passa Tempo as pessoas sabem passar bem o tempo. E tudo é assim, meio festa.
A noite começa na pizzaria Aconchego. Que nome apropriado! A cachaça com lima está apenas abrindo a noite que segue entre um barzinho e outro para fechar no Bar do Adriano, o Waldemar, gente boa atendendo e nas vagas joga porrinha. Perde, mas a amizade é a mesma. É o riso solto e a comemoração da amizade, o violão sem corda, o artesanato pregado na parede do lugar. Tem Bianc, Conrado, Alan (Lelé da flor), Marinho e Dezinho, Virginia e Fátima. E como dizem, o melhor caldo de mandioca da cidade, mas o pior limão do mundo.
E a noite não quer acabar!
GOIA
No Hotel Goia (Francis e Flávia) a mesa do café da manhã está lotada de comida mineira. Pão de queijo, biscoito de polvilho azedo e doce, bolo de milho, broa de fubá de canjica, rosca da rainha, biscoitinhos de maisena e queijinho mineiro. O café forte vem da roça, assim como os alimentos. Um pobre melão da cidade grande fica lá, vendo os quitutes saírem e a vez dele não chega. Quem mandou não ser da terra!
Saindo de lá devemos ficar espertos, pois a loja de “Presentes Goia” propriedade da Flávia do Francis é outra tentação. Da cozinha, passando pela copa até a sala objetos decorativos nos distraem e quando se vê está lá uma divida sem tamanho. Mas compensa. E tem outra loja na cidade vizinha. Desta conseguimos nos safar, era domingo de noite.
O almoço é na tapeçaria “Porão 181”, da Suely Silva Amorim, mãe de Bianc, publicitário e promotor das festas da cidade. O cozinheiro é o Sr. Perácio que domina o fogão como nenhum outro. Lá vem o angu com feijão, quiabo com frango, arroz branquinho e o melhor lombo que já comemos. Nos perdemos no sabor da tradição mineira.
Vale a pena conversar com Sr.Perácio, conhecer as histórias da música regional, o bom gosto de um músico que tocava clarinete na banda e que aos 73 anos ainda canta clássicos de Lupicínio Rodrigues e Ataufo Alves. Basta cutucar que ele solta a voz lembrando-se de óperas famosas como Nabucodonosor, de Verdi.
A tarde fresca nos recebe a caminho do quilombo “Cachoeira dos Forros”, onde cerca de 200 pessoas, de 72 famílias lutam pela preservação de suas tradições. Apesar das grandes dificuldades, pois o lugar não tem sequer rede de internet, dificultando o sistema de comunicação e as possibilidades de melhorias, o povo do lugar fincou raiz.
Lá pode-se comer pratos típicos africanos, mas o que nos atraiu foi o rico artesanato feito pelas hábeis mãos das mulheres do lugar. Um exemplo é Jô, Jortésia Silva e suas alegres e delicadas bonecas aboyami, feitas de nós em retalhos de tecido. “Assim fizeram nossas ancestrais, quando nos navios negreiros, a caminho do Brasil, rasgando suas saias e oferecendo brinquedos a seus filhos”, nos informa Jô, uma das líderes da comunidade.
O artesanato é uma das parcas receitas dos moradores do quilombo Cachoeira dos forros |
O legado africano ao artesanato ainda está espalhado em animais feitos de cabaça, biscuits, peças em jornal, cipó, palha, bambu, argila. Delicados sabonetes feitos a partir de ervas e escalda-pés com essência natural completam a curta renda das mulheres africanas da Cachoeira dos Forros, uma gente que precisa do apoio das autoridades municipal e estadual para tentar passar aos filhos a história de suas origens e garantir a sobrevivência.
A noite de sábado chega com ar de festa. É assim mesmo. Agora me lembro do que nos levou a Passa Tempo. O projeto “Música na Praça” que completa cinco anos de sucesso. Ai sim, a alegria se espalha e o povo entra na festa ao som de um ótimo violão e uma voz para ninguém botar defeito. É o filho do lugar que vai dar uma “canja” .
É André Luz que ao lado do baterista e vocal Ronaldo Souza faz três horas de um show espetacular. Dividido em duas partes- sendo a primeira um desfile completo dos maiores nomes da MPB e a segunda um show de excelentes sambas- o espetáculo embala os participantes e a noite não quer terminar. O show é embaixo da tenda rapidamente armada por Conrado e Lucinei, voluntários no evento. Poucas vezes pude ver um cantor tão completo, toca, canta e é um showman. Segura o espetáculo por três horas sem perder o fôlego. Um profissional da melhor estirpe.
Com a parceria de alguns empresários da cidade o projeto “Música na Praça”, em sua edição de outono é um presente para moradores e visitantes. Na noite de sábado tinha gente da capital e do interior, como Letícia Amorim e Izabelle Naves Rocha (da cidade de Oliveira), Stefany e Getúlio (ela de BH), Mirian e Mazé Lima(Carmópolis), sem seus doces artesanais.
O projeto está crescendo, ganhando visibilidades e há propostas de estendê-lo a outros municípios. Tomara, pois prata da casa também brilha. E nessa noite alegria era que tal o mundo podia parar que o povo de Passa Tempo nem ligava.
Dureza deixar a noite lá fora e se recolher atendendo a uma necessidade veemente de dormir.
Pior ainda é ver o domingo chegar e ter que retornar à vida normal, deixando Passa Tempo para trás, deixando casas e pessoas que nos fizeram felizes. Mas deixamos marcas que nos farão voltar, certamente.
Arraiolos mantendo a tradição
Sueli Amorim se perde no amor ao trabalho com os tapetes arraiolo |
Descíamos a pé a avenida principal, onde se dá a maioria dos acontecimentos do lugar, como igrejas, bares, coretos, movimento em geral. Um simpático rapaz passa e mesmo andando comenta. “Cheirosa hein?”. Respondemos de imediato, pois não se pode perder uma prosa. “Tomei banho”. Ele retruca continuando simpático: “Parabéns, hoje é sábado e dia de tomar banho”.
São situações assim que deixam o visitante com vontade de ficar, de andar, de saber das coisas. E basta virar a esquina da APAE para se chegar á Rua 13 de Maio onde está o “Porão 181” ou á casa de Suely Amorim Silva, a tapeceira que passa o dia trabalhando em grandes obras de arte.
As peças variam de pequenos panôs até o clássico dois por três, agradando a clientela |
Suely se perde nas cores e nos riscos e vai tecendo sua história de vida. Os netos pegam fogo na casa imensa. Suely não tira o olho do “serviço”, quase um vício. De pouca fala ela mostra um, mostra outro, conta um conto aqui outro ali e volta para a tarefa que a faz feliz. “Gosto de fazer tapetes”. E pronto, não rende conversa.
Nem de longe se lembra da origem eslava de sua obra de arte, sequer pensa que a arte do arraiolo foi levada pelos mouros para a Espanha e Portugal (no vilarejo de Arraiolos, distrito de Évora) e de lá chegou ao Brasil.
E hoje, só em Passa Tempo, são 14 tapeçarias produzindo para exportação. Cresceu tanto que foi criada a Associação das Tapeçarias e Artesanato de Passa Tempo. A arte de tecer o ponto de cruz curto e comprido é receita garantida para a família de Suely, que tem folder de propaganda e até um slogan gracioso. “ Porão 181, tecendo arte e sonhos para todo o Brasil”.
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