"Carta Capital" ouviu o economista brasileiro José Luís Fiori, para quem o sistema capitalista sobreviverá "através de guerras"
Um mundo multipolar será necessariamente um ambiente conflituoso, afirma o cientista político José Luís Fiori. Enquanto os Estados Unidos tentam exercer seu poder de forma mais indireta, as potências regionais buscam firmar sua influência e, em último grau, se unem em estratégias comuns contra o império.
Dessa contradição nascem as possibilidades de conflito. “O sistema interestatal capitalista se estabiliza por meio de sua própria expansão contínua e, portanto, em última instância, através das guerras”, afirma.
Na entrevista a seguir, o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o mais arguto analista de relações internacionais do País, analisa as mudanças globais e o papel do Brasil na nova ordem.
CartaCapital: O Brasil tem atuado, por meio de grupos como o G-20 e o BRICS, de forma a fazer a governança global mais democrática. Quais são os limites dessa iniciativa? E como avaliar seu poder real frente ao grupo do G7?
José Luís Fiori: O G20 e o BRICS são dois grupos ou organismos internacionais absolutamente diferentes, pela sua origem, natureza e significado dentro do sistema internacional. Considero que eles não têm a ver com democracia. O G20 nasceu em 1999, à sombra das crises financeiras da década de 90 e adquiriu um significado emergencial com a crise de 2008/09, envolvendo a participação de chefes de Estado, ministros da Fazenda e presidentes de bancos centrais de 19 países e mais a representação da União Europeia.
Sua importância naquele momento deveu-se muito à gravidade da crise, e ao forte apoio inicial dos EUA. Mas esses dois fatores perderam força depois que o Congresso norte-americano bloqueou a reforma da estrutura de tomada de decisões do FMI, decidida pelo G20 em Seul, em 2010. Depois disso, o G20 foi esvaziado progressivamente e hoje está transformado num fórum informal de debate e consultas, sem nenhuma capacidade de decisão importante, e sem nenhum instrumento concreto de ação. Foi uma resposta emergencial à crise e serviu como âncora na hora do naufrágio, mas está fadado a ser mais uma instância mundial de troca anual de ideias inúteis, em geral bem intencionadas.
Por outro lado, o grupo do BRICS, como sabemos, nasceu de forma inteiramente diferente, quase acidental, mas foi adquirindo progressivamente uma dimensão cada vez mais interessante, por sua própria conta, e também por conta de outras transformações paralelas do panorama geopolítico mundial. Essas mudanças deram um destaque cada vez mais importante ao grupo. Ainda é um clube informal, mas reúne quatro das sete maiores economias do mundo, com cerca de 50% da população e 26% da massa do planeta, além de já produzir atualmente 25% do PIB mundial.
Para além do campo econômico, o BRICS tem aparecido cada vez mais como o único polo real e alternativo de poder no mundo frente ao G7, cada vez mais parecido a um grupo de amigos íntimos incondicionais dos EUA. Efetivamente, não há mais como explicar a presença de países como a Itália ou o Canadá neste verdadeiro “comité central” das antigas potências do mundo euro-americano. O avanço do BRICS aponta para um processo longo e talvez para um exercício mais equilibrado e oligárquico do poder global, mas com certeza isto não tem nada a ver com democracia.
CC: É possível manter essa iniciativa sem incomodar os Estados Unidos? Como atuar para diluir o poder de influência norte-americano?
JLF: Não, não é possível. Neste ponto o sistema interestatal e capitalista criado, difundido e liderado pelos europeus e pelos EUA nos últimos quatro séculos, não deixa nenhuma dúvida nem alternativa. Neste sistema, quem não sobe, cai, e quem está em cima bloqueia de todas maneiras possíveis a tentativa de subir dos novos pretendentes que se propõem a alcançar a condição de potencias regionais ou globais. É o que se vê hoje, por exemplo, com relação à reivindicação dos chamados “emergentes” a respeito do acesso e participação nas decisões do FMI e do Banco Mundial. Ou de forma mais crua e dura, com relação ao esforço norte-americano de contenção da expansão política da China, da Alemanha, do Irã ou mesmo da Rússia.
Neste sentido, o Brasil também não tem como escapar a esta regra geral na medida em que suas iniciativas internacionais o afastem do seu antigo alinhamento incondicional ao lado das potências anglo-saxônicas, e dos EUA, em particular. Sua crescente projeção econômica e politica regional dentro da América do Sul não tem como não preocupar os EUA, que sempre foram a potência líder inquestionável de todo o chamado “hemisfério ocidental”. Mas isto não significa de maneira alguma que o Brasil tenha de confrontar os EUA, porque já hoje o Brasil faz parte de um pequeno grupo de potências que podem - e devem - fazer alianças de todo tipo e com todo e qualquer país, dependendo apenas dos seus objetivos políticos e institucionais, dos seus valores éticos e dos seus interesses econômicos.
CC: Que papel o Brasil viria a desempenhar em uma nova ordem?
JLF: No século XX, o Brasil deu um salto gigantesco. No início daquele século, era apenas um país agrário, com um Estado fraco, fragmentado, e um poder econômico e militar muito inferior ao da Argentina. Neste início do século XXI, é a sétima maior economia do mundo, a maior da América Latina e tem um potencial de crescimento sem paralelo no continente. Na primeira década deste novo século, deu passos importantes para assumir sua liderança sul-americana e projetar sua influência para fora do seu próprio continente, sobretudo na África e nos países chamados de “emergentes”.
Mas esse caminho de expansão e projeção da presença e da liderança brasileira no mundo, ética, política e econômica, não será fácil, pelas dificuldades próprias de uma época de grande turbulência e transformação mundial, e pela oposição permanente e poderosa de um segmento da elite intelectual e de muitos grupos de interesse internos que se opõem à estratégia de autonomização internacional do Brasil. Esses grupos se utilizam, em geral, de uma ideologia globalizante e cosmopolita, mas de fato defendem uma volta atrás e um alinhamento econômico e político mais estreito com os EUA, e mais subordinado à estratégia de poder global das potências anglo-saxônicas. Uma volta atrás que hoje teria um imenso custo para o Brasil e sua imagem internacional.
CC: Há décadas o Brasil fala sobre a reforma do Conselho de Segurança da ONU e sua possível entrada. Esta ainda é uma pauta factível? O País não deveria buscar outras alternativas, como atuar de forma intensa em missões da ONU?
JLF: Acho que o Brasil não precisa mudar sua pauta, desde que tenha claro que se trata de uma bandeira de mobilização internacional talvez útil para criar alianças e avançar negociações, mas que não há nenhuma possibilidade de conquistar esta cadeira permanente no Conselho de Segurança, a menos de uma situação emergencial de ruptura internacional, e mesmo que o Brasil se alinhe de forma incondicional ao lado dos EUA dentro do Conselho. O resto faz parte de uma encenação internacional importante como afirmação da vontade brasileira de ascender na ordem hierárquica internacional, sabendo que ninguém lhe dará passagem gratuitamente, nem mesmo seus sócios do BRICS ou da Unasul.
CC: Nessa iniciativa de reformar a governança global, a Unasul ainda parece ter um papel pouco importante. O senhor acha que a Unasul deveria ter um papel mais ativo?
JLF: Como lhe disse, não acredito que esteja em curso qualquer processo de “reforma” da governança mundial. O que está em curso é uma disputa cada vez mais intensa, em todos os tabuleiros regionais do mundo, pela hegemonia e pela liderança política econômica e militar dentro de cada uma destas regiões, envolvendo sempre os EUA, porque é a única potência global existente no mundo neste momento.
Dentro do sistema mundial em que vivemos as “reformas” são sempre o produto final de longos conflitos que em geral passam em algum momento por alguma guerra que acaba desequilibrando o jogo e obrigando uma mudança nas instituições e regras de governança mundial. Neste sistema ninguém abre mão de nada gratuitamente. Neste contexto, a criação da Unasul foi um passo muito importante de construção e afirmação da liderança brasileira do processo de integração da América do Sul.
Todos estes processos são muito longos e demandam enorme tenacidade, e não será diferente no caso da Unasul. Não depende apenas dela ter um papel mais ou menos importante no mundo. Depende de sua capacidade de superar suas divisões e lutas internas e de sua capacidade coletiva de aproveitar as brechas criadas pelo terremoto geopolítico e geoeconômico que está em pleno curso dentro do sistema interestatal capitalista.
CC: Como o senhor imagina o balanço das forças no mundo multipolar que aparentemente se desenha? Como se configuraria o planeta sem um império único?
JLF: Nos últimos anos, os Estados Unidos tentam construir uma nova estratégia internacional em todos os grandes “tabuleiros geopolíticos” do sistema mundial. Seu objetivo não é o de abandonar sua posição imperial, ou seu poder global. É exercê-lo de forma mais indireta por meio da promoção ativa das divisões e dos “equilíbrios de poder” regionais, segundo o modelo clássico da administração imperial da Grã-Bretanha durante o século XIX.
Mesmo se os EUA tiverem sucesso nesse intento de “terceirização” de poder, isso não impedirá a existência e a multiplicação de guerras e conflitos localizados, a envolvê-los em última instância, pois as demais potências regionais e/ou “emergentes” deverão seguir no trabalho de construir blocos e coalizões capazes de resistir, equilibrar e algum dia superar o poder local dos EUA, e quem sabe, mais à frente, desafiar a própria hegemonia global norte-americana.
CC: Essa mudança está em curso?
JLF: Do meu ponto de vista é o jogo jogado em todo o mundo: de um lado, os EUA a se distanciar, interessados mais no papel de interventores de última instância, e, de outro, as demais potências regionais na tentativa de escapar do “cerco americano” por meio de coalizões de poder que neutralizem o divisionismo estimulado por Washington. Em particular, a China faz um movimento explícito e militarizado de afirmação do seu poder e de disputa da supremacia no mar do Sul do Pacífico e em todo o Leste Asiático.
Além de tomar posições cada vez mais nítidas e expansivas na África e na América Latina. O mesmo faz a Rússia na Europa Central e em toda a Eurásia. A Alemanha, na Europa Ocidental e também na Europa Central. A Índia, no sul da Ásia. O Irã, no Oriente Médio. O Brasil, na América do Sul. E em menor escala, a África do Sul e a Indonésia em suas zonas imediatas de influência. A própria expansão do poder americano fortalece a maior parte das potências que deverão competir com os EUA nas próximas décadas pelas hegemonias regionais do mundo.
CC: É um movimento contraditório.
JLF: Sim. E é preciso compreendê-lo. A expansão constante da potência hegemônica fortalece continuamente seus futuros adversários, ao mesmo tempo que desestabiliza o próprio sistema. Não há como desmontar essa armadilha, pois a competição generalizada cria a energia responsável pelo movimento contínuo de expansão do sistema mundial. Por isso também, no horizonte desse sistema, não há nenhuma possibilidade de paz ou estabilidade perpétua. O sistema interestatal capitalista se estabiliza por meio de sua própria expansão contínua e, portanto, em última instância, através das guerras. E se o sistema parasse de se expandir, tampouco haveria paz perpétua. Haveria entropia e desordem, pois sua ordem nasce do seu movimento.
CC: Vladimir Putin tenta recuperar a influência, ainda que limitada, da Rússia no cenário internacional. Até onde ele pode chegar?
JLF: A Rússia já foi atacada, invadida e destruída várias vezes ao longo de sua história milenar, mas sempre voltou a se levantar, se reconstruir e reocupar uma posição de destaque entre os grandes poderes mundiais. A partir de 1991, parecia impossível que isso voltasse a acontecer, depois da derrota soviética e da destruição liberal da economia russa. Vinte e três anos depois, a Rússia está de novo de pé e volta a preocupar o “mundo ocidental”. Logo depois da Segunda Guerra Mundial, Hans Joachim Morgenthau, o pai da teoria política internacional realista, norte-americana, formulou a tese de que a causa das guerras tem a ver com a vontade dos derrotados de recuperar sua posição anterior à derrota, para retomar seu lugar na hierarquia do poder mundial.
CC: Seria essa a situação da Rússia?
JFL: Desde Alexandre I, que governou de 1825 a 1855, a Rússia já perdeu perto de um quinto do seu território e quase metade de sua população, e deverá tentar de todas as maneiras recuperar esses territórios ocupados, em muitos casos, pelas forças da Otan. A Rússia atual não tem mais a força e a projeção ideológica global da União Soviética, e só se propõe a ser uma grande potência eurasiana. Mas não se deve esquecer que, mesmo retaliada e diminuída, a Rússia atual segue sendo o maior Estado territorial do planeta, dona da maior reserva energética e do segundo arsenal atômico do mundo.
E é o único país europeu com capacidade real de intervenção estratégica e de disputa hegemônica em todo o continente eurasiano. Foi isso que percebeu o grande geopolítico inglês Halford John Mackinder, ao propor, no início do século XX, e antes do nascimento da União Soviética, a necessidade de cercar e conter a Rússia de forma permanente. No século XX, a necessidade de “conter o comunismo” caiu como luva para a estratégia geopolítica de longo prazo dos países de língua inglesa, a mesma nesta segunda década do século XXI.
CC: A crise na União Europeia se atenuou um pouco, mas o desemprego continua altíssimo e não há sinais de uma recuperação mais vigorosa. O senhor considera que a ideia da União Europeia ainda continua sob risco?
JLF: Independentemente das flutuações da crise econômica conjuntural, o verdadeiro problema de longo prazo da União Europeia é que ela tem uma “falha de origem” e é prisioneira, há muito tempo, de uma armadilha circular. Ela precisaria de um poder centralizado para poder se transformar numa verdadeira unidade politica e econômica capaz de hierarquizar seus próprios objetivos de curto e longo prazo. Mas ela não tem nem terá jamais este poder centralizado enquanto seus principais Estados nacionais seguirem bloqueando este processo de centralização.
Porque, no fundo, a Europa sempre esteve dividida e está cada vez mais dividida, entre os projetos estratégicos de seus três principais sócios, a França, a Alemanha e a Inglaterra. E este quadro piorou depois do fim da Guerra Fria, quando a Alemanha se transformou na maior potência demográfica e econômica do continente, e passou a ter uma política externa independente, centrada nos seus próprios interesses nacionais, que incluem o fortalecimento dos seus laços econômicos e financeiros com a Europa Central, e com a Rússia.
Este comportamento alemão acentuou o declínio da França, que tem cada vez menos importância internacional, e favoreceu o fortalecimento do “euroceticismo” britânico, reacendendo a competição e a luta hegemônica dentro da União Europeia, e trazendo de volta as suas velhas fraturas e divisões seculares.
CC: E a relação da Europa com os Estados Unidos?
JLF: Esta falta de um poder central capaz de definir e impor objetivos e prioridades estratégicas comuns fica agravada pela submissão militar dos europeus à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e aos EUA, que foi quem impôs a expansão apressada da UE, em direção ao leste, logo depois de 1991, para “ocupar” os Estados que haviam pertencido ao Pacto de Varsóvia, e haviam estado sob controle russo.
Presa dentro desta camisa de força, a União Europeia é hoje um “ente político” fraco, com uma moeda falsamente “forte”, e com muito pouca capacidade de iniciativa autônoma, dentro do sistema mundial. Por isto, a União Europeia está se transformando rapidamente numa “carta fora do baralho”, dentro da nova geopolítica mundial, desta primeira metade do século XXI, até porque, isoladamente, suas antigas grandes potências não têm mais a mesma importância que tiveram no passado e só se mantêm no topo do sistema graças a sua associação dependente dos Estados Unidos. Mesmo a Alemanha, que luta para se reafirmar no cenário geopolítico mundial, ainda segue sendo prisioneira do seu passado e de sua condição de “protetorado atômico” dos EUA.
CC: Os BRICS acabam de anunciar a criação de um banco de desenvolvimento e de um fundo de estabilização. Como o acordo entre os emergentes vai afetar a velha ordem econômica do planeta?
JLF: A criação do banco de desenvolvimento e do fundo de compensações representa uma mudança qualitativa na trajetória do grupo. É, de fato, sua primeira materialização concreta. A partir dessa decisão, por mais longo que venha a ser o seu processo de montagem e institucionalização, os BRICS deixaram de ser um grupo diplomático e político informal e passou a ter um instrumento concreto de ação econômica e administração conjunta.
Talvez tenha sido a decisão mais importante no campo financeiro internacional das últimas décadas, e a primeira que escapa inteiramente aos desígnios da finança pública e privada anglo-americana, mesmo sem confrontá-la. Essa decisão não muda de forma imediata e radical a velha ordem monetário-financeira do planeta, liderada em um primeiro momento pela moeda inglesa e hoje pelo dólar norte-americano.
Mas o mais importante é a forma em que foi dado esse passo, assumido como gesto simbólico e político, e como parte de uma estratégia de construção de circuitos monetários e financeiros paralelos e de contenção, não necessariamente contraditórios com a ordem monetária e financeira anglo-saxônica.
CC: O senhor vê alguma possibilidade de o dólar perder espaço para outras moedas, como o yuan, no futuro próximo?
JLF: Sim, em particular no circuito econômico asiático e em todas as áreas do mundo onde cresça a presença comercial e financeira dos chineses. Não quer dizer que as moedas regionais ou setoriais possam substituir a curto prazo o dólar como referência internacional. Moeda é uma criação do poder e um recurso fundamental na competição entre os Estados e as economias do sistema interestatal capitalista. Só houve até hoje duas moedas de referência internacional, a libra e o dólar, e as duas tiveram e continuam a ter papel decisivo na construção e na reprodução do poder global da Inglaterra e dos EUA.
Nem a libra nem o dólar se transformaram em referência da noite para o dia, nem foi apenas uma escolha dos mercados. A libra só se generalizou dentro e fora da Europa a partir de 1870, quase dois séculos depois do início da escalada do poder da Inglaterra. E o dólar só ocupou espaço depois da Segunda Guerra Mundial e após mais de um século do início da escalada internacional do poder político, militar e comercial dos EUA
CC: E como a China está posicionada para lutar por esse espaço?
JLF: A conquista de um reconhecimento e aceitação supranacional por parte de uma moeda nacional envolve sempre um processo lento e uma luta contínua, passo a passo junto com a expansão do poder do seu Estado emissor, até se transformar numa potencia regional ou global como foi o caso da Inglaterra e dos Estados Unidos. No caso da China ainda falta muita estrada, mas não há dúvida que a China está seguindo uma estratégia paulatina de expansão do seu poder e do poder de sua moeda nacional.
Neste sentido a decisão recente de criar o banco de desenvolvimento e o fundo de compensação do BRICS deve ser colocada ao lado de outras propostas e iniciativas chinesas. São os casos da criação do Asian Infraastructura Investment Bank (AII), da Chiang Mai Iniciative Multilateralization (CMIM) e do Asian Multilateral Research Organiztaion (AMRO), que já conta com um fundo de 240 bilhões de dólares, destinado a ajudar países asiáticos com dificuldades de balanço de pagamentos.
Além disso, deve-se computar nesta mesma direção a iniciativa chinesa de criação do Asian Bond Market, destinado a mobilizar recursos de investimento na região, assim como o rápido desenvolvimento do chamado Dim-Sum Bonds, ou seja o mercado de título designados em yuan. O caminho será longo, porque o chineses parecem ter absoluta claridade que até hoje todos os que tentaram desafiar a supremacia monetário-financeira das duas potencias anglo-saxônicas foram bloqueados, derrotados ou destruídos.
CC: Há muitas críticas à crescente “sinodependência” do Brasil. Como o País poderia aproveitar melhor essa relação ou, de outro ponto-de-vista, evitar grandes perdas na aproximação com a China?
JLF: Da mesma forma que com qualquer outra grande potência maior, mais rica e mais poderosa do que o Brasil. Calculando cada passo político e econômico e mantendo sempre claros os objetivos e interesses fundamentais do Brasil naquela aliança circunstancial. Neste sistema não há alianças eternas nem lealdades indissolúveis, que não seja talvez, entre os países de fala e sangue inglês.
Neste momento a China é um aliado fundamental do Brasil, em alguns campos, e com vistas a alguns objetivos comuns. Mas pode deixar de ser logo a frente e, mesmo hoje, pode ser em algumas coisas e em outras não. De qualquer maneira, do ponto de vista dos interesses econômicos fundamentais do Brasil, o Brasil tem de batalhar com todos os instrumentos a sua disposição para impedir que a integração econômica entre Brasil e China contribua para a desindustrialização brasileira e a transformação do país numa “periferia de luxo” chinesa, exatamente pelo mesmo motivo que o Brasil se opôs ao projeto norte-americano de criação da Alca.
CC: O Brasil tem uma participação muito pequena na corrente internacional de comércio. Como o País poderia se integrar de forma mais efetiva?
JLF: O caminho, certamente, será longo e complexo, pois nesse campo, como no caso das moedas, não existem milagres ou soluções automáticas. E deve começar pelo correto entendimento de como funcionam os mercados internacionais, que mais se assemelham a uma guerra de movimentos entre forças desiguais do que a um jogo de troca-troca entre unidades iguais e bem informadas. Uma guerra assimétrica entre Estados e capitais que atuam como grandes predadores na luta pelo controle monopólico de posições de mercado, inovações tecnológicas e lucros extraordinários. Hoje, de novo, o problema não é o de se integrar nas correntes de comércio ou nas cadeias produtivas.
CC: Alguns analistas avaliam o Mercosul e a Aliança do Pacífico como blocos concorrentes. O senhor acredita que sejam mesmo? Se sim, de que forma a competição afeta o status da América do Sul no mundo?
JLF: Em algum momento escrevi que a Aliança do Pacífico tem mais importância estratégica e ideológica do que econômica, dentro da América do Sul, e esta importância seria sobretudo para os EUA e sua rede de apoios dentro do continente sul-americano. Fora disto, os três países sul-americanos que fazem parte da Aliança do Pacífico não representam nenhum ameaça ou competição para o Brasil. Pelo contrário, Colômbia, Chile e Peru já estão praticamente integrados com o mercado brasileiro e devem ter suas barreiras comuns eliminadas até no máximo 2018.
Estes países são pequenas economias mono-exportadoras de commodities, sem escala para promover um processo de industrialização autônomo apoiado no seu mercado interno. A Colômbia exporta principalmente combustíveis minerais, que ocupam 66% de sua pauta de exportações; o Peru exporta minérios, metais preciosos e combustíveis minerais que constituem 63% de suas exportações; e, no caso do Chile, a exportação de cobre sozinha já representa 60% de suas exportações.
No caso da Colômbia, a China já é seu segundo maior parceiro comercial; e no caso do Peru e do Chile, a China é o primeiro parceiro. Nenhum desses três países se propõe qualquer tipo de desafio econômico, nem representa uma ameaça para o Brasil. Nos três casos, a disputa do Brasil pelos seus mercados internos é com a China e os EUA, e todos os três ocupam um lugar importante como destino das exportações brasileiras de maior valor agregado.
No médio prazo, o Brasil pode ganhar posições sem maior conflito, basta aumentar seu ritmo de crescimento e aprofundar a sua integração física com o Pacífico. O Brasil concentra hoje mais da metade do PIB sul-americano e possui uma indústria mais diversificada e uma economia mais sofisticada que a de todos os demais países do continente. Se for capaz de construir essa infraestrutura terá todas condições de se transformar, a médio prazo, no polo econômico de referência de toda esta região.
CC: Como o senhor avalia os resultados da intervenção dos EUA no Oriente Médio e quais os riscos da nova realidade na região?
JLF: Logo após o fim da Guerra Fria, em 1994, a Otan lançou um projeto de intercâmbio militar e de segurança com os países árabes do Norte da África, o chamado Diálogo Mediterrâneo. Dez anos depois, lançou uma nova Iniciativa de Cooperação de Istambul, centrada nos países do Oriente Médio. Nesse mesmo ano, o presidente George Bush, o pai, alargou os objetivos estratégicos americanos e da Otan, e falou pela primeira vez no Grande Médio Oriente, na reunião do G-8, em Sea Islands, nos EUA. A proposta de Bush pai era criar um novo espaço unificado de intervenção geopolítica, do Marrocos ao Paquistão, e deveria ser objeto da preocupação prioritária das chamadas potências ocidentais na sua guerra contra o “terrorismo islâmico”.
CC: Não deu certo.
JLF: Vinte anos depois da primeira iniciativa da Otan, a estratégia, pode-se dizer, foi um rotundo fracasso. A incapacidade demonstrada pelos EUA e europeus de controlar o mais recente ataque israelita à Faixa de Gaza é apenas a última gota de um desastre do tamanho do Grande Médio Oriente. Mesmo após as guerras do Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria e, de novo, Afeganistão, ainda seguem em pleno curso vários conflitos civis e inúmeros processos avançados de desintegração de Estados e sociedades no próprio Afeganistão, Iraque, Síria, Líbano, Iêmen, Líbia, Sudão e Palestina, ao lado da desastrosa restauração militar no Egito, da crescente militarização da Arábia Saudita, da instabilidade crônica do Paquistão e do descontrole fundamentalista de Israel.
Esse grande fracasso estratégico talvez possa ser considerado como o fim da desastrosa retaliação colonialista do Império Otomano feita por França e Inglaterra, responsáveis pela criação de fronteiras e Estados absolutamente artificiais em todo o Oriente Médio, nascidos para atender aos interesses econômicos e geopolíticos das duas potências e seus aliados.
Esse talvez tenha sido um dos maiores atestados de incompetência e egoísmo da parte do “homem branco europeu”, deixando atrás de si um legado de violência na mesma região onde os turcos otomanos tinham demonstrado uma capacidade milenar de estabilização e aceitação pacífica da convivência religiosa. Uma história vergonhosa, mas talvez possamos assistir ao início de uma nova história a ser escrita pelos próprios povos, civilizações e sociedades que pertenceram ao antiquíssimo Império Otomano.
CC: Por que a Primavera Árabe não se tornou o “sopro de democracia” que o Ocidente imaginava?
JLF: A tal Primavera foi apenas mais uma invenção delirante do egocentrismo e da fantasia cinematográfica dos europeus e americanos.
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