René González em entrevista ao "Avante"

                                             


«Sentimo-nos heróis como qualquer cubano»

Hugo Janeiro (texto)


René González, preso e condenado pelos EUA num processo político, esteve na Festa do Avante!. Ao Órgão Central do PCP o patriota cubano, libertado após cumprir a sentença, rejeitou ser um arquétipo e sublinhou a heroicidade de Cuba e do seu povo; denunciou os EUA como os principais promotores do terrorismo e explicou como resistiram os cinco anti-terroristas, três dos quais (Antonio, Ramón e Gerardo) permanecem encarcerados apesar da crescente exigência da sua libertação, pelo que, nota, «este é o momento para que o governo norte-americano tome a decisão correcta: aplicar a justiça e libertá-los».


Sentes-te um herói?

Nunca aspirei a tal. Todavia, as circunstâncias colocaram-me e aos meus quatro companheiros em condições especiais no confronto com o imperialismo norte-americano. Sentimo-nos heróis como qualquer cubano. Tão heróis como os alfabetizadores que caminham nas ruas do meu país, como os que combateram em Playa Girón [aquando da invasão da Baía dos Porcos pelos EUA, n.d.r.], como os que foram para Angola ou para a Etiópia; heróis como os que saem de Cuba para ensinar a ler e a escrever ou para assistir milhares de pessoas que, de outro modo, não teriam cuidados médicos.
Nas circunstâncias em que nos colocou o governo dos EUA, assumimos o compromisso de representarmos com dignidade o nosso povo.

Mas ainda que te sintas parte dum colectivo heróico, não foi assim que foste recebido pelos visitantes da Festa do Avante!…

Creio que a forma como fui tratado traduz o reconhecimento do papel de Cuba no mundo. Expressam para comigo o carinho que têm por Cuba, o que é uma grande responsabilidade, pois compromete-me cada vez mais com o projecto cubano e com a solidariedade que o meu país sempre prestou aos povos.

Estiveste mais de 12 anos preso nos EUA. Passaste seguramente por muitos momentos, uns mais difíceis que outros. O que nos podes dizer sobre esse período?

Dizemos em Cuba – e em Portugal devem ter uma expressão semelhante – que «o que não mata, engorda». Nos EUA, diz-se: «se não te mata, faz-te crescer». Quando fomos presos, decidimos que não íamos morrer. Portanto, crescemos.

Procuramos reter da experiência a sua parte sã, o que não é apenas uma forma de resistir mas, sobretudo, o caminho para sair vitorioso. Obviamente que o governo norte-americano tentou quebrar-nos com as condições de detenção e os castigos, mas se sais desanimado, amargurado, com a saúde arrasada, eles derrotaram-te. Esse era um luxo a que não nos podíamos dar!

Em certa medida o governo norte-americano ajudou-nos a sobreviver na fase mais penosa porque foi sempre muito imoral. Inventou este processo e manipulou-o expondo-se e aos seus propósitos políticos. A partir de determinado momento, perdemos-lhes completamente o respeito. O governo dos EUA deixou o que lhe restava de dignidade na sala de audiências.

No final, a combinação de estarmos a fazer o correcto, o justo, com a baixeza do processo e dos acusadores – tudo somado ao apoio e à solidariedade que foi crescendo –, tornou-nos mais fortes.
                                                                                           
No covil terrorista

A missão que vos cabia era recolher informações sobre os grupos e acções terroristas contra Cuba, promovidas a partir dos EUA. Isso levou-te a trabalhar no «coração» dos grupos terroristas anti-cubanos, que ficaste a conhecer como ninguém. Como actuam?

Quem se der ao trabalho de estudar a história recente, facilmente descobrirá que não existe maior organização terrorista do que o governo norte-americano. Os EUA criaram a Al-Qaeda, que utilizaram como instrumento contra os soviéticos no Afeganistão. Depois de ter sido libertado e de ter derrotado o apartheid, Nelson Mandela permaneceu na lista de personalidades que os EUA consideravam terroristas. Até recentemente, os terroristas levavam a guerra à Síria com o apoio dos EUA, e agora vemos as consequências da situação no Iraque. Ora, a história com Cuba não é diferente.
Como bem disseste, estive entre eles. Os terroristas têm um traço em comum: a desmoralização enquanto seres humanos. Move-os o ódio, a vingança, perdem a noção do que é justo e admissível, por isso não observam qualquer padrão ético.

Estive entre pessoas que planeavam lançar um avião contra a Praça da Revolução, em Havana, ou metralhar hotéis porque consideravam que matar turistas em Cuba era bom para a sua causa. Acompanhei planos para liquidar dirigentes da revolução cubana, ou a preparação de assassinatos de pescadores cubanos, acções que eles consideravam benéficas para os seus objectivos.

O que é preocupante é o apoio dos EUA a estes projectos e intentonas reflectir a política externa norte-americana.

Eram claros os mecanismos de financiamento dos grupos terroristas?

O financiamento começou a ser feito pela CIA nos anos 60 do século passado, quando os EUA apoiaram grupos armados no interior de Cuba e promoveram a invasão da Baía dos Porcos. Ao longo do tempo, estes grupos foram ganhando importância social, foram criando uma rede de interesses, ganharam proeminência em Miami e passaram a gerir negócios de onde sai o dinheiro para organizações monstruosas como a Fundação Cubano-Americana.

Outra fórmula enquadra os menos capazes, menos habilitados. Estes dedicaram-se logo ao narcotráfico. A mim propuseram-me em várias ocasiões participar no tráfico de droga, por isso pude notificar tantas vezes o FBI e neutralizar algumas acções e grupos terroristas.
Em suma, o terrorismo encontra vários mecanismos para se financiar, alguns mais «legais» e abertos do que outros. A questão fundamental é que Cuba tem sabido e tem conseguido resistir, defender-se, não apenas através de nós, os Cinco, mas pela acção de todo o seu povo. De uma maneira ou de outra, todos os cubanos foram já chamados a defender o seu país do terrorismo e o facto é que sempre o fizeram com brio.

Lutar pela liberdade
                                                                         
O René e o Fernando González saíram da prisão depois de cumprirem as respectivas penas. Gerardo, Antonio e Ramón permanecem presos. Os recursos nos tribunais estão esgotados. Como é possível libertar os três patriotas cubanos que os EUA mantêm presos apesar do crescente movimento de exigência da sua libertação, particularmente em território norte-americano?

O nosso caso foi sempre político. Qualquer saída legal não será outra coisa senão uma decisão política disfarçada de judicial. Como bem implica a pergunta, julgo que muita coisa mudou nos EUA nos últimos anos. Até recentemente, o governo norte-americano não perdia nada em manter-nos presos. Já não é assim.
O peso da solidariedade faz-se sentir. Muita gente de boa vontade denuncia o crime cometido contra os Cinco, independentemente de ter, ou não, as mesmas posições políticas e ideológicas que nós. Este facto é importante. Nós não exigimos que concordem connosco no projecto de sociedade que defendemos. Apelamos a que repudiem a violação grosseira dos mais elementares direitos, do direito à Justiça que nos foi negado e exijam o fim da monstruosidade a que fomos sujeitos.

Dentro da sociedade norte-americana há já uma postura diferente em relação aos Cinco porque também o há em relação a Cuba. Este é o momento para que o governo norte-americano tome a decisão correcta: aplicar a Justiça e libertar os três companheiros que permanecem detidos.

Sempre pedimos que os juízes aplicassem a lei norte-americana. Eles não o fizeram por razões políticas. Podem agora tomar a decisão inversa, mas isso implica um aumento da pressão sobre a Casa Branca, que deve sentir que privar Antonio, Gerardo e Ramon da liberdade é insustentável.


Tens mantido contacto com Antonio, Gerardo e Ramón?

Sim, estão bem, determinados e cientes da sua razão. Já passaram 16 anos e isso tem consequências na sua saúde para além das maleitas normais da idade. A pior doença, porém, é continuarem presos.

Entrevista publicada no “Avante!” nº 2129, 18.09.2014 (Com o diarioinfo)

Comentários