Seleção em campo, militares nas ruas

                                         

Nestor de Miranda (*)

 Seleção brasileira em campo, militares na rua. Foi o que se deu em Porto Príncipe, Haiti, em 19 de agosto de 2004, quando, a convite do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e com o auxílio da FIFA, a Seleção Brasileira disputou um amistoso com a equipe haitiana — artifício engendrado com o intuito de criar, para o povo daquele país, uma imagem positiva das tropas brasileiras que haviam aportado ali meses atrás: os integrantes da Missão das Nações Unidas para a estabilização no Haiti (MINUSTAH).

Missão de paz liderada pelo Exército Brasileiro que — mesmo marcada pelo suicídio de um de seus comandantes, o general Urano Teixeira da Mata Bacelar, e por várias denúncias de violações a direitos da população local (com casos de roubo, homicídio e estupro) — é apontada pelo atual comandante do Exército, o general Enzo Martins Peri, como experiência por meio da qual os militares estariam aptos a atuar em solo pátrio, exercendo poder de polícia nas chamadas operações de Garantia da Lei e da Ordem.

Desde a ocupação do complexo do Alemão, em 2010, quando a Marinha agiu em conjunto com a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro na chamada Operação Arcanjo, as Forças Armadas têm atuado cada vez mais dentro do solo pátrio fazendo as vezes da polícia. Depois desse episódio, militares estiveram nas ruas em 2010, durante as eleições; entre o final de 2011 e o início de 2012, quando as polícias de Estados do Norte e Nordeste do país entraram em greve; em 2012, na Rio+20; e em 2013, em diferentes momentos: na Copa das Confederações, na visita do papa Francisco e no leilão do Campo de Libra. Além disso, durante esses anos, participaram também de várias ações de desocupação de terras.

Esses fatos confirmam o então afirmado pelo general Alberto Cardoso, em palestra ocorrida na Escola do Comando e Estado Maior do Exército no ano de 2003. Dizia então o militar que seria uma questão de tempo até que as Forças Armadas começassem a ser empregadas de forma semipermanente como agentes incumbidos da segurança pública.

A previsão legal para tal atuação é encontrada no caput do art. 142 da Constituição Federal, no qual se lê que a Marinha, o Exército e a Aeronáutica são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, destinadas à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

A previsão constitucional é disciplinada pelo decreto nº 3.897/2001, que afirma em seu art. 3º que as Forças Armadas poderão ser empregadas para a garantia da lei e da ordem no intento de preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio, quando esgotados as forças das polícias (polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis, polícias militares e corpos de bombeiros militares). 

Ainda no mesmo dispositivo, temos que as Forças Armadas desenvolverão nesses casos ações de polícia ostensiva, preventiva e repressiva, dentro do que legalmente cabe a Polícia Militar, sendo que o art. 4º permite que nessas operações a Polícia Militar Estadual funcione sob o mando das Forças Armadas.
                                                     
O art. 5º do decreto, por sua vez, afirma que o emprego das Forças Armadas nesses casos deverá ser episódico, em área previamente definida e ter a menor duração possível. O dispositivo ainda frisa que eventos oficiais ou públicos são hipóteses nas quais é de se presumir que ocorra a perturbação da lei e da ordem.pm2

Dentro desse contexto (fático e jurídico), o Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas (EMCFA) elaborou um documento, aprovado pelo ministro da Defesa (Celso Amorim), que estabelece as diretrizes para as operações dessa espécie. O manual foi publicado no Diário Oficial da União em 20 de dezembro de 2013 e merece ser lido na íntegra.

O seu ponto 2.2.2 esclarece o que é necessário para que se considere esgotadas as forças policiais normais — o mero reconhecimento formal do governador do Estado ou do presidente da República.

Já o ponto 4.3, por sua vez, trata do termo forças oponentes. Depois de afirmar expressamente que nas operações dessa sorte não existe a clássica caracterização de inimigo, o Manual afirma (4.3.1) que são consideradas oponentes as forças que deverão ser objeto de atenção, acompanhamento e possivelmente enfrentamento durante a condução das operações.

Logo adiante (4.3.2) há uma lista não exaustiva desses agentes, começando com movimentos ou organizações:

4.3.2 Dentro desse espectro, pode-se encontrar, dentre outros, os seguintes agentes como F Opn:
a) movimentos ou organizações;
b) organizações criminosas, quadrilhas de traficantes de drogas, contrabandistas de armas e munições, grupos armados etc;
c) pessoas, grupos de pessoas ou organizações atuando na forma de segmentos autônomos ou infiltrados em movimentos, entidades, instituições, organizações ou em OSP, provocando ou instigando ações radicais e violentas; e
d) indivíduos ou grupo que se utilizam de métodos violentos para a imposição da vontade própria em função da ausência das forças de segurança pública policial.

 Movimentos ou organizações, um termo propositalmente vago, amplo o suficiente para conseguir englobar qualquer tentativa de organização, ainda que pacífica ou temporária, da população. É possível inserir aí partidos, associações, grupos de militantes e manifestantes de qualquer tipo. É sintomático que logo depois tenhamos o crime organizado, esse elemento essencial às atuais políticas baseadas no medo, aqui momentaneamente rebaixado ao segundo lugar; seguido por agentes infiltrados na máquina estatal e indivíduos ou grupos aproveitando-se da ausência de policiamento (os já famosos "vândalos").

Logo depois, no ponto 4.4, também em lista exemplificativa, o Manual elenca as principais ameaças protagonizadas pelas forças oponentes:

4.4 Principais Ameaças

Entre outras, podem-se relacionar os seguintes exemplos de situações a serem enfrentadas durante uma Op GLO:
a) ações contra realização de pleitos eleitorais afetando a votação e a apuração de uma votação; 
b) ações de organizações criminosas contra pessoas ou patrimônio incluindo os navios de bandeira brasileira e plataformas de petróleo e gás na plataforma continental brasileiras;
c) bloqueio de vias públicas de circulação; 
d) depredação do patrimônio público e privado;
e) distúrbios urbanos;
f) invasão de propriedades e instalações rurais ou urbanas, públicas ou privadas;
g) paralisação de atividades produtivas;
h) paralisação de serviços críticos ou essenciais à população ou a setores produtivos do País;
i) sabotagem nos locais de grandes eventos; e
j) saques de estabelecimentos comerciais.

Apesar de as duas primeiras hipóteses parecerem razoáveis; da terceira em diante percebe-se que — valendo-se da possibilidade de caracterizar organizações ou movimentos como forças oponentes — muito do que foi feito pela população nas jornadas de junho é aqui considerado ameaça, justificando a intervenção das Forças Armadas. Uma passeata de maior expressão, por exemplo, pode ser facilmente enquadrada na hipótese da alínea c, bloqueio das vias públicas de circulação; a tentativa de adentrar no malsinado perímetro da FIFA, como foi feito por manifestantes durante a Copa das Confederações (e provavelmente será feito durante a Copa do Mundo), poderá ser considerada como sabotagem no local de grande evento, o que é previsto alínea i; ocupações de qualquer natureza estão previstas na alínea f; enquanto as alíneas g e h cuidam das greves, respectivamente, no setor privado e público.

Em outro ponto do documento fica evidente que há uma clara intensão de levar o conceito de ostensão ao seu limite, empregando-se forças desproporcionalmente superiores contra os oponentes:

4.2.4.2 Ações dissuasórias devem ser adotadas para que as ameaças identificadas não se concretizem, evitando, assim a adoção de medidas repressivas.

4.2.4.3 Esta dissuasão deve ser obtida lançando-se mão de todos os meios à disposição, podendo incluir o Princípio de Guerra da Massa, que fica caracterizado ao se atribuir uma ampla superioridade de meios das forças empregadas em Op GLO em relação às F Opn.

4.2.4.4 Nesse mister, demonstrações de força e de poder de combate superior ao oponente e da ampla utilização de policiamento ostensivo, resultarão no desestímulo para as ações das F Opn.

 Ademais, encontra-se também entre as diretrizes do manual a previsão de emprego de operações psicológicas, de inteligência e contrainteligência (4.2.6, 4.2.2).

Percebe-se, então, que o Estado escolheu mesmo o caminho do enfrentamento para lidar com as manifestações que certamente surgirão esse ano, contrárias à realização da Copa do Mundo. Enquanto alguns defendem a desmilitarização da polícia, as autoridades se preparam para colocar o militar no lugar do policial. A população nas ruas não será vista como o povo, de quem emana todo o poder da República, com o qual deveria haver, antes de tudo, diálogo; mas como força oponente a ser desmobilizada e reprimida.

A Copa do Mundo de 2014 promete deixar bem claro o quão atrasados somos, o quão nosso Estado Democrático de Direito tem  de monarquia escravocrata transformada em república por militares positivistas. E nada é novo, nada deve gerar surpresa. A fórmula já foi testada. Vai ser como no Haiti. Seleção Brasileira em campo, militares na rua.

(*) Nestor de Miranda é advogado e blogueiro, escreve em http://conformitatisosor.wordpress.com/.

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