Novo presidente da República Saaraui defende diálogo, mas não descarta a luta armada
Baby Siqueira Abrão e Marcos Tenório, do Campo de Refugiados de Dajla, Argélia
Nem a alta temperatura na grande tenda montada no campo de refugiados saarauis de Dajla, no sudoeste da Argélia, demoveu dali os participantes do XV Congresso Extraordinário da Frente Polisário, realizado em 8 e 9 de julho. Acostumados a condições atmosféricas extremas, os delegados, vindos da República Árabe Saarauí Democrática (RASD), do Saara Ocidental e dos campos de refugiados argelinos aguardavam com paciência a vez de depositar seu voto nas urnas.
Encerrada a votação, Brahim Ghali, 67 anos, foi declarado o novo presidente da RASD e secretário-geral da Frente Polisário – reconhecida pela ONU como única legítima representante do povo saaraui – com 93,19% dos votos, contra 64 nulos, 65 em branco e 538 abstenções.
Não houve surpresas nesse resultado. Ghali era candidato único, de consenso, e sua história na luta pela libertação do Saara Ocidental – o único país da África ainda sob colonização – o credenciava para os dois postos. Ele substitui Mohamed Abdelaziz, o líder saaraui falecido em 31 de maio deste ano.
O perfil de Ghali, porém, guarda diferenças significativas em relação a Abdelaziz. Apesar da experiência diplomática – foi embaixador da RASD na Argélia e delegado da Polisário na Espanha -, ele é considerado “linha dura” e adepto de soluções militares para conflitos políticos.
Foram essas as características que levaram as lideranças da Polisário a escolhê-lo. Elas são importantes diante dos obstáculos ainda enfrentados pelos saarauis na luta por sua independência. O Saara Ocidental, tomado pela Espanha em 1884 e tornado colônia espanhola em 1934, até hoje é território ocupado.
Em 1976, quando as tropas espanholas deixaram o país, dividiram-no em duas partes: dois terços foram negociados com o Marrocos e um terço com a Mauritânia, no acordo conhecido como Tratado de Madri.
Acossado pelos guerrilheiros da Frente Polisário, o exército da Mauritânia abandonou seu posto e o país desistiu de sua parcela do Saara em 1979. O Marrocos apropriou-se dela e desde então detém o controle administrativo da região. A ocupação, porém, está longe de ser tranquila. Nos anos 1950 iniciaram-se os primeiros movimentos populares visando à libertação e, em 1960, sobreveio a onda de descolonização formalizada na Declaração de Concessão de Independência a Países Colonizados, da Organização das Nações Unidas. Cinco anos depois, a ONU recomendava a descolonização do Saara Ocidental.
Essa recomendação caiu no vazio. Em maio de 1973, o Movimento de Libertação de Saguia el Hamra e Wadi el Dhahab, fundado por Ghali, Abdelaziz e Mohamad Bassiri, transformou-se na Frente Polisário, com o objetivo de combater a colonização espanhola.
Em 1974, Marrocos e Mauritânia solicitaram ao Tribunal Internacional de Justiça que avaliasse suas reivindicações de soberania sobre o território saaraui. Diante da resposta negativa, o Marrocos invadiu o Saara Ocidental, no episódio que ficou conhecido como Marcha Verde — para os saarauis, Marcha Negra. Vários campos ocupados por civis foram bombardeados e os sobreviventes conduzidos para zonas militarizadas.
Entre 1981 e 1987, o Marrocos construiu um muro de 2,5 mil quilômetros de extensão para separar, da região ocupada do Saara, os territórios liberados pela Polisário. E enterrou mais de cinco milhões de minas ao longo da estrutura, guardada dia e noite por mais de 120 mil soldados, estacionados a cada onze quilômetros. Com muita propriedade, os saarauis apelidaram a construção de “Muro da Vergonha”.
Nas vizinhanças do muro fica a Zona Livre, uma faixa estreita de terra que ocupa cerca de um quinto do território. Nela localizam-se numerosos assentamentos. O Marrocos proibiu o pessoal da Polisário de entrar nessa área, além de impedir, ali, treinamentos militares e construção civil. Em consequência da ocupação, a população saaraui se divide entre o Saara Ocidental (domínio marroquino), a área do Saara liberada pela Polisário e os campos de refugiados na Argélia, país que apoiou a luta dos saarauis desde o primeiro momento.
Brahim Ghali participou de todos esses movimentos pela retomada do território saaraui. Foi ministro da Defesa durante as guerras contra a Espanha, a Mauritânia e o Marrocos. Tornou-se o primeiro secretário-geral da Polisário e foi um dos líderes da Intifada de Zemla, em 1970, estopim da luta armada pela independência do Saara Ocidental.
Chefiou o primeiro ataque contra as tropas da colonização, em 1973, e um ano depois passou a dirigir o Exército Popular de Libertação do Povo Saaraui, braço armado da Polisário. Em 1976, com a retirada das tropas espanholas, fez parte do grupo que proclamou, no exílio, a República Árabe Saaraui Democrática, com Abdelaziz como presidente.
O Marrocos, que se apropriara do Saara Ocidental, retaliou a criação da RASD com um ataque aéreo, lançando na população civil bombas de napalm e de fragmentação. Muitos morreram e dezenas de milhares refugiaram-se nos arredores de Tindouf, cidade do deserto argelino, onde seus descendentes permanecem até hoje. Em 1989 Ghali passou a chefiar a II Região Militar, uma das mais importantes da RASD.
Essa experiência na diplomacia e nos campos de batalha é necessária para os desafios que Ghali tem pela frente. O primeiro será o esforço para que a Minurso, missão da ONU no Saara Ocidental, volte a atuar na região. Ela foi expulsa em março deste ano pelo Marrocos, indignado pelo fato de Ban Ki-moon, secretário-geral das Nações Unidas, ter se referido à atuação marroquina no Saara pelo nome verdadeiro: ocupação. A decisão será tomada em 31 de julho, na sede da ONU.
Criada em 1991 como parte do tratado de paz entre a RASD e o Marrocos, a Minurso tinha como objetivo a organização de um referendo marcado para o início de 1992, em que a população saaraui votaria por sua autodeterminação e pelo fim da ocupação de suas terras. Mas as autoridades marroquinas levantaram o problema da legitimidade dos eleitores – isto é, quem estaria apto a votar ou não – e o referendo não aconteceu até hoje. A paciência dos saarauis, porém, acabou, e eles exigem que a Minurso retorne para completar sua missão, fixando uma data para a realização do referendo.
Do lado saaraui, a negociação competirá a Ghali, que decerto colocará na mesa a determinação da juventude saaraui em retomar a luta armada para expulsar os marroquinos e conquistar sua soberania. O novo presidente seguirá o consenso dos líderes da Polisário, que apostam na ação diplomática, mas não descarta a opção militar.
Em seu discurso, no fechamento do Congresso, ele se referiu à necessária pressão em organismos mundiais, para obrigar o Marrocos a respeitar o direito internacional e desocupar o Saara Ocidental, mas também destacou o fortalecimento do Exército Popular de Libertação do Povo Saaraui e a diversificação dos programas de formação e treinamento militar especializado, a fim de preparar as novas gerações para a eventualidade de ações armadas.
Oitenta e quatro membros da ONU já reconheceram a RASD como Estado, embora as Nações Unidas a considerem “país não descolonizado”. O apoio, porém, está crescendo. Noruega e Genebra retiraram recentemente os investimentos de seus fundos nas empresas que fecharam contratos com o Marrocos para explorar petróleo no Saara Ocidental.
O Foro de São Paulo, realizado em junho em El Salvador, deu seu apoio à RASD. Ao Congresso da Frente Polisário compareceram delegações de vários países europeus, africanos — a RASD é membro da União Africana — e latino-americanos. O Brasil ainda não reconheceu a República Árabe Saaraui Democrática e por isso não enviou delegação.
O convidado brasileiro da Frente Polisário foi Marcos Tenório, presidente do Cebrapaz do Distrito Federal. Seu discurso foi aplaudido várias vezes, em especial quando ele informou que a Câmara dos Deputados aprovou, no final de 2014, uma recomendação ao governo, assinada por todos os partidos, para que o Brasil reconheça a RASD como Estado detentor de direito legítimo à soberania, à autodeterminação e ao ingresso pleno nas Nações Unidas.
Tenório também disse que recentemente o Senado cobrou do governo explicações que devem ser respondidas em 30 dias, sobre sua posição quanto à Resolução do Conselho de Segurança da ONU em relação à Minurso, principalmente no que diz respeito à atribuição de competência em vigiar a aplicação dos direitos humanos na região; sobre o processo de emancipação política do Saara Ocidental; sobre o estabelecimento de relações diplomáticas entre Brasil e RASD e a instalação de escritório de representação do Saara Ocidental em Brasília, além do estabelecimento de ajuda humanitária aos refugiados saarauis.
(*) Baby Siqueira Abrão, jornalista, escritora e filósofa, foi correspondente do Brasil de Fato e da Carta Maior no Oriente Médio. Marcos Tenório, historiador, é especializado em relações internacionais e viajou a Dajla a convite da Frente Polisário. Ambos são ativistas por direitos e justiça social, militando em causas anticolonialistas e antissionistas
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(Com o Correio da Cidadania)
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