Governo banca jornalismo marrom
Maurício Caleiro, no blog Cinema & Outras Artes
A muitos intriga a maneira tímida e pouco reativa com que os governos federais petistas têm tratado, desde que assomaram ao poder, órgãos de mídia que praticam um jornalismo de péssima categoria, relegado a quarto plano ante a necessidade de destilar venenos, instilar suspeitas e insuflar ódios contra Lula e o petismo.
Com a divulgação, nesta semana, de um relatório da Secretária de Comunicação Social (Secom) demonstrando que dez veículos de comunicação dominam quase dois terços das verbas de propaganda do governo federal, ficando com R$111 milhões do total de R$181 milhões, à inquietação somou-se o espanto. E olha que tais números não incluem verbas advindas do patrocínio das estatais, as quais, se computadas, mostrariam o tamanho do mimo oficial à mídia corporativa brasileira em seu pior momento jornalístico.
1. A via legal
Três medidas essenciais afiguram-se como opções para enfrentar, no âmbito do Estado de Direito, esse uso deturpado e tendencioso – portanto, antirrepublicano – da nobre missão de informar que se tornou corrente na mídia e na imprensa brasileiras: o primeiro, por mais óbvio, é a abertura de processo por calúnia e difamação contra a corporação midiática – e, eventualmente, contra o jornalista – em questão.
A resistência contra a adoção de tal medida tem sido explicada pelos receios advindos da extrema letargia da Justiça brasileira: é comum que uma ação desse tipo, até transitar em julgado, leve quatro, cinco anos. E durante todo esse tempo o autor do processo estaria à mercê de mais animosidades por parte da publicação processada, as quais, por sua vez, se levadas à Justiça, levariam mais um punhado de anos para ser julgadas, num círculo vicioso. Acrescente-se a esse quadro típico de uma democracia incipiente a suspeita, baseada em evidências, de que certas varas tendem a nutrir simpatias por certas publicações – justamente as que praticam o pior jornalismo.
Anacronismos
Há de se observar, ainda, que o fim da Lei de Imprensa decretado pelo ministro Gilmar Mendes, saudado pela mídia corporativa e por blogueiros ingênuos, lançou a atividade jornalística a um limbo jurídico, a uma vala comum, justamente em um momento em que, graças à evolução tecnológica, acusações potencialmente danosas à imagem de cidadãos, empresas e governos espalham-se de forma viral e veloz, demandando uma legislação específica para tais tipo de crimes e transgressões.
No Brasil, seguimos presos de uma dinâmica arcaica: os danos à imagem e à reputação causados pela mídia brasileira são imediatos; seus eventuais ressarcimento e desmentido levam uma eternidade – de forma que, em casos como alteração de cenários eleitorais em virtude de armações “jornalísticas”, não há possibilidade efetiva de reparação do dolo.
2. A via institucional
Uma segunda maneira de pressionar a mídia a seguir os parâmetros deontológicos mundialmente consagrados para o exercício do jornalismo – os quais incluem princípios básicos como buscar a equidade, ouvir os dois ou mais lados envolvidos e dar destaque proporcional a todos eles, só acusar com provas, dar transparência ao processo de apuração das denúncias, presumir inocência, entre outras platitudes – seria pela via institucional, com o Estado promulgando uma Lei de Meios que regulasse a atividade midiática.
Ao contrário do que apregoa a histeria midiática, relativamente bem-sucedida em convencer os incautos de que se trataria de censura, a adoção de tal arcabouço legal de regulação da atividade midiática é prática comum a virtualmente todas as grandes democracias do mundo, com exceção dos EUA (se considerarmos esta uma grande democracia, é claro).
Benesses insuspeitas
Não haveria porque ser diferente: sendo a comunicação e o jornalismo atividades públicas – mesmo se praticadas por entes privados -, com direta inferência social, pertence à lógica mais primária a constatação de que cabe ao Estado regulamentar tal atividade, de forma a assegurar seu exercício de acordo com parâmetros republicanos e com as respectivas deontologias do comunicólogo e do jornalista, em um contexto em que a livre-expressão seja assegurada, mas o comportamento criminoso ou antiético coibido.
No entanto, a reticência de uma década dos governos petistas para promulgar tal legislação não só denota um misto de excessivo temor e pouca vontade política como sugere uma acomodação em uma situação que se lhes é aparentemente desfavorável, talvez ofereça, em seus intestinos, benesses e motivações insuspeitas à primeira vista, como a fixação do PT e de Lula na eterna posição de vítimas indefesas da mídia - com decorrência em termos de mobilização constante da militância – e a manutenção do acesso a determinadas portas comerciais e publicitárias que certamente se fechariam no caso de um enfrentamento aberto, mesmo se rigorosamente dentro da lei.
3. A via econômica
Por fim, a terceira maneira de o governo reagir contra a imprensa marrom e trabalhar efetivamente para o aprimoramento da atividade jornalística no país seria fechando as torneiras que, via Secom, irrigam regiamente, com milhões de reais, as editoras das mesmas publicações que praticam um jornalismo vergonhoso e à revelia de qualquer consideração ética. E não há o que temer: as principais publicações corporativas já atingiram um nível tal de baixeza e desrespeito, que se o governo parasse de alimentar esse jornalismo marrom nada teria a recear além de mais do mesmo.
Ocorre, porém, que para tal o governo teria de recuperar a plenitude de sua capacidade decisória, do direito de fazer escolhas segundo critérios outros que não os econômicos, a qual mantém-se coibida pelo primado do neoliberalismo e por sua persistência como ideologia orientadora de políticas oficiais, mesmo quando não anunciada.
É precisamente o caso da distribuição de verbas pela Secom, com a obediência ao critério da audiência, eminentemente econômico e que promove a manutenção da distribuição de verbas para as grandes corporações midiáticas, em detrimento da autonomia política de decisão que, não estivéssemos, como país, envenenados pelos efeitos colaterais de tal doutrina decadente, o governo, por ter sido democraticamente eleito, deveria gozar.
O retorno do oprimido
Mas não é assim, pelo contrário: o Brasil vive uma situação tal que uma mídia e uma imprensa que mentem, difamam, fabricam e divulgam em conjunto armações de cunho golpista - ao mesmo passo em que se recusam a levar a público graves casos de corrupção das forças oposicionistas - não só se mantêm a salvo de qualquer reação governamental, como têm suas burras periodicamente enchidas pelo Estado que o governo difamado está a cargo de administrar.
Dessa forma, o caso da distribuição de verbas governamentais para corporações que ora promovem um jornalismo hidrófobo, partidário e de péssima qualidade ilustra, de forma exemplar, os malefícios persistentes do neoliberalismo na ação governamental no Brasil. E é esta uma razão a mais para que cada retrocesso do governo Dilma em direção a medidas de inspiração neoliberal – mesmo que matizadas – mereça o nosso repúdio: porque, além dos malefícios inerentes a políticas situadas em tal marco, elas reforçam, subliminarmente mas de forma efetiva, um ideário que acaba por cercear a liberdade de ação governamental e submetê-la aos ditames exclusivistas dos critérios econômicos, mesmo quando o tema em questão é comunicação ou, para citar outro exemplo, cultura.(Com a Pátria Latina)
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