Higienismo e violência estatal fazem do inverno apenas o último carrasco de quem mora na rua
Raphael Sanz (*)
Um fato um tanto curioso aconteceu na manhã desta segunda-feira, 25 de julho, em São Paulo. A prefeitura pediu a reintegração de posse de um terreno que supostamente lhe pertence no Jardim Arpoador, zona oeste da capital paulista, ocupado há quase três anos por algumas centenas de famílias (211 de acordo com a mídia corporativa, 350 de acordo com os ocupantes). Durante a ação, o ex-Secretário Municipal de Direitos Humanos Eduardo Suplicy resistiu à reintegração junto com as famílias e acabou sendo preso pela polícia militar. Foi liberado três horas depois, após assinar um termo circunstanciado.
“Fiquei com receio de que houvesse uma cena de violência incontrolável, então me deitei ali para tentar evitar isso. Não acho que houve abuso, porque eu mesmo falei que me levassem se quisessem. Houve um momento que me levaram de uma maneira mais forte, mas eu chamei a atenção deles”, declarou Suplicy para os meios de comunicação, após sua soltura.
O fato caiu na pauta do dia, tanto da imprensa como das conversas nas ruas e redes sociais. A prisão do ex-senador de 75 anos deveria ter dado visibilidade a uma questão maior, ou seja, a falta de políticas públicas de moradia e o crescente aumento de trabalhadores em situação de rua. Contudo, o despejo de centenas de famílias em uma manhã de segunda-feira passou batido, ganhando quase nenhum destaque nos meios de comunicação que inclinaram seus holofotes para o político detido por algumas horas.
Assim, fica invisibilizado o drama por que passa a população de rua em São Paulo. A indiferença e a truculência são as maneiras com as quais a sociedade e o Estado normalmente lidam com tal população, que busca por todos os meios disponíveis sua sobrevivência. Uma cidade que insiste em projetos criticados como “higienistas”, a prezar mais pelos interesses da especulação imobiliária e das chamadas “revitalizações” urbanas do pela atenção a direitos básicos como moradia e saneamento para todos.
As três ocupações da Radial Leste
Raciocinando para além das simbologias políticas grosseiras, o heroísmo de Suplicy se esvazia. Para o Coletivo Autônomo de Trabalhadores Sociais (Catso), Suplicy não passava de um “garoto propaganda do higienismo da prefeitura”, nos tempos em que foi Secretário de Direitos Humanos de Haddad. Para o movimento que se organiza com a população de rua em três distintas ocupações ao longo da Radial Leste, as políticas da prefeitura petista em muito pouco diferem das políticas da anterior, como já publicamos neste Correio.
O Catso começou sua trajetória nas tendas instaladas durante a gestão Gilberto Kassab sob os viadutos Alcântara Machado e Bresser (Comunidade do Cimento), na Radial Leste. “As tendas sob os viadutos já eram medidas higienistas porque buscavam criar uma espécie de reserva para essa população não circular pelo centro ou pelas áreas residenciais da região”, contou Paulo Escobar, militante do movimento que hoje conta com uma terceira ocupação, a São Martinho, sob o viaduto Guadalajara, também na zona leste.
Com a previsão do fechamento das tendas em 2013, os trabalhadores começaram a se organizar para ocupar o espaço e impedir que aquelas famílias ficassem sem o local. Enfrentaram muita repressão. A Guarda Civil Metropolitana “visitava” as ocupações de madrugada com toda a truculência que conhecemos das forças de segurança pública, conforme relatam tanto militantes como moradores.
Uma característica importante deste movimento é a perspectiva de superação da assistência social. “Nosso intuito é ultrapassar a assistência social. Entendemos que hoje a assistência é necessária, mas também entendemos que ela é um meio de controlar o acesso dos mais pobres à cidade, infantilizando essa população com políticas e abordagens paternalistas”, criticou Escobar.
“Naquilo que era para ser um projeto higienista, como as tendas Alcântara e Bresser, começamos a trabalhar a educação popular e libertária inspirada por Paulo Freire, para que a população de rua fosse protagonista na cidade e começasse a trazer suas demandas”. O que chama a atenção no discurso de Escobar e do Catso é o fato de não ser artificial.
Foram inúmeras as vezes que este jornalista presenciou o movimento reivindicando suas pautas através da voz dos próprios moradores das ocupações, não de megafones empunhados por militantes. Essa característica elimina quaisquer “papas na língua” que um movimento social possa ter, o que incomodou a prefeitura.
7 de agosto: reintegração de posse da Comunidade do Cimento
No dia 2 de maio, após anunciar o fechamento de albergues e espaços de assistência social para a população de rua às vésperas do inverno, a prefeitura reinaugurava um histórico serviço de acolhida no coração da cidade, em parceria com a rede franciscana de serviço social, o Sefras. O serviço reinaugurado é conhecido como Chá do Padre e fica na rua Riachuelo, região da Sé, e sua administração é feita a partir de um convênio entre a prefeitura e a entidade religiosa.
O inverno ainda não havia chegado, mas as temperaturas já abaixavam quando houve a cerimônia de reinauguração do serviço. Algumas figuras religiosas marcaram presença, como o Padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua. Eduardo Suplicy também estava lá e o prefeito Fernando Haddad, que havia confirmado presença, não compareceu.
Paulo Escobar e o Catso foram ao local com a finalidade de cobrar esclarecimentos do prefeito a respeito da reintegração de posse da Comunidade do Cimento, marcada para dali 13 dias. “A prefeitura diz que sabe o que é melhor para a população, mas não pergunta para essa população a opinião dela. Quando ela vem e coloca suas demandas, a prefeitura a infantiliza, diz que nós ou qualquer outro movimento de moradia estamos direcionando-os”, criticou Paulo Escobar.
A proposta do CATSO é que haja uma política mais efetiva de habitação, a levar em consideração o alto índice de imóveis desocupados e ociosos na cidade. Para além disso, defende uma gestão democrática e comunitária das tendas, porque mesmo que as atuais famílias consigam moradia, novas pessoas sempre hão de chegar nas mesmas, já que cada vez mais trabalhadores se encontram em um nível de precarização que os leva à situação de rua.
Na ocasião da reabertura do Chá do Padre, militantes do Catso e moradores de rua fizeram barulho durante a fala do então Secretário de Direitos Humanos, Eduardo Suplicy. Alegaram que as famílias ali alocadas não teriam para onde ir e, portanto, haveria resistência. Também que, ao levar em consideração o procedimento habitual das polícias, incluindo a GCM paulistana, estaria desenhado um massacre, um novo Pinheirinho, no qual Suplicy teria parte.
O discurso deixou Suplicy irado, fora de si. “Não serei cúmplice de nenhum massacre!”, gritou ao microfone. O condutor da cerimônia, inexperiente com este tipo de embate, não sabia o que fazer. Muitos moradores de rua presentes se solidarizaram com a intervenção do movimento e o Padre Júlio Lancellotti precisou acalmar os ânimos e encaminhar a questão.
Foram para uma sala dentro das dependências do serviço o Padre Júlio, Eduardo Suplicy, Paulo Escobar, um representante da Comunidade do Cimento e outro do Movimento Nacional da População de Rua. Entraram acompanhados de um trabalhador da Defensoria Pública da União que redigiu, junto a todos, um documento que pedia a dilação de prazo da reintegração de posse do Cimento.
Após os trâmites realizados, remarcou-se a reintegração de posse da Comunidade do Cimento para o próximo dia 7 de agosto. Não foi considerada uma vitória pelo Catso e pelos moradores da comunidade, mas ao menos foi dado um tempo maior para que articulassem alguma defesa.
O inverno da rua que nunca acaba
Um mês depois, o inverno tomou a capital paulista de assalto. Especialmente gelado após quase dois anos de muito calor e até mesmo problemas de seca e crise no abastecimento de água. Os trabalhadores vão para o transporte público encapuzados, as redes comentam o frio e no trânsito é raro algum veículo com janelas abertas. Fato é que na madrugada do dia 13 de junho o grande centro econômico brasileiro congelou e teve sua noite mais fria em 22 anos: 3,5 graus. Naqueles dias, 7 pessoas em situação de rua morreram por conta das baixas temperaturas.
O assistente social Bruno Karam problematizou a questão: “estão morrendo pessoas em situação de rua não por conta do frio, mas de especulação imobiliária. Há diversas moradias ociosas que poderiam ser ocupadas, temos diversos lugares onde poderia haver moradia popular, mas não há. O que vemos são vários prédios que são desocupados, seguem sem dono e sem cumprir qualquer função social. Não é o frio, são diversos fatores. O frio é apenas o último carrasco”, denuncia.
A conversa com Bruno Karam é muito esclarecedora e ele aborda uma série de pontos a serem levados em consideração. A especulação imobiliária e as fracas políticas de moradia estão entre esses pontos. Ele explica que de acordo com o CEAS (Centro de Estudos de Ação Social) há cerca de 11 mil vagas em albergues na cidade, para uma população de rua que estima superar as 30 mil pessoas. Para ele, tratar as mortes como decorrência do frio é na verdade um subterfúgio midiático para não tratar do problema real. “De certa forma, só agora vão aparecer reportagens por conta do inverno, mas amanhã, quando acabar o frio, não haverá mais cobertura da questão”.
Ele ainda relaciona o déficit habitacional com a questão do emprego, correlatas na manutenção da situação de rua. “A primeira coisa que temos de pensar para a questão do emprego é que precisamos ter um fundo de consumo e as pessoas em situação de rua não têm esse fundo de consumo”, explicou.
Em outras palavras, para tentar conseguir um emprego o sujeito precisa de um currículo, uma conta no banco, dinheiro para o transporte, roupas limpas e depois que conseguir o emprego precisa se manter em pé por um mês, até receber o primeiro salário. “Vemos que muita gente, mesmo fora da situação de rua, não têm condições para se manter nesse primeiro mês de emprego. Assim, só para se lançar no exército de reserva a pessoa já tem certas dificuldades. Quem está em situação de rua tem muito mais dificuldades ainda, pois está começando do zero. E, além de tudo, para conseguir um emprego precisa estar em algum lugar, em alguma moradia, ou seja, tem de conseguir uma vaga em algum albergue e isso é muito difícil”, avaliou Bruno Karam.
Repressão policial, exclusão social e encarceramento em massa
Segundo dados da Pastoral Carcerária, 25% das pessoas que estão presas no CDP Pinheiros I são moradores em situação de rua. Para o assistente social, isso são dados e fatos que demonstram o tamanho da exclusão social que vigora no Brasil.
“Entre 2012 e 2014 foram presas 1536 pessoas na Cracolândia e acharam 280kg de drogas em todas essas apreensões. Se a gente for lembrar da época das eleições presidenciais, acharam um helicóptero com 450kg de cocaína. Ou seja, em uma apreensão acharam 450kg de cocaína e ninguém foi preso. Estamos vendo um encarceramento maior com pessoas em situação de rua”.
Bruno Karam ainda lembra o caso de Rafael Braga, morador de rua do Rio de Janeiro que acabou sendo o único condenado dentre todos os presos nas manifestações de 2013. A prisão ocorreu porque ele portava um vidro de Pinho Sol próximo a uma manifestação e isso seria um instrumento de guerra de acordo com seus perseguidores, com o qual ele poderia construir uma bomba. As justificativas para legitimar a desigualdade no tratamento entre diferentes setores da sociedade beira o surrealismo.
“O rapa vai aos lugares onde há pessoas em situação de rua e tira seus documentos, colchões, cobertores e pertences alegando que a rua é um espaço de circulação e que essas pessoas não poderiam estar ali. Elas sequer podem saber para onde foram levados os seus documentos e pertences. Agora, se a CET guinchar o meu carro, o que eles vão fazer? Vão pôr no local uma placa com um protocolo para eu saber para onde foi o carro e eu poderei retirar. É um tratamento diferenciado”, exemplificou o assistente social.
Se tomarmos como base alguns dados divulgados pelo DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), veremos que as prisões brasileiras aumentaram em 10 anos mais de 380% enquanto a população brasileira aumentou apenas 3%. Cruzando esses dados com os da Pastoral Carcerária, supracitados, podemos ver que boa parte desse crescimento do encarceramento em massa é feito a partir da população em situação de rua – para não contar a população negra, pobre e periférica que tem moradia, mas também aumenta a estatística, bem como a de homicídios perpetrados por agentes do Estado. “Isso é higienização e limpeza social a partir do encarceramento em massa e da brutalidade policial e estatal”, concluiu Bruno Karam.
(*) Raphael Sanz é jornalista do Correio da Cidadania.
(Com o Correio da Cidadania)
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