Guerra do Iraque: a boa fé e a fé imperfeita
A noticia e a repercussão do relatório Chilcot nos fornecem um rico material para que possamos entender como a ideologia opera hoje.
Mauro Luis Iasi (*)
Blog da Boitempo
Um relatório britânico com aproximadamente 2,6 milhões de palavras, chefiado por um senhor chamado John Chilcot, conclui que a guerra do Iraque, iniciada em 2003, foi “baseada em dados imperfeitos” e foi levada de forma “totalmente inadequada”, além de se dar em circunstâncias que eram “longe de ser satisfatórias”.
Em resposta, o ex-premiê britânico, Tony Blair, afirmou ter agido com “boa fé” e no melhor interesse do país. O próprio relatório parece procurar indicar que Blair não teria enganado deliberadamente o povo britânico para levá-lo à guerra, mas “apenas” selecionado informações que corroboravam com a tese segundo a qual o Iraque era uma ameaça iminente por ter “armas de destruição em massa”, e ao mesmo tempo descartando informações que poderiam provocar dúvidas sobre esta versão. Aquela sutil diferença entre “mentir” e “ocultar a verdade”.
O relatório, que demorou mais de seis anos para começar e mais sete para ser feito, comprova com documentos o que todo mundo já sabia desde o começo: não havia “armas de destruição em massa” no Iraque, o regime de Saddam Hussein não representava uma ameaça imediata para os países ocidentais, de forma que não haviam se esgotado todos os expedientes antes de se pensar em uma solução militar.
Há uma série de atrapalhadas digna de um filme de intriga internacional dirigido por Mel Brooks: desertores dando informações para que lhes garantissem asilo, informações que depois vieram a ser comprovadas como falsas e que os agentes já haviam alertado que o eram, dados reais de autoridades iraquianas entendidas como pistas falsas, agentes da CIA discordando de agentes do M16 e vice e versa.
Poderíamos ficar anos tentando encontrar os nós neste novelo (a equipe de Chilcot ficou sete anos) que não alteraria em nada aquilo que Bush e seu colega Blair queriam ver naquela situação, ou seja, um pretexto para a invasão. Foram as inexistentes “armas de destruição em massa”. Poderia ter sido a missão sagrada das sociedades civilizadas salvar um pobre povo de seu ditador, poderia ter sido ingratidão, uma vez que os EUA investiram tanto em Saddam e seu partido Baath e ele mordeu a mão de quem o alimentava atacando o Kuwait. Poderia ter sido um relatório do IBAMA com o presidente iraquiano segurando uma onça pela coleira. Tanto faz. O pretexto é sempre apenas isto: pretexto.
O que nos chama a atenção é que como a noticia do relatório Chilcot foi trabalhada. O caso nos fornece um rico material para que possamos entender como a ideologia opera. Sabemos que as palavras não são neutras, não são apenas significantes que carregam significados precisos, mas formam um série que constitui um determinado “real”. Ou melhor, uma visão sobre o real. Comecemos pelo mais evidente. Os dados nos quais foi baseada a decisão de guerra eram “imperfeitos”, a forma como foi conduzida a invasão era “inadequada” e as circunstâncias não eram “satisfatórias”.
Uma breve inversão e a barbárie da guerra e seus efeitos poderiam ser compreendidas como uma ação baseada “perfeitamente” em dados precisos da inteligência, levada à cabo de maneira “adequada” em circunstâncias “satisfatórias”. Trata-se, portanto, da definição de qual a maneira e as circunstâncias em que se torna compreensível e justificado o assassinato de mais de quatrocentas mil pessoas e a destruição completa de um país.
Vamos assumir por um momento o pressuposto implícito neste argumento. Um louco comanda um país e tem meios para atacar outros países com armas de destruição em massa. Alguém precisa detê-lo. Não se pode contar com o bom senso do mandatário, uma vez que basta olhar lombrosianamente para ele para constatar que o primeiro elemento que lhe falta é o bom senso, seguido da inteligência e do refinamento.
Percebemos os olhos pequenos separados pelo cenho que nada denota, acompanhado de orelhas desproporcionais ao estilo de um famoso ícone de uma certa revista. Bom, caso estes fossem os termos, o mundo deveria ter se mobilizado e tomado alguma atitude (não penso aqui em invasão militar, mas algo mais próximo de uma intervenção no sentido terapêutico do termo) tão logo George Bush chegou a presidência da maior potência militar e nuclear do planeta.
Aqui reside o mito da “boa fé”. Mesmo não havendo a plena certeza da existência das armas, sua mera suspeita já justificaria a intervenção militar. O elemento ideológico aqui presente é que a ação pressupõe um direito de zelar pela ordem e pela democracia no mundo. Haveria um certo atributo no acidente que serve como parâmetro de julgamento e que trás em si a incrível capacidade de dar sentido oposto ao mesmo ato. Vejamos.
A hipótese de Saddam Hussein atacar com armas de destruição um outro país é uma atrocidade, um genocídio. Já o ataque comandado pelos EUA e a Inglaterra, com armas de grande poder destrutivo, é justificado e legítimo. Notem, o ato em si é o mesmo, o ataque a outro país, mas seu significado é oposto: um é uma atrocidade e outro é fundado na “boa fé” de defender inocentes.
Um comentarista da Globo News (cujo nome não me lembro, nem me interessa) desatou a falar bobagens mas que expressam bem nosso argumento. Segundo o “especialista” convidado, o relatório é um grande incômodo por provar que o pretexto utilizado era falso, no entanto, não deixa de respaldar a tese de que Blair teria agido de “boa fé” uma vez que se tratava de tirar um “ditador sanguinário” do poder, uma pessoa que oprimia seu povo, tortura e matava dissidentes.
Não vai aqui nenhuma idealização de Hussein, mas notem que a opressão sobre seu povo, a prisão, tortura e assassinato o qualifica como um “ditador sanguinário”, ao mesmo tempo que o senhor Tony Blair (para não falar deste erro da natureza chamada George Bush) ao atacar o Iraque, matar milhares de pessoas, prender sem processos, torturar, destruir casas, hospitais, escolas… agiu “por boa fé”.
A ideia de justiça destes senhores e seus porta vozes midiáticos parece funcionar mais ou menos assim: Saddam Hussein merecia morrer enforcado e seu país e povo destruídos sob fogo e bombas; Tony Blair merece ser advertido como um mal menino porque mentiu (ou faltou com a verdade), sendo condenado a ir à púbico e pedir desculpas sinceras, assumindo a responsabilidade.
Devemos tomar todo cuidado para não cair na artimanha mais aparente. A ideologia não opera apenas como uma manipulação do discurso. Ela o faz, mas isso se presta a uma outra função: ocultar algo. Se percorrermos as principais repercussões do relatório britânico nos meios de comunicação, é espantoso ver como os holofotes concentram-se apenas no desmentido do relatório sobre as provas “inquestionáveis” da existência das tais “armas de destruição em massa”, nas reações do ex-premiê, chegando, no máximo, aos familiares de militares britânicos mortos no conflito.
Não tive acesso ainda ao conteúdo integral do relatório, pode ser que em seu conteúdo encontremos algo nesta direção (não me surpreenderia se não houvesse uma palavra entre as 2,6 milhões que o constituem), mas evidentemente não houve no trato dos chamados meios de comunicação. Onde ficamos? Houve informações “imperfeitas”, dados inconsistentes, erros dos serviços de informação, governantes perdidos sem saber se era ou não verdade, militares ansiosos e acabou por ser invadido o Iraque e milhares de pessoas morreram. Um erro lamentável, um equívoco que poderia ter sido evitado. Ponto final.
Enquanto se discute se o pretexto para a guerra era ou não verdade, não se pergunta pelo motivo real da guerra. A humanidade não é o reino da futilidade e do acaso. A Primeira Guerra Mundial não foi causada pelo atentado contra o Duque Ferdinando em Sarajevo, nem a Segunda porque os japoneses atacaram Pearl Habor. Quando você joga a história pela janela e suas determinações só lhe resta o discurso moral ou cético.
Não houve, no Iraque, um golpe militar em 1968 que encerrou um período conturbado de um complexo jogo de forças contra o domínio britânico na região, empreendido pela ala direita de um partido chamado Baath, que levou ao poder Ahmad Hassan Al-Bakr e seu braço direito, um jovem de 31 anos chamado Saddam Hussein, que em 1971 destituiu o vice-Presidente. Não houve preocupação no ocidente pela aproximação do Iraque da política nacionalista de Nasser no Egito. Não houve a descoberta de um grande campo de petróleo em 1975, que foi precedido da nacionalização das empresas estrangeiras que operavam ali entre 1972 e 1975.
Não houve a cooptação de Saddam pelos EUA para afastá-lo da influência soviética e criar um tampão para desestabilizar o Irã e sua revolução que derrubou o Chá Reza Pahlev. O mesmo Irã que Saddam ataca em 1980 sob os olhos complacentes das potencias ocidentais que lhes forneceram armas e mais armas de destruição. Os curdos não resistem há décadas, ignorados pelo ocidente. Não houve empresários norte-americanos, antes do ataque, distribuindo entre si os contratos para a reconstrução do Iraque. Não há geopolítica, não há disputa pelas fontes de exploração de petróleo, na há interesses imperialistas no Oriente Médio.
Não há história, não determinações econômicas e políticas. Há pessoas más, ditadores, pessoas boas, democratas. Há maldade e bondade. Há pessoas de má fé… há pessoas de boa fé. Para as primeiras existe a forca, para as segundas o pedido de perdão.
Os dados são desencontrados. Fala-se de algo entre 400 mil e 900 mil mortos na guerra do Iraque que eclodiu em circunstâncias longe de serem “favoráveis” e baseadas em falsas premissas. Lógico que a GloboNews escolheu a estimativa menor, 400 mil mortos. O problema é que esse número abarca apenas as mortes ditas “violentas” (por tiro ou bomba, etc.), e não inclui as milhares de pessoas que morrem porque os hospitais estavam destruídos, o saneamento inviabilizado, as casas desmanteladas, os alimentos não chegavam… ou seja, mortes “não violentas”. Outra operação ideológica de ocultamento.
Chegamos assim à macabra matemática de nosso tempo. O relatório de 2,6 milhões de palavras descobre que a guerra foi fundada em razões falsas. Mais de 400 mil pessoas morreram. Cada iraquiano, cada criança morta, cada pai e mãe que nunca mais abraçará seus filhos, cada pessoa decepada pelas bombas, queimada pelo fogo, fuzilada… vale, aproximadamente, cinco palavras. Cinco… palavras.
Cinco… palavras.
Eu escolhi as minhas cinco palavras: Basta! Trabalhadores do mundo: uni-vos!
Para aprofundar a leitura, 5 dicas de leitura da Boitempo
A política externa norte-americana e seus teóricos, por Perry Anderson.
Bem-vindo ao deserto do Real! cinco ensaios sobre o 11 de Setembro e datas relacionadas, porSlavoj Žižek (prefácio de Vladimir Safatle).
Violência: seis reflexões laterais, de Slavoj Žižek (posfácio de Mauro Iasi).
História, estratégia e desenvolvimento: para uma geopolítica do capitalismo, por José Luis Fiori.
Margem Esquerda #16, dossiê: Hegemonia norte-americana: Estado e perspectivas, com artigos de Alex Callinicos, José Luís Fiori e Guillermo Almeyra.
(*) Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Comentários