Quarteirão dos vizinhos mortos


Carlos Lúcio Gontijo


O que pode haver de mais violento que um cidadão procurar por atendimento médico, não encontrá-lo e morrer numa fila de espera qualquer do sistema público de saúde?


Ângela Maria Sales Dias, leitora nossa à qual não conhecemos pessoalmente, está selecionando frases e versos extraídos de nossos 13 livros, para futuramente ser editados (“Carlos Lúcio Gontijo na bateia de uma leitora”, deve ser o título). Foi assim, no empenho da garimpagem, que ela nos enviou por e-mail o aforismo “Quando tudo passa é a janela que fica”. Pensamento poético e literário criado por nós e que se nos apresentou ainda mais real com o sepultamento, no dia 12 de fevereiro de 2012, de Dona Lourdes (do Seu Olímpio), a última vizinha dos tempos de minha infância e adolescência, quando eu morava com meus pais na cidade de Santo Antônio do Monte, num curto quarteirão da Rua Sebastião Gontijo (um dos irmãos de meu saudoso e querido avô Toinzinho Lacerda), outro vizinho que, ao morrer, virou nome da rua em que morávamos.
Agora, definitivamente, são outros e novos os olhares nas janelas da rua que guarda tantos passos e tantas memórias de nossa vida, com uma nova geração dando início à construção de sua história no planeta Terra. Todos sabem que a vida é passageira, breve e fugidia, mas permanecem e agem como se fossem eternos, com muitos vivendo tão-somente para juntar, apesar de os caixões não possuírem gavetas nem meios para transportar riquezas materiais. Ou seja, entramos e saímos deste mundo sem qualquer bagagem, a não ser o desenvolvimento (ou empobrecimento) de nossa própria e particular luz espiritual.
É constatação das mais lamentáveis observarmos que as pessoas, em plena decantada sociedade moderna, ainda estejam tendo de sair às ruas, como se deu recentemente no Egito, para protestar contra a fome patrocinada pelo poder governante, onde na maioria dos casos mesmo os democraticamente eleitos cuidam de administrar ou governar para alguns privilegiados, enquanto aprofundam a miséria da imensa maioria. Temos repetido em nossos artigos e livros que o Estado é uma grande fonte de violência, a nos dar constantes lições de menosprezo pela vida através de suas ações, ou mesmo por falta de atitude diante dos problemas que afligem a população. O que pode haver de mais violento que um cidadão procurar por atendimento médico, não encontrá-lo e morrer numa fila de espera qualquer do sistema público de saúde?
Todavia, voltando ao traçado urbano onde nossos vizinhos desencarnaram, afiançamos que não deixaremos de passar pelo sombrio (mas sem escuridões) quarteirão dos vizinhos mortos, no qual lentamente nos entregaremos às lembranças e até ouviremos as vozes e os aromas da existência cotidiana de gente do passado, que nos habitam a mente e a alma (nossa formação moral e espiritual): tio Sebastião e tia Menina; Dona Quinquina e Toninha; Dilermando e Anita; Olavo Batista e Dona Dalva, Seu Joaquim e Dona Amélia; Seu Olímpio e Dona Lourdes... Que saudade que dá e que lição tão clara de nossa fragilidade diante das divinais claridades que nos rodeiam e às quais não podemos ver nem sentir, pois culturalmente nossos olhos estão preparados para ver e admirar apenas ao que podemos tocar – mesmo quanto atordoados pela realidade de outros rostos nas janelas a observar a paisagem estampada na rua da efêmera vida de cada um de nós!
Carlos Lúcio Gontijo
Poeta, escritor e jornalista
http://www.carlosluciogontijo.jor.br/

Comentários

Anônimo disse…
Que saudade de todas essas pessoas!!
O amigo Carlos Lucio lembrou bem de todos eles.