90 anos depois: Lênin e a herança da luta revolucionária

                                                               

Ricardo Costa (*) 


Neste 21 de janeiro de 2014, completam-se 90 anos da morte de Vladimir Ilyitch Ulianov, codinome Lênin, sem dúvida a maior figura histórica do século XX, por ter sido a principal liderança da Revolução Socialista de 1917 na Rússia,

o acontecimento histórico de maior importância do século passado. A Revolução Bolchevique abalou as estruturas da sociedade capitalista, ao inaugurar a primeira grande experiência socialista da história e passar a assombrar as mentes burguesas como um fantasma, lembrando sempre que a vitória dos trabalhadores contra o Estado capitalista havia se transformado numa realidade num país e numa possibilidade ameaçadora no resto do mundo.

Era o exemplo que faltava aos trabalhadores de todos os países, para animar as lutas contra a exploração capitalista e em favor da alternativa socialista. Se, no processo de construção do Estado soviético, foram vivenciadas inúmeras dificuldades, muitos erros foram cometidos e, devido à conjunção de variados fatores, esta experiência acabou derrotada ao final do século XX, fica para a História a herança dos muitos acertos na tentativa de edificação de um poder genuinamente operário e, acima de tudo, fica a herança do pensamento e das ações de Lênin, cuja obra teórica e política tem muito a nos dizer nos dias atuais.

Um dos grandes legados de Lênin foi sua férrea batalha contra o reformismo, o economicismo e o oportunismo de direita e de esquerda no movimento operário. Resgatou o pensamento revolucionário de Marx e Engels, numa época em que predominava, no interior do movimento socialista internacional, a perspectiva reformista de Bernstein e outros revisionistas do marxismo, que criticavam a característica “partidária e tendenciosa” dos fundadores do materialismo histórico e buscavam transformar o socialismo científico numa ciência imparcial e neutra, a querer comprovar que a evolução humana, submetida a “leis estabelecidas e confirmadas pela ciência social positiva”, levaria invariavelmente ao socialismo, fase “natural e espontânea, portanto inevitável e irrevogável” do desenvolvimento social. i

Na II Internacional, fazia-se uma leitura positivista de Marx e Engels, na verdade uma domesticação política de suas ideias, pois toda a teoria da luta de classes e da necessidade da revolução para ultrapassar o capitalismo fora esquecida. As teses de Bernstein contaminavam os círculos socialistas com a análise de que o avanço do capitalismo, na virada do século XIX para o século XX, trazia como características a capacidade do sistema de resistir às crises periódicas, o crescimento das camadas médias (na contraposição à tendência de pauperização da sociedade, apontada por Marx) e as transformações políticas no sentido da democratização, com a conquista do sufrágio universal. 

Tais mudanças desmentiriam as teses clássicas de luta pelo poder centradas na insurreição e na revolução violenta. A transição para o socialismo viria do próprio desenvolvimento econômico e social capitalista, com seus reflexos na ampliação dos espaços políticos (eleições e parlamento), desde que os socialistas soubessem utilizar de forma inteligente estes espaços.
                                                              

A trajetória política de Lênin é a de uma precoce identificação com a visão revolucionária de mundo, impulsionada pelas violentas contradições da sociedade russa de seu tempo de juventude. Logo cedo (aos 17 anos, em 1887), entrou em contato com as obras de Marx e Engels. Antes disso, já participava das lutas contra a autocracia czarista na Rússia, desde o enforcamento de seu irmão mais velho, Alexandre Ulianov, por conspiração em um atentado terrorista contra o Czar, mesmo período em que tomou conhecimento das obras do marxista russo Plekhanov. Em 1892, traduziu o Manifesto do Partido Comunista para o russo. Três anos depois, em São Petersburgo, ajudava a criar a Liga da Luta pela Emancipação da Classe Operária e, depois, foi preso e exilado na Sibéria.

Ao final do exílio, foi viver em Munique (1900-1902), onde, ao lado de Martov, fundou o jornal Iskra, publicação do Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR), na qual passou a usar o pseudônimo de Lênin para assinar seus artigos. Morando em Londres (1902-1903), participou do 2º Congresso do POSDR, no qual liderou a ala bolchevique ("maioria" em russo) contra os mencheviques ("minoria"), antecipando a ruptura entre revolucionários e reformistas que ocorreria nos partidos socialdemocratas no momento de eclosão da Grande Guerra de 1914. 

Neste período produziu o livro Que Fazer? A organização como sujeito político, texto publicado inicialmente no Iskra para o combate militante às posições reformistas e revisionistas dominantes na II Internacional, debate este que mobilizou outros revolucionários na época, como Rosa Luxemburgo, autora do célebre Reforma ou Revolução? O livro de Lênin também cumpriu o objetivo de responder ao desafio colocado aos comunistas russos de como construir o instrumento político (o partido) necessário para realizar o projeto revolucionário no país dos czares.

Nesta obra, Lênin atacou o culto às ações espontâneas, asseverando que “a consciência socialista não brota espontaneamente das lutas do proletariado”. Somente uma organização revolucionária, formada por militantes profissionais e quadros de vanguarda forjados nas lutas operárias, poderia promover a ação consequente contra o regime do Czar e a ordem capitalista. 

O partido revolucionário devia assumir o papel de propagandista, agitador e organizador da luta proletária, assim como de educador, expondo a todos os trabalhadores e demais camadas populares os objetivos gerais do programa socialista. Criticou os métodos artesanais, a improvisação e a desorganização que grassavam entre os oposicionistas russos e, partindo do pressuposto segundo o qual a luta política, pelo seu grau de amplitude e complexidade, requer um trabalho diferenciado da luta sindical e das batalhas voltadas às reivindicações econômicas, defendeu uma organização formada por “homens cuja profissão é a ação revolucionária”. 

Em função das condições extremamente adversas para a luta política na Rússia daqueles anos, que impunha aos revolucionários a clandestinidade, era necessário um alto grau de centralização organizativa, com o cuidado de que os militantes não se afastassem das massas, nem que se abandonassem os princípios democráticos na condução dos debates internos. Por fim, Lênin postulava que, no Partido revolucionário, deveria desaparecer por completo toda distinção entre operários e intelectuais.
                                                             

Após estadia em Genebra (1903-1905), Lênin retornou à Rússia para participar da Revolução de 1905. Foi um ano fértil na produção de textos que aprofundavam a vertente revolucionária e o combate ao reformismo, como Duas Táticas da Socialdemocracia na Revolução Democrática. No prólogo deste documento, Lênin apontava para a necessidade de fazer com que o “trabalho habitual, regular, corrente de todas as organizações e grupos do nosso partido, o trabalho de propaganda, agitação e organização” estivesse orientado no sentido de “fortalecer e ampliar a ligação com as massas”. 

O sucesso da revolução dependia, para além da correta avaliação do momento político e da correlação de forças no país, que fossem “justas as palavras de ordem táticas” – a fim de que se apoiassem na força real das massas – e que se desenvolvesse todo um esforço para “educar e organizar a classe operária”. Neste livro, Lênin travou intenso debate político com os mencheviques, para quem a hegemonia do processo deveria ficar com a burguesia liberal e não com a vanguarda proletária, pois a “direção e a participação hegemônica do proletariado” afastariam os representantes burgueses da luta contra o Czar, diminuindo a “amplitude da revolução”.

Contrapondo-se a esta visão reformista, Lênin afirmava que somente o proletariado tinha condições de atrair o apoio da massa camponesa e, assim, esmagar pela força a resistência da autocracia, ao mesmo tempo em que paralisaria a instabilidade da burguesia, marcada pela postura inconsequente no combate ao regime czarista. 

O ataque frontal à autocracia russa somente seria vitorioso, portanto, caso o proletariado assumisse o papel de dirigente da revolução popular e não de força auxiliar da burguesia no interior da revolução democrática. Mesmo reconhecendo que a derrubada do poder autocrático representaria, em última instância, o fortalecimento da dominação burguesa, Lênin entendia a importância da conquista da república democrática para que o proletariado e as organizações de vanguarda pudessem agir com um mínimo de liberdade e, com isso, iniciar a luta pela transição socialista. O movimento seguinte seria “levar a cabo a revolução socialista, atraindo a si a massa dos elementos semiproletários da população, a fim de quebrar pela força a resistência da burguesia e paralisar a instabilidade do campesinato e da pequena burguesia”ii.

Mas a classe operária não conquistou a hegemonia do processo de lutas e a correlação de forças em 1905 ainda era extremamente desfavorável às massas populares, apesar de ter representado uma rica experiência de lutas e das quais o maior saldo, para a organização dos trabalhadores, foi a criação dos Sovietes, os quais desempenhariam papel preponderante na Revolução de 1917.
                                                                         

Após a derrota da revolução democrática, Lênin foi eleito presidente do POSDR, em 1906, mas foi novamente obrigado a se exilar por conta do massacre e da perseguição desenfreada aos militantes e organizações que se opunham ao governo do Czar. Somente em 1917 Lênin voltaria à Rússia.

Durante esse longo exílio, fez o balanço da Revolução de 1905 em artigos como As Lições da Insurreição de Moscou (agosto de 1906), no qual retrucava a posição de Plekhánov (que responsabilizara a radicalização do movimento pela derrota, afirmando que “não se devia ter pegado em armas”) com a avaliação de que uma das grandes conquistas da revolta popular – à custa de enormes sacrifícios – havia sido a passagem da greve política geral à insurreição, elevando o movimento a um nível superior de consciência. 

No momento de refluxo do movimento operário russo, o texto No Caminho (janeiro de 1909) reforçava a necessidade de um “trabalho prolongado de preparação de massas mais amplas”, com a criação de células do partido “em todas as esferas de atividade”, de comitês operários bolcheviques em cada empresa industrial, buscando sempre “um estreito contato com as massas”. Cada medida de organização deveria contribuir para a coesão da classe e para que o partido conquistasse, com a sua “influência ideológica”, o papel dirigente nas organizações proletárias.

No período, outros trabalhos de relevo foram publicados: Materialismo e Empiriocriticismo (1909), crítica a uma variante de idealismo, e Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo (escrito em 1916), obra fundamental para a conceituação do capitalismo em sua fase monopolista e de domínio do capital financeiro, marcada pela exportação de capitais e pela partilha do planeta entre as nações de capitalismo avançado. 

Assim, era possível caracterizar a Primeira Guerra Mundial como expressão das disputas interimperialistas e como uma ação totalmente reacionária, contra a qual era preciso se posicionar firmemente, do ponto de vista do internacionalismo proletário e da revolução. Da análise acerca do caráter internacional da guerra imperialista era ainda possível deduzir que o capitalismo mundial havia alcançado o nível de amadurecimento necessário para a revolução socialista, ou seja, as condições objetivas estavam dadas. Era preciso fazer avançar as condições subjetivas.

A participação da Rússia na Grande Guerra provocou o acirramento das contradições no interior da sociedade, trazendo à tona novamente o movimento operário e camponês, com maior protagonismo dos Sovietes. Em fevereiro de 1917, as manifestações populares promoveram a queda do czar Nicolau II e tinha início o período do Governo Provisório, dirigido pela burguesia liberal, com apoio dos mencheviques e socialistas revolucionários (SRs ou “esseristas”), correntes reformistas que hegemonizavam os sovietes. 

Lênin consegue voltar à Rússia e anuncia que, derrubada a autocracia czarista e conquistada a revolução democrática burguesa, estava aberta a fase da luta pela conquista do Estado proletário, através da revolução socialista. Em Sobre as tarefas do proletariado na presente revolução (Teses de Abril), texto publicado no Pravda em 07 de abril de 1917, Lênin percebeu a oportunidade histórica de deflagração da revolução proletária a partir da mobilização popular em curso, mas provocou a reação de incredulidade de parte dos militantes socialistas russos, quando afirmou que a peculiaridade daquele momento consistia na transição da primeira etapa da revolução – “que deu poder à burguesia por faltar ao proletariado o grau necessário de consciência e organização” – para a segunda etapa, que deveria colocar o poder nas mãos do proletariado e das camadas pobres do campesinato. Lênin partia da avaliação de que, na maior parte dos sovietes, os bolcheviques estavam em minoria, o que exigia um paciente e firme trabalho de crítica ao governo e de esclarecimento junto às massas acerca da necessidade de que o poder passasse às mãos dos sovietes.

Nos meses anteriores à Revolução de Outubro, Lênin travou uma dura batalha ideológica contra os oportunistas e reformistas russos, representados centralmente pelos mencheviques e socialistas revolucionários, que recusavam a opção da revolução socialista e contentavam-se em ocupar cargos e ministérios no governo provisório dominado pela burguesia, latifundiários e imperialistas. 

Lênin, principalmente no mês de setembro, produziu textos de combate às vacilações e traições dos reformistas, mas também dirigidos a convencer parte do Partido Bolchevique, não totalmente crente das possibilidades objetivas da vitória revolucionária do proletariado. Nos textos publicados no período, tais como Uma das Questões Fundamentais da Revolução, Os Bolcheviques devem tomar o poder e Marxismo e Insurreição, Lênin deixava claro que o poder soviético significaria uma mudança radical no exercício do poder de Estado. 

Não bastava tomar o poder de assalto, algo que de fato foi facilitado pela degradação do Estado burguês em 1917, desgastado política e socialmente ao manter o país na guerra a qualquer preço, preferindo atender às necessidades dos imperialistas ingleses e franceses a fazer valer a vontade popular. O poder dos sovietes representaria a destruição de todo o velho aparato de Estado, com a sua consequente substituição por um aparelho novo e popular, verdadeiramente democrático, a ser controlado pela maioria organizada e armada do povo, dos operários, soldados e camponeses.

Entre maio e setembro de 1917, os acontecimentos e as lutas na Rússia haviam revertido o momento anterior de inferioridade bolchevique no interior dos sovietes das capitais, os quais passavam a pender para o lado dos revolucionários. Baseando-se ainda em escrito de Engels sobre a “arte da insurreição” (Revolução e Contrarrevolução na Alemanha, que, assinado por Marx, foi publicado no New York Daily Tribune em 1851 e 1852), Lênin afirmava categoricamente que a revolução estava na ordem do dia, pois, a partir dos eventos de julho e agosto de 1917, estavam dadas as condições objetivas e subjetivas para o sucesso da empreitada revolucionária. 

Lênin referia-se às jornadas de julho e à “kornilovada”. As manifestações de julho foram desencadeadas por um movimento de soldados, marinheiros e operários, enfurecidos contra o governo provisório e suas ordens militares, notoriamente infrutíferas e irresponsáveis. As demonstrações de massa ocorreram em Petrogrado, e os manifestantes gritaram as palavras de ordem dos bolcheviques, como “todo o poder aos Sovietes”, exigindo que a direção máxima dos Sovietes assumisse o poder, o que foi negado pelo Comitê Executivo Central, dominado por socialistas revolucionários e mencheviques. 
                                                                            

O movimento foi massacrado pelo governo provisório, que atacou o Partido Bolchevique, empastelando seus jornais e gráficas e mandando prender as lideranças operárias. No episódio da ação contrarrevolucionária liderada pelo general czarista Kornilov, em agosto de 1917, o governo provisório, sob comando de Kerenski, adotou postura ambígua, ao insuflar inicialmente a revolta, para se ver livre dos bolcheviques. Mas foram estes que enfrentaram decisivamente a tentativa de golpe de Kornilov e continuaram a denunciar o governo provisório e seus cúmplices socialistas revolucionários e mencheviques. A "kornilovada" foi liquidada pelos operários e camponeses liderados pelo Partido Bolchevique.

Lênin, então, percebia que, após estes dois grandes acontecimentos históricos, as massas haviam vivenciado experiências decisivas no enfrentamento aos seus inimigos de classe, e era cada vez mais evidente o desmascaramento dos reformistas e oportunistas, que, ocupando ministérios no governo provisório, assumiam na prática a defesa dos interesses burgueses. Lênin enfatizava que, por tudo isso, a batalha pela hegemonia no interior dos Sovietes estava sendo ganha pelos bolcheviques. 

E dizia que, naquele exato momento histórico, existiam as condições objetivas e subjetivas para a tomada do poder, pois “temos a nosso favor a maioria da classe que é a vanguarda da revolução, a vanguarda do povo, capaz de arrastar as massas”. Não há dúvidas de que, por meio da leitura desses textos, podemos concluir que, para Lênin, uma das questões centrais na luta e conquista do poder na Rússia foi a batalha ideológica travada no interior do Sovietes, para tirar da influência nefasta de mencheviques e esseristas as mais valorosas lideranças operárias e camponesas, as quais, sob a firme direção dos bolcheviques, comandaram a Revolução de Outubro. Portanto, a questão da hegemonia foi um aspecto central da vitória bolchevique em 1917, fato que, com certeza, se verificaria também nas demais revoluções socialistas do século XX.

Também é dessa fase imediatamente anterior à Revolução de Outubro o livro O Estado e a Revolução, escrito em agosto e setembro de 1917. Com base nos textos de Marx sobre as lutas de classes na França do século XIX e, em especial, sobre a Comuna de Paris, Lênin sistematizou as ideias do fundadores do materialismo histórico acerca do Estado capitalista e da ditadura do proletariado, reafirmando o caráter de classe do Estado e desmistificando o pensamento burguês segundo o qual a democracia política seria inerente à ordem fundada pelos liberais.

Buscou atualizar os princípios teóricos marxistas sobre a questão do poder para aplicá-los na luta política em tempos de capitalismo monopolista e de imperialismo. Segundo seus prognósticos à época, estavam colocadas as condições para a revolução socialista mundial, pois o imperialismo, identificado por ele como “capitalismo parasitário ou em estado de decomposição”, um “capitalismo agonizante”, teria aberto a “era das revoluções proletárias”.
                                                               
A consolidação do capitalismo monopolista e do imperialismo havia representado, ainda, um retrocesso nas práticas democráticas conquistadas em vários países graças às intensas lutas operárias travadas ao longo do século XIX. Na perspectiva do líder bolchevique, o Estado convertia-se, então, num instrumento direto a serviço do grande capital, conforme aponta José Paulo Netto no texto Lênin e a instrumentalidade do Estadoiv, análise esta que antecipava a apreensão sobre a tendência – hoje muito evidente – da completa incompatibilidade entre a ordem capitalista e a democracia política.

Esse tema seria revisitado quando da polêmica com Kautsky em 1918, em resposta a uma brochura do socialista austríaco intitulada Ditadura do Proletariado. Em A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky, Lênin atacou frontalmente as ideias revisionistas daquele que, desde o período da Grande Guerra, havia migrado para posições reformistas, deturpando vários princípios teóricos do marxismo e tentando transformar Marx num “vulgar liberal”. Lênin refutava a mistificação de Kautsky em torno da democracia burguesa, ao falar de “democracia pura” na sociedade marcada pelo antagonismo de classe. Lembrando que mesmo a democracia burguesa mais avançada jamais deixará de lançar mão de seu aparato repressivo quando a burguesia se sente ameaçada pela mobilização dos trabalhadores, escrevia:

Não há Estado, nem mesmo o mais democrático, onde não haja escapatórias ou reservas nas constituições que assegurem à burguesia a possibilidade de lançar as tropas contra os operários, declarar o estado de guerra, etc, «em caso de violação da ordem», de fato em caso de «violação» pela classe explorada da sua situação de escrava e de tentativas de não se comportar como escrava. Kautsky embeleza desavergonhadamente a democracia burguesa, nada dizendo, por exemplo, daquilo que fazem os burgueses mais democráticos e republicanos na América ou na Suíça contra os operários em greve.

Concluída a revolução socialista em outubro de 1917, Lênin liderou o governo bolchevique no enfrentamento à guerra civil incensada pelas forças reacionárias russas, apoiadas pelas nações imperialistas, até 1921. Em março de 1919 em Moscou, esteve à frente da fundação da Internacional Comunista, criada na perspectiva de se tornar uma “União Mundial das Repúblicas Socialistas Soviéticas” e de promover em todo o mundo a luta pela afirmação da ditadura do proletariado no lugar da democracia burguesa. 

Ultrapassado o período que ficou conhecido como “comunismo de guerra”, com a vitória das forças proletárias, Lênin comandou a recuperação econômica da Rússia, implantando a NEP (Nova Política Econômica), através da qual medidas capitalistas foram utilizadas para suplantar o enorme atraso estrutural em que se encontrava o país e para estabelecer as bases necessárias à construção da nova sociedade socialista.

No III Congresso da IC, realizado em 1921, com base em seu texto Esquerdismo, doença infantil do comunismo, Lênin passava a reconhecer que a onda revolucionária havia regredido, centralmente na Europa, daí a necessidade de um trabalho dos comunistas no interior dos sindicatos dominados por direções reacionárias, além da participação nas eleições instituídas pelo calendário político democrático-burguês, tendo em vista a conquista de cadeiras, pelo movimento operário, nos parlamentos dos países capitalistas. 

Lênin percebia que os partidos comunistas fora da Rússia Soviética tinham pequena inserção junto às massas e insistiam em adotar táticas revolucionárias calcadas na experiência dos bolcheviques, as quais não demonstravam ser adequadas à realidade social, econômica e política do ocidente capitalista.
                                                                                

Lembrava Lênin que os bolcheviques necessitaram de quinze anos para se preparar como uma força política organizada para a conquista do poder na Rússia, afirmando que a vitória sobre a burguesia seria impossível sem uma “guerra prolongada, tenaz, desesperada, de vida ou de morte; uma guerra que exige tenacidade, disciplina, firmeza, inflexibilidade e unidade de vontade”. 

Afinal, tratava-se de enfrentar um poder que não residia apenas na força do capital e na solidez das suas relações internacionais, mas igualmente na “força do costume, na força da pequena produção”. O dirigente bolchevique indicava a necessidade de uma revolução que fosse também capaz de promover transformações de ordem moral e cultural para vencer a ideologia do capitalismo.

Morto aos 53 anos, em 21 de janeiro de 1924, após acidentes vasculares decorrentes de uma saúde debilitada por vários anos de intensa dedicação ao trabalho revolucionário, Lênin deixou um legado político que provocou a reação raivosa da burguesia e da socialdemocracia, que sempre buscaram demonizá-lo e tudo o que ele representa. 

Em contrapartida, para os revolucionários e trabalhadores conscientes da necessidade de substituir a ordem capitalista e pelo socialismo, há a certeza de que seu pensamento mantém-se como um guia indispensável para a ação transformadora. 

Nos dias de hoje, em que ficam cada vez mais evidentes a incompatibilidade do capitalismo com a democracia (fato particularmente visível no Brasil de janeiro de 2014, quando o governo democrático petista acaba de baixar uma portaria em defesa da Lei e da Ordem, pela qual deixa claro que o aparato repressivo do Estado será usado contra as manifestações populares) e a impossibilidade de realizar qualquer reforma no interior do sistema que não seja em favor da própria burguesia, os trabalhadores continuarão encontrando no marxismo revolucionário de Lênin o indicativo preciso da união da teoria com a prática, para a organização das lutas de resistência e enfrentamento aos imperativos do capital, com vistas à construção da alternativa socialista, no rumo do comunismo.

i Conferir o texto de Michael Löwy “Marxismo e Positivismo no pensamento da Segunda Internacional” em As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento, Cortez Editora, 6ª edição, p. 117.

ii V. I. Lênin – Duas Táticas da Socialdemocracia na Revolução Democrática, Lisboa, Editorial Avante!, 1978, p. 98.

iii Estes textos foram reunidos por Slavoj Zizek no livro Às Portas da Revolução: escritos de Lênin de 1917, São Paulo, Boitempo Editorial, 2005. Também encontram-se disponíveis na página da Fundação Dinarco Reis (http://pcb.org.br/fdr), em Biblioteca Comunista.

iv Ver Netto, José Paulo – Marxismo Impenitente: contribuição à história das ideias marxistas, São Paulo, Cortez Editora, 2004, pp. 109-138.

v Lênin – A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky em http://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/renegado/cap02.htm.

vi ____ - Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo em http://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/esquerdismo/index.htm.

(*)Ricardo Costa, Rico, é membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro)

Comentários