A concepção leninista da táctica
João Vilela
Quando o que se decide no plano da táctica escamoteia os princípios, dissimula os princípios, mente acerca deles ou os substitui por ardis retóricos que não preparam as massas para as suas tarefas históricas, reduzindo a sua compreensão dos problemas ao imediatismo, aquilo que se cria é um movimento absolutamente desarmado, porque cego sobre a dimensão e dificuldade do trabalho que lhe cumpre fazer.
A orfandade feriu a euro-esquerda. Tsipras entregou o seu país à troika, associando-se aos partidos burgueses tradicionais (PASOK e Nova Democracia) e ao Potami para o efeito. Incapaz de dispor de um programa político próprio, consequência inevitável da sua natureza de classe pequeno-burguesa, o Syriza teve de optar entre o projecto da reacção e a liderança da revolução.
Sem surpresa, por força da sua natureza euro-esquerdista, vergou-se diante da UE aplicando um violento programa de austeridade. Os que o seguiram, lenta, contrariada, e ressentidamente, incapazes de dizer que o sol é verde ou que as vacas comem carne, vão dando paulatinamente o braço a torcer.
Sobram um ou dois casos renitentes de euro-esquerdismo inflexível, onde a coisa deixou de ser uma simples posição política para vogar algures entre a crença religiosa e a monomania neurótica, naturalmente. Mas a derrota, no fundamental, está consumada.
Seria impossível resumir todos os ensinamentos que o processo grego permitiu obter retirar num único artigo. Para o que aqui nos interessa, importa reter uma das teses centrais da euro-esquerda «syrizette» na defesa, quantas vezes para lá do inacreditável, da pretensa estratégia de luta de Tsipras: a de que ela se fazia através de uma série de movimentações tácticas com vista à progressão no terreno de forma mais eficaz do que a que se obteria confrontando a UE declaradamente e logo no primeiro momento.
A (hoje indesmentível) rendição do Syriza, que se evidenciava desde as primeiras horas, era então descrita como um exercício de simulação, de recuo calculado, de uma frieza e de um cinismo típico dos bons generais que levam o inimigo para onde querem e lá o derrota. Este «José-Mourinhismo» político não é apenas uma leitura deficiente e liminarmente falsa da realidade: do ponto de vista da luta de classes, ele é errado aos mais diversos níveis.
Recuperemos o que o leninismo entende por «táctica». Lenine define a táctica como a «conduta política ou o carácter, a orientação e os métodos actuação política» do partido, acrescentando que ela se decide à luz das novas tarefas que se colocam ao partido revolucionário à medida que a situação política o vai responsabilizando com a tarefa de as desempenhar.
E Lenine estabelece um elemento que deve ser fundamental na definição desta conduta política: a de que deve ser uma «atitude de princípio, clara e firme» (1). Ou seja: a definição de uma táctica procura estabelecer os métodos concretos de transformar os princípios do partido revolucionário em força material, de acordo com as condições que a situação concreta oferece ao partido.
A táctica pressupõe e encerra os princípios políticos do partido revolucionário, visa aplicá-los, existe para fazer deles uma realidade. Quando o que se decide no plano da táctica escamoteia os princípios, dissimula os princípios, mente acerca deles ou os substitui por ardis retóricos que não preparam as massas para as suas tarefas históricas, reduzindo a sua compreensão dos problemas ao imediatismo, aquilo que se cria é um movimento absolutamente desarmado, porque cego sobre a dimensão e dificuldade do trabalho que lhe cumpre fazer.
Quando Marx e Engels, ao cabo do seu principal trabalho conjunto, proclamam que «os comunistas rejeitam dissimular as suas perspectivas e propósitos» não o fazem por razões literárias, retóricas, ou publicitárias: afirmam-no porque não há nenhuma outra forma de eles desempenharem a sua missão histórica: «a formação do proletariado em classe, o derrubamento da dominação da burguesia, a conquista do poder político pelo proletariado» (2).
Admitindo que a euro-esquerda vê na actuação do Syriza não aquilo que os seus desejos queriam ver mas a realidade efectiva da actuação desse partido, como verificamos, tal actuação é aos mais diversos títulos contra-revolucionária: ela alimenta ilusões sobre caminhos fáceis, esconde a verdadeira dimensão do problema, desarma os trabalhadores quanto às tarefas que o problema lhe coloca, pode no limite levá-los ao desalento e ao refluxo, se não mesmo à adesão aberta ao populismo e ao fascismo.
Admitindo por outro lado que a euro-esquerda estava realmente enganada, esta situação demonstra um elemento fundamental da sua conduta: o da dissimulação, por trás de um leninismo de lombada e de uma pretensa genialidade táctica, do andamento profundamente contra-revolucionário dos governos da sua cor. Dissimulação essa, sofística essa, descaramento esse em boa verdade, que quando o cotejamos com a acusação, que eles insistentemente arremessam aos comunistas, de terem defendido as experiências socialistas do Leste para lá do que era humanamente aceitável, só vem ilustrar que aprenderam a técnica que criticavam e a manejam com singular destreza.
A situação política grega e europeia entrou num tempo de aceleração que vai colocar aos revolucionários um conjunto enorme de novas tarefas, para as quais eles terão de forjar uma táctica. A experiência do Syriza revela sem margem para dúvida a actualidade indesmentível do princípio leninista acima expresso: o de que a táctica deve ser a constituição de uma conduta política por parte dos que recebem a incumbência histórica de dirigir processos de libertação das classes dominadas que encerre uma posição de princípio clara e firme.
Em suma, a de que a táctica dos revolucionários, dos que pretendem efectivamente libertar o povo da exploração e da opressão, deve ser precisa e clara na exposição da gravidade do problema, na definição das formas de luta que essa libertação em cada momento terá de assumir, das dificuldades e escolhos que se irão deparar aos dominados, e do modo como poderão contorná-los e liquidá-los.
Diante da mobilização e organização do proletariado não existe forma de repressão, de intoxicação ideológica, de garrote económico, de coacção material ou moral que a burguesia possa mover, que o detenha. O proletariado em marcha é imparável: mas não existe mobilização digna desse nome, nem organização que se possa dizer revolucionária, se um conjunto de dirigentes aldraba as massas prometendo-lhes o que não pode fazer, as engana, lhes saca o voto, e nunca as prepara para as tarefas que elas terão de desempenhar colectivamente.
Quando isso acontece, com a fatalidade do dia depois da noite, esse movimento claudica diante do inimigo por não assentar a sua força na decisão das classes populares em serem livres. Nunca é demais recordar as palavras de Hugo Chavez, num comício em Caracas, no preciso momento em que – num gesto «nacionalista», diriam alguns… – anunciava o corte de relações diplomáticas com os Estados Unidos diante de uma multidão de muitos milhares: «nós, yankees de m****, estamos decididos a ser livres: aconteça o que acontecer, e custe-nos o que nos custar».
Chavez, com todas as contradições que se possam apontar ao processo bolivariano sabia uma grande verdade: que a táctica revolucionária está a muitas milhas de distância do tacticismo, temeroso das massas, da pequena burguesia euro-esquerdista.
(1) https://www.marxists.org/portugues/lenin/1905/taticas/cap01.htm#i1
(2) https://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/cap2.htm
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