Entrevista com Martin Scorcese
«Wall Street é o equivalente moderno da mafia»
François Forestier
Falando sobre o seu filme mais recente, Scorcese explica a equivalência que identifica entre os métodos do capital financeiro e os da mafia: ambos acumulam riqueza sem olhar a meios. Mas enquanto os gangsters são socialmente proscritos, os banqueiros são vistos como exemplo do estofo que é necessário “para vencer”.
Nouvel Observateur – Então, Wall Street é o equivalente moderno da mafia?
Martin Scorsese – Exactamente. O herói de «O lobo de Wall Street», Jordan Belfort, é irmão de Henry Hill, o personagem de «Um dos nossos» [Goodfellas]. Este último chegava a ter tudo, dinheiro, mulheres, cocaína, enquanto ia ascendendo na hierarquia da mafia. Em Wall Street muda a decoração e, aparentemente, a moralidade é mais refinada, mas é a mesma coisa. Socialmente não é aceitável ser um gangster. Pelo contrário, é correcto fazer dinheiro graças ao sistema, sejam quais forem os meios.
Onde está a linha divisória?
Interrogo-me sobre isso. Quando era pequeno, observava as pessoas do meu bairro italiano: era uma coisa cheia de contrastes. Estavam ali os que tinham uma aura de responsabilidade e estavam os que a não tinham. Eu sabia que entre os excluídos havia pessoas boa, mas que era tratada como rufiões. Era tudo uma questão de imagem.
Na sua opinião, o que é que fez cristalizar esta visão da sociedade?
Na minha adolescência vi a «Ópera dos três vinténs” que me abalou. A obra foi levada à cena em Greenwich Village e nunca me esqueci o final. Quando vêm prender Mackie o Navalha, pede a palavra. Conta o que fez e é exactamente o mesmo que Chaplin em «O senhor Verdoux»: volta as suas próprias acusações contra os seus acusadores: «O que é roubar um banco? Fundar um banco não é a mesma coisa?», pergunta. Para ele as duas morais são iguais.
O seu herói comporta-se como um lobo, como diz no título do filme…
Sim, o mundo da finança tornou-se mais brutal e lá reina a violência. Entre a «Ópera dos três vinténs» e «O lobo de Wall Street» há uma distância galáctica, mas para pior. Tentei mostrar esse extraordinário desbocamento. Quando mais nos afundamos neste sistema, mais aumenta o perigo à nossa volta.
Normalmente, os seus personagens vivem uma ascensão, um paraíso momentâneo, uma queda e depois uma redenção. Mas aqui não há redenção. Já não acredita nela?
Tenho muito medo que não haja redenção possível para os lobos. Proceder a vendas, fechar compras, ganhar, que prazer! Isso não se pode esquecer nem apagar. Portanto, não redenção possível.
Falta-lhe então a sua fé católica?
Desespera-me o que vejo à minha volta.
Onde está o Scorcese do «Touro Selvagem»?
Desapareceu com os valores da época, que já mudaram. Hoje em dia, tudo o que se ensina aos jovens é que há que tornar-se rico.
É pessimista?
Sou um pessimista… com esperança.
Então converteu-se em Woody Allen?
Ah, ah, ah! (ri ás gargalhadas) … Não uma questão de conversão, há que continuar a lutar. Sinto-me sempre decepcionado, mas volto a começar do zero. Volto a amiúde um homem que considero um velho amigo, Albert Camus. Acabo de reler «A peste», e é uma filosofia que me agrada: estamos no absurdo, mas continuamos a acreditar no homem.
Teriam que o excomungar.
É o quer me diz por vezes o meu director espiritual, o padre Francis Princípe. Tem 86 anos e levava-me pela mão quando ei tinha 11 anos. Celebrámos há umas semanas os 60 anos da sua ordenação. Fez-me ler Graham Greene e Camus! Foi ele quem me fez pensar que talvez não houvesse o pecado original…
Heresia! Para a fogueira!
(ri às gargalhadas) … Sou um católico falhado, isso é verdade, o que me permite fazer filmes, trabalhar na indústria do espectáculo. Caso contrário não faria concessão alguma. Rezaria constantemente. Fazer filmes significa ter uma ligação com o mundo exterior, confrontar-se com ele.
O senhor faz um filme de dois em dois anos. Porquê esse ritmo?
Tenho consciência de que o tempo passa: Não tenho muito à minha frente. E há ainda tantos filmes para fazer! Tenho pânico. Desbaratei um período da minha vida.
Nos anos 70, quando estava agarrado à cocaína…
Sim. Eu era como o Leonardo DiCaprio em «O lobo de Wall Street»: queria ir até ao limite. Estive a ponto de morrer. O dia em pude olhar para mim-próprio, vi um homem que era uma fraude. Confesso que há certos elementos na personagem de Leonardo DiCaprio que são autobiográficos. Vivi uma temporada chalado. Acabara de rodar The Last Waltz, que tinha sido o tope da loucura e tinha começado a trabalhar no «Touro Selvagem». Tudo mudou. Eu não sou como o Mackie o Navalha, que não fabrica nada, não produz nada. Eu acredito! E isso pressupõe uma diferença do caraças!
O cinema salvou-o?
Precisamente. Eu queria fazer coisas, contar histórias, dirigir filmes. Estava raivoso. Com a coca era impossível. Era um beco sem saída.´
O que é que o guia no seu amor pelo cinema?
O coração. Quando faço um filme quero encontrar o coração que bate na história que conto. ´Foi uma coisa que tive de perder em «A cor do dinheiro»: não lamento ter feito este filme, mas realizei-o como uma forma de terapia. Fazia-me falta voltar a levantar-me. Paul Newman ofereceu-me essa oportunidade como um verdadeiro cavalheiro. Mas o meu objectivo último, no fundo, era «A última tentação de Cristo»: quando rodei este filme soube que tinha sobrevivido. Peguei no exemplo de John Cassavetes, de quem admiro o seu entusiasmo. Adoro «Faces»…
Filmou uma boa parte de «O lobo de Wall Street» em digital…
Sim…Tinha feito tentativas com «Hugo», mas já não é possível fazê-lo de outra maneira. Prefiro a película química, mas é uma coisa acabada, é uma batalha perdida. O que sinto falta é do negativo. Há qualquer coisa na qualidade de um rosto no celulóide que não se encontra no digital. O grão, a respiração, não sei…O digital muda totalmente a nossa forma de ver.
Como?
Quando vejo uma película antiga, «Casablanca», por exemplo, restaurada digitalmente, percebo coisas que antes não via. Afecta todo a película. Há obras que não posso voltar a ver em celulóide, são demasiado imperfeitas. O digital dá-nos uma precisão cirúrgica. Não há lugar para a imprecisão, a dúvida. Já não se suporta. De repente, pode ser que mude toda a história do cinema. Pelo menos a visão que temos dela. Talvez nós atribuamos a qualidade da película de nitrato de prata da época do cinema mudo.
De repente também se redescobrem certos filmes.
Sim. Na minha adolescência vi pela primeira vez o «Cidadão Kane» e o «Terceiro Homem», no écran televisivo. Quando voltei a vê-los no grande écran fiquei desanimado. Volto a vê-las no digital e fico desalentado. Até num tablet são geniais! A alma destes filmes sobreviveu, seja qual for o suporte.
O que é que orienta as suas escolhas na hora de rodar?
Os personagens. Não a história. Fascina-me o comportamento dos personagens. Hoje em dia vivemos na ditadura do «storytelling»: faz falta que haja peripécias, aventuras, sucessos. Quando Fellini fazia «La dolce vita» não contava uma história de A a Z: deixava avançar os personagens em situações que não eram necessárias, seguia-os, observava-os e o filme construía-se assim. Os actos dos personagens davam-lhes profundidade, uma existência de verdade. Com Leonardo DiCaprio estamos completamente de acordo nisto. Perguntam-me amiúde por que razão trabalho com ele: já são cinco as vezes que colaborámos. E eu respondo: por que não? Partilhamos a mesma ambição. Revelar…
E é?
Qualquer coisa da natureza humana. Não há outra coisa que interesse. A arte é isso., nada mais do que isso!
http://www.lahaine.org/index.php?p=74654
Tradução de José Paulo Gascão
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