Fotos exibidas em audiência da CNV desmontam versão do Exército para morte de estudante

                                                                       

Exército sustentou que o estudante de medicina morreu em decorrência de um enfarto em virtude de ferimentos durante troca de tiros com agentes da repressão, mas fotos e documentos desmentem a versão. Versão de suicídio de sargento também foi derrubada

Documentos (veja aqui) e fotos exibidas pela Comissão Nacional da Verdade durante a audiência pública realizada na última sexta-feira (24), na sede do Arquivo Nacional, com apoio da Comissão Estadual da Verdade do Rio, sobre torturas e mortes ocorridas na Polícia do Exército da Vila Militar do Rio, desmontam a versão oficial do Exército de que o estudante de medicina Chael Charles Schreier morreu, em novembro de 1969, de enfarto em decorrência de ferimentos sofridos durante a emboscada policial ao aparelho da rua Aquidabã, no Rio de Janeiro, onde ele, Maria Auxiliadora Lara Barcellos, a Dodôra, e Antonio Roberto Espinosa moravam.

Fotos obtidas no acervo do Dops pela cineasta Anita Leandro, que prepara um documentário sobre o caso com apoio da Comissão de Anistia, retratam, de frente e perfil, cada um dos prisioneiros. As fotos exibem Chael da cintura para cima, sem camisa, e mostram que ele não tinha nenhum ferimento aparente ao chegar ao DOPS, para onde foi levado primeiro, logo após a prisão.

No Relatório do Inquérito Policial Militar, assinado pelo então capitão do Exército Celso Lauria, datado de 27/02/70, ele ainda insiste na tese de que Chael teria se ferido em combate, apesar de, a essa altura, a revista Veja já ter revelado o suplício pelo qual passou o estudante de medicina.

A morte de Chael em decorrência de tortura já havia sido atestada, inclusive, em documento produzido pelo próprio Exército. Após a morte, o corpo do jovem foi levado para o Hospital Central do Exército onde o então diretor-médico, general Galeno Penha Franco, recusou-se a recebê-lo como se ele ainda estivesse vivo, e mandou que fosse feita a autópsia. O laudo elaborado por três médicos constatou as lesões.

Durante a audiência, depoimentos de ex-presos políticos que estiveram presos com Chael demonstraram a brutalidade com que o Exército os tratava. A CNV exibiu o depoimento de Dodora, gravado em 1971, quando ela estava no Chile, para o documentário norte-americano: Brazil, a Report On Torture, de Saul Landau e Haskell Wexler, em que ela revela as torturas e os abusos sexuais sofridos. Veja o documentário aqui.

A professora universitária Rosalina Santa Cruz relatou em detalhes diferentes formas de tortura que sofreu durante 52 dias seguidos, muitas delas apenas pelo fato de ser mulher. Emocionada, Rosalina contou sobre o dia em que a esmurraram na barriga diversas vezes quando souberam que estava grávida. Após sofrer um aborto, ex-presa política, irmã do desaparecido Fernando Santa Cruz, ouviu de um dos torturadores que comunista não tinha direito de ter filho.

Espinosa, em seu depoimento, afirmou ter visto as torturas sofridas por Chael, que teve o maxilar quebrado por uma coronhada e pode ter sido morto por uma pancada de fuzil no tórax.

Os presos sabiam os riscos que corriam ao caírem nas mãos dos militares. Espinosa, em seu depoimento à CNV, revelou que, ao ser preso, gritou para que Chael o matasse: "tentei travar uma luta corporal (com o policial), mas acabei algemado. Gritei para dentro da casa, onde estavam Chael e Maria Auxiliadora, para que começassem o tiroteio. Pedi que ele me matasse. Como dirigente não queria a desonra de vazar informações, e queria dar segurança aos meus companheiros, já que morto não fala. Felizmente ou infelizmente, Chael tinha péssima pontaria", lembrou.

FALSO SUICÍDIO - Além de Schreier, também morreu na mesma dependência militar, em maio de 1969, o sargento da Polícia Militar da Guanabara Severino Viana Colou. Os documentos, mostrados pelo secretário executivo da CNV, André Saboia, comprovam que a versão oficial do Exército, a de que Severino teria cometido suicídio, não é verdadeira.

Único militar entre os convocados que compareceu para depor, o coronel reformado do Exército Hargreaves Figueiredo Rocha, de 82 anos, negou ter sido um dos autores do laudo de necropsia produzido dentro do Hospital Central do Exército (HCE), segundo o qual Severino cometeu suicídio enforcando-se com as próprias calças.

"Nunca tomei conhecimento disso. Nunca trabalhei em necropsia. Não ia assinar laudo de necropsia", afirmou Hargreaves, que alega sempre ter atuado como médico pediatra e que nunca exerceu a função de legista no Exército. Ele afirmou inclusive que pretende processar os autores de laudo, cujas rubricas passarão por análise grafotécnica. O médico chegou a dizer que nunca soube de tortura ou mortes de presos políticos, o que indignou parte da plateia.

Ex-preso político que militava na mesma organização de Colou, o professor Amílcar Baiardi prestou seu depoimento na audiência e também contesta a versão oficial para a morte do companheiro. "A versão de que ele fez uma corda com a calça não faz sentido, porque os presos ficavam nus ou apenas de cueca. Severino era meu amigo e tenho certeza de que ele não faria isso. Sobre a morte de Chael, eu fiquei sabendo por meio de um dos guardas que dizia: 'se você não colaborar, pode acontecer o mesmo que ocorreu com o estudante de medicina', mas me pareceu que ele não sabia o nome dele. Nessa hora tive a certeza de que Chael tinha morrido", afirmou o ex-militante da VAR-Palmares.

Os demais ex-militares convocados para a audiência não compareceram. Capitão em 1969, Celso Lauria apresentou atestado médico; sargento na época das mortes, Euler Moreira de Moraes afirmou que já tinha uma viagem programada para a data. Intimado pela Polícia Federal, Luiz Paulo Silva de Carvalho não apresentou justificativa. Ele pode ser processado pelo crime de desobediência.

APURAÇÃO CONTINUA – A advogada Rosa Cardoso, membro da Comissão Nacional da Verdade responsável pela audiência considerou grave a afirmação de Hargreaves e determinou que a CNV prossiga na apuração. "Isso (a declaração do ex-médico militar de que não atuou no laudo de Colou) confirma que o exército adulterava laudos. Vamos fazer uma investigação para tentar averiguar como o nome do doutor Hargreaves apareceu neste laudo", disse.

Presente a audiência, o coordenador da CNV, Pedro Dallari, afirmou que a Comissão Nacional da Verdade continuará a realizar audiências públicas ao longo dos próximos meses e outras diligências necessárias para concluir o relatório da Comissão, que já está sendo elaborado e já teve a estrutura e capítulos definidos.

Participaram da audiência pública os membros da Comissão da Verdade do Rio, Wadih Damous (presidente) e Nadine Borges e o membro da Comissão da Verdade Dom Hélder Câmara, de Pernambuco, Manoel Moraes.

A audiência de sexta-feira foi precedida, na véspera (23/01), de uma diligência de reconhecimento do local onde funcionou a Polícia do Exército da Vila Militar. Os ex-presos políticos que prestaram depoimento na audiência reconheceram o local, apesar das modificações ocorridas ali ao longo dos anos. Veja aqui o vídeo da diligência, produzido pela CNV com imagens da Empresa Brasil de Comunicação (EBC).