Onde a tortura nunca para
Os prisioneiros de Guantánamo não têm nada para confessar. É tortura pela tortura, em um pedaço do mundo em que não se aplica nenhum limite moral ou legal
Jeffrey St. Clair, originalmente publicado em Counterpunch
Passava pouco das cinco da manhã de um domingo em abril. Os prisioneiros da ala comum do Campo 6 de Guantánamo acabavam de se reunir para as orações matinais. De repente, as luzes se apagaram, as portas das celas se fecharam e cilindros de gás lacrimogêneo irromperam.
Guardas militares entraram nas celas, disparando munição plástica com escopetas sobre os detentos amontoados. Três homens caíram no chão, contorcendo-se de dor depois de terem sido atingidos por munição “não letal”. Os outros prisioneiros, a maioria já tendo sido liberados para saírem da prisão, foram forçados a deitar no chão sob a mira de armas apontadas para suas cabeças, e mantidos de barriga para baixo pelas três horas seguintes.
De acordo com oficiais de Guantánamo, a ação foi iniciada para deter uma rebelião entre os presos, que haviam colocado lençóis sobre as câmeras de segurança. Mas é mais provável que o ataque tenha sido uma retaliação contra presos que se encontram em greve de fome.
O ataque surpresa ocorreu horas depois de membros da Cruz Vermelha Internacional terem saído da prisão, por conta de uma investigação sobre denúncias de maus-tratos a detentos que já estão em greve de fome há vinte semanas.
Um dos presos que sofreu violência física dos guardas naquela manhã foi o dissidente político marroquino Younous Chekkouri. Chekkouri está preso em Guantánamo desde 2002. Antes disso, Chekkouri passou cinco meses preso em Kandahar, onde ele foi capturado ainda nos primeiros movimentos da guerra do Afeganistão. Em todo esse tempo, Chekkouri não foi acusado de nenhum crime nem teve direito a defesa para tentar manter sua liberdade.
A viagem de Chekkouri à Kafkalândia começou em 2001. Ele morava no subúrbio de Kabul, trabalhando para uma instituição de caridade que ajudava crianças de ascendência marroquina. Depois dos ataques de 11 de setembro, Chekkouri decidiu se mudar de volta com sua mulher para o Paquistão, onde ele fez universidade, em Islamabad.
Ele enviou sua mulher antes e Chekkouri seguiu viagem alguns dias depois, mas ele foi pego na fronteira, mas ele foi pego pela rede de arrasto de caçar homens descendentes de árabes. Ele foi interrogado com brutalidade por agentes paquistaneses da ISI, que erradamente o identificaram como membro de uma rede terrorista marroquina. Ele foi jogado em uma prisão gigantesca do lado de fora da Kandahar e logo depois, enviado para a CIA.
A CIA interrogou Chekkouri por vários meses em uma prisão secreta no Afeganistão. Ele não revelou nada que tivesse qualquer valor, e logo se percebeu que se tratava de um preso por engano, uma vítima da guerra ao terror. Depois de alguns meses, seus inquisidores desistiram, viram que não chegariam a lugar nenhum interrogando Chekkouri.
Os interrogadores pararam de ir até ele. Mas a vida enclausurada de Chekkouri continuou a mesma. Ele estava sujeito a regras arbitrárias, se alimentava de coisas horríveis, era acordado antes do amanhecer todos os dias, foi colocado sob vigilância 24 horas por dia, não tinha mais acesso a qualquer tipo de leitura nem ao mundo exterior.
Ano após ano foi se passando. Eventualmente, um tribunal secreto militar liberou Chekkouri da prisão. Ainda assim, ele foi mantido preso, sem nenhuma perspectiva de ganhar sua liberdade. Ele, assim como dezenas de outros detentos, não tiveram direito a se defender.
Na primavera deste ano, Chekkouri se juntou a cerca de outros 100 detentos em uma greve de fome, em protesto contra as condições absurdas da prisão. Num primeiro momento, o exército dos EUA tentou encobrir a greve de fome. Então informações começaram a chegar à imprensa, que foram respondidas com negativas veementes. A equipe da Cruz Vermelha foi enviada a Cuba para conversar com os prisioneiros, uma visita que desencadeou o ataque à ala de Chekkouri.
Então a tática do governo mudou. Então começou um regime de alimentação forçada em mais de 44 detentos que faziam greve de fome, inclusive Chekkouri. Ele foi colocado em uma cadeira similar a que se usa em execuções. Seus braços e suas pernas foram amarrados. Uma sonda intravenosa foi colocada em seu braço. Ele foi mantido nessa cadeira por mais de vinte horas.
Mais tarde, ele voltou à sua cela. Mas a alimentação forçada continuou. Os guardas vieram durante a noite e o acorrentaram a sua cama, então inseriram tubos de alimentação pelo seu nariz e sua garganta, bombeando proteína líquida em seu estômago. E é assim que é feito por semanas, meses. Uma tortura sem fim.
Ainda assim, esses homens não têm nada para confessar. Eles não têm nenhum segredo que pode ser descoberto por meio de fazê-los sofrer continuamente. Eles não cometeram nenhum crime que mereça tal punição selvagem. Seus tormentos escondidos não servem a nenhum propósito. Isso é tortura pela tortura, em um pedaço do mundo em que não se aplica nenhum limite moral ou legal. Trata-se de, em uma palavra, sadismo.
Algumas semanas depois do ataque à cela de Chekkouri, Obama fez um discurso na National Defense University defendendo o fechamento da prisão de Guantánamo. “Guantánamo se tornou um símbolo no mundo todo de uma América que desdenha da lei”, disse ele. “Nossos aliados não vão cooperar conosco se acharem que um terrorista pode acabar indo parar em Guantánamo”.
Mas essa retórica boba de Obama é traída pelas táticas legais brutais contra detentos de sua administração. Os registros dos julgamentos a respeito das denúncias de alimentação forçada, feito dias depois do discurso de Obama, mostram que o Departamento de Justiça defendeu a detenção por tempo indeterminado de prisioneiros, mesmo que tenham sido libertados pela justiça. “O interesse público”, escreveram os advogados de Obama, “está em manter o status quo”.
Em outras palavras, um ato criminoso serve para perpetuar outro.
Carta Maior (Com Pátria Latina)
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