Tsipras: o último ‘esquerdista’ a vender-se aos banqueiros
Neil Clark
A chamada “esquerda radical” da Grécia é apenas a última de uma longa lista de “radicais” e “esquerdistas” a traírem o povo que neles votou e a cederem às exigências do capital financeiro imperialista internacional.
A única coisa surpreendente da capitulação de Alexis Tsipras à troika é toda a gente ter ficado surpreendida.
Na Grã-Bretanha, tivemos em 1931 a nossa própria versão da “crise” grega. E, tal como hoje, foi um político nominalmente de “esquerda”, o líder do Partido Trabalhista Ramsay Macdonald, que depois alinhou com os banqueiros contra a vulgar gente trabalhadora. Aconteceu um “golpe de banqueiros” que substituiu o governo trabalhista democraticamente eleito por um novo governo nacional aprovado pelo capital, que se mexeu para introduzir cortes radicais na despesa pública e reduziu o pagamento aos desempregados. O novo governo era dominado pelos conservadores, mas tinha os vira-casacas “socialista MacDonald ao leme e outro traidor trabalhista Philip Snowden como Lord do Selo Privado.
Os banqueiros londrinos disseram a MacDonald: “A causa do problema não foi financeira, mas política, e reside na total vontade de confiança no Governo de Sua Majestade entre os estrangeiros,” recorda o historiador A.J.P. Taylor, citando a biografia de Neville Chamberlain por Keith Feiling. Na campanha para as eleições gerais de Outubro de 1931, Philip Snowden (em breve “visconde Snowden”), dirigiu-se viciosamente contra os seus camaradas do Partido Trabalhista afirmando que o seu programa anti-austeridade era “loucura bolchevista.”
Tal como hoje Alexis Tsipras, MacDonald e Snowden disseram ao seu povo que não havia alternativa ao programa que aceitaram executar. Mas, tal como hoje, havia uma alternativa (há sempre uma), só que os banqueiros não a aprovaram.
Outra traição vergonhosa ao povo por um partido de “esquerda” aconteceu na Hungria em 1994. Os húngaros, fartos de quatro anos de queda do seu nível de vida desde o fim do “comunismo gulache”, votaram para o poder o Partido Socialista Húngaro, cujas principais figuras eram ex-comunistas.
Os socialistas, segundo se acreditava, iriam moderar as reformas de “mercado” e preservar as melhores partes do antigo sistema. A sua vitória nas eleições lançou o alarme nos círculos de elite ocidentais: “Os comunas estão de volta na Hungria e tem que se fazer alguma coisa!”
O primeiro-ministro Gyula Horn, que tinha atacado a ideia de privatização da energia, acabou por mudar de rumo sob enorme pressão do capital financeiro internacional e seus emissários políticos. No início de 1995, fez precisamente isso com uma curva em U. Demitiu os ministros genuinamente socialistas e nomeou um professor universitário fanaticamente neoliberal, Lajos Bokros, para realizar grandes cortes na despesa.
Os socialistas e seus parceiros de coligação “Democratas Livres” lançaram grandes privatizações, incluindo no sector da energia que passou para as mãos de grandes empresas ocidentais. As pessoas da classe trabalhadora que em 1994 tinham votado em grande número nos socialistas foram bela e verdadeiramente traídas, mas os homens do dinheiro internacional esfregaram as mãos de contentes com os lucros que agora podiam conseguir na Hungria. Horn, apresentado como perigoso esquerdista pelos media pró-capitalistas em 1994, era agora saudado como grande “reformador” e o homem que punha a Hungria firmemente no caminho da adesão à UE e à NATO.
Os partidos socialistas francês e espanhol seguiram também idêntica trajectória nos anos 80. Em 1981, havia um enorme optimismo depois da eleição de François Miterrand como primeiro presidente socialista da V República. Os socialistas arrancaram realmente bem, lançando um grande programa de nacionalizações e aumentos de benefícios e pensões para a terceira-idade.
Mas, em 1983, houve uma reviravolta e os socialistas franceses enterraram o socialismo e abraçaram a austeridade e a “modernização.” Aconteceu o mesmo abandono em Espanha, depois da eleição de Felipe Gonzalez em 1982 e na Alemanha, depois da eleição do SPD em 1998. Neste caso, o ministro das Finanças genuinamente socialista Oskar “Vermelho” Lafontaine foi demitido após menos de cinco meses no governo, para acalmar os poderosos poderes financeiros.
Na Grã- Bretanha, sabemos demasiado bem o que aconteceu após a eleição de Tony Blair e do “New Labour” em 1997, depois de 18 anos de governo conservador. Os “progressistas” do “New Labour” meteram o país numa guerra ilegal contra o Iraque ao lado dos neoconservadores hardcore americanos (assim como numa guerra ilegal contra a Jugoslávia socialista em 1999), enquanto internamente faltaram à renacionalização dos caminhos-de-ferro (uma promessa de Tony Blair quando na oposição) e prosseguiram políticas económicas neoliberais que a gente de dinheiro da City, de Wall Street e de Berlim e o bilionário magnata dos media Rupert Murdoch alegremente apoiaram.
De facto, podemos dizer que a história dos governos “esquerdistas” ou “progressistas” no poder na Europa dos últimos trinta anos tem sido a história de uma traição atrás da outra. O último revés, na Grécia, é mais uma prova de que devemos ter extremo cuidado com os rótulos. Ironicamente, têm sido por vezes políticos conservadores, que não se reclamam de ser de esquerda, quem tem defendido a soberania nacional e os interesses dos trabalhadores, melhor do que aqueles que dizem estar do lado “progressista”.
Charles de Gaulle, presidente da França entre 1959-69, é um caso desses. Sempre desconfiado do poder do dinheiro e do fundamentalismo de mercado, introduziu uma economia mista e um Estado-providência e presidiu à maior subida do nível de vida para as pessoas vulgares na história da França. “Era um homem que não se interessava pelos que tinham riqueza, desprezava o burguês e odiava o capitalismo”, foi este o veredicto do biógrafo de De Gaulle, Jean Lacouture.
De Gaulle não apenas não se interessava pelos que tinham riqueza, ele próprio não se interessava muito pela riqueza. Apesar de ocupar a mais alta posição do Estado durante dez anos, morreu na penúria – em vez de aceitar a pensão a que tinha direito como presidente na reforma e general, ficou apenas com a de coronel. O contraste entre De Gaulle e os políticos de carreira de hoje, obcecados com o dinheiro, não podia ser maior.
Lembremos que De Gaulle, o homem que “desprezava o burguês e odiava o capitalismo”, era chamado “conservador”, não “esquerdista radical”. De facto, os chamados “esquerdistas radicais” protestavam contra ele em 1968 com figuras dirigentes dessa “rebelião” que se tornaram entusiastas “intervencionistas liberais” pró-NATO nos anos 90 e 2000.
É também interessante comparar a posição assertiva que o muito criticado governo “conservador” da Hungria tem mantido contra a gente do dinheiro internacional, incluindo o FMI e a UE, com a forma como o primeiro-ministro de “esquerda radical” da Grécia capitulou. O governo de Viktor Orban foi atacado por Bruxelas por ter enfrentado empresas de energia estrangeiras, mas os cortes obrigatórios levaram a grandes reduções na conta dos combustíveis.
O “conservador” Orban fez indiscutivelmente mais para aliviar o sofrimento do povo húngaro do que o “esquerdista radical” Tsipras fez com os gregos. Com a sua maneira gaullista e dirigista, provou ser mais “socialista” do que os seus opositores socialistas, os quais, quando estiveram no poder, governaram o país apenas em benefício de Washington e Bruxelas e dos bancos estrangeiros.
Lembrando os que não se “venderam”
Um dirigente socialista que decididamente não traiu o seu povo foi Bruno Kreisky, chanceler da Áustria entre 1970-83. Kreisky tornou claro que não estava interessado em coligações com outros partidos que diluíssem a sua política socialista e foi recompensado com uma maioria clara nas três eleições.
Kreisky pôs sempre o interesse da gente trabalhadora primeiro. Durante a campanha para as eleições de 1979, afirmou que preferia ter o governo com um défice do que as pessoas perderem os empregos. “Centenas de milhares de desempregados são mais importantes do que uns milhares de milhões de xelins de dívida,” declarou o grande socialista.
Outro “esquerdista” que pôs o seu povo em primeiro lugar foi o falecido Hugo Chávez. Ao contrário da maior parte dos dirigentes “progressistas” europeus, que começaram como radicais, mas se deslocaram inexoravelmente para posições neoconservadoras/neoliberais, o falecido presidente da Venezuela tornou-se mais socialista à medida que os anos passaram. Em 2009, disse “Cada fábrica deve ser uma escola para educar, como Che Guevara disse, para produzir não apenas tijolos, aço e alumínio, mas também acima de tudo o novo homem e mulher, a nova sociedade, a sociedade socialista.”
O preço de desafiar a gente do dinheiro internacional e não fazer o trabalho sujo com os trabalhadores pode ser elevado.
Salvador Allende, o presidente marxista do Chile democraticamente eleito pagou com a vida. Foi derrubado num golpe que levou ao poder o general Pinochet, que iniciou a reestruturação da economia do Chile em benefício do capital ocidental com a ajuda de economistas neoliberais da Universidade de Chicago.
Os “esquerdistas” que não se venderam eram todos homens de princípios, com profundo empenho no socialismo. Bruno Kreisky, por exemplo, passou tempo na prisão na Áustria nos anos 30 devido às suas convicções. Compare-se o seu firme empenhamento na causa socialista com as posições oportunistas de François Miterrand.
Miterrand, de acordo com o seu biógrafo Philip Short, virou-se para o socialismo “menos por convicção do que por um processo de eliminação.” Trata-se de um homem que, ao fim e ao cabo, tinha trabalhado tanto para a França de Vichy, como para a Resistência e que tinha descrito os comunistas como “um sofrimento”. Foi fácil para Miterrand enterrar o socialismo em 1983, visto que não lhe tinha qualquer ligação ideológica forte.
Os acontecimentos dos últimos dias demonstraram o mesmo sobre o empenhamento de Alexis Tsipras para acabar com a austeridade. Os defensores do primeiro-ministro grego tentam manter que ele não tinha outra opção que não render-se, mas isso é claramente contrário à verdade. Podia e devia ter tornado claro que, a não haver concessões importantes da troika relativamente à dívida grega, levaria o seu país para fora do euro.
“Sobre a Declaração da Cimeira do Euro sobre a Grécia: primeiros pensamentos” – Yanis Varoufakis (@yanisvaroufakis), 14 de Julho de 2015 http://t.co/7TTsbOrkof
A ameaça de deixar o euro foi uma carta de trunfo que Tsipras recusou jogar porque pôs o “ser bom Europeu” acima do fim da austeridade e do sofrimento do seu povo. O primeiro-ministro grego podia também ter jogado com o medo das elites europeias de a Grécia se aproximar mais da Rússia e da China ameaçando retirar-se da UE e da NATO. Podia ter nacionalizado os bancos. Mas, não fez nada disso. Em vez disso, sorria e brincava com os inimigos do seu país enquanto concordava em fazer da Grécia uma colónia de facto da UE e do capital internacional.
A dimensão da traição de Tsipras ao povo grego é verdadeiramente chocante. Apenas 10 dias antes, os gregos tinham votado por maioria significativa “Oxi” às exigências da Troika. Agora, Tsipras concordou com ainda mais cortes do que os rejeitados, assim como colocar 50 mil milhões de euros dos activos nacionais do país num fundo de segurança de privatizações totalmente sob supervisão da EU. E isto da parte de um homem cujo partido tinha prometido na campanha eleitoral em Janeiro acabar com as privatizações. O acordo que Tsipras aceitou é tão duro que até o FMI o criticou.
O povo grego estava pronto para resistir, mas é evidente que Tsipras não estava.
Não se trata de as massas gregas não estarem preparadas para lutar pela sua existência, trata-se de a “esquerda” social-democrata as ter enganado ao render-se — Phil Greaves (@PhilGreaves01) 14 Julho, 2015
O jornal Daily Telegraph citou o estudante de 23 anos Marios Rozis. Todos estavam felizes no domingo; tinha sido uma decisão amadurecida contra a austeridade. Hoje, sinto que o referendo aconteceu para nada.”
O Partido Comunista Grego (KKE), para seu crédito, previu exactamente o que ia acontecer. Tinham argumentado que só podia haver fim para a austeridade com uma “verdadeira rotura” com a UE, a NATO, o FMI e as forças do capital e com a adopção de um sistema económico alternativo. Mas, claro, foram escarnecidos e desautorizados como dinossauros pela “esquerda moderna” pró-UE que achava que Tsipras e o Syriza tinham todas as respostas.
Agora, Tsipras, o “esquerdista radical” pediu ao Parlamento grego que aprove medidas mais extremas do que qualquer coisa que os governos conservadores na Grécia se tinham atrevido a propor. Da mesma forma que só um político republicano de direita como Richard Nixon podia “ir à China”, só um político “progressista” podia ter hipótese de fazer passar no parlamento grego estas propostas extremamente regressivas.
Aqueles que acreditam que a troika tentava ver-se livre de Tsipras falham num ponto importante: é melhor para os credores da Grécia que seja um “radical de esquerda” como Tsipras a tentar fazer passar estas medidas, do que uma figura da “direita”. De facto, o capital financeiro internacional gosta mais quando são os partidos nominalmente de “esquerda” que fazem o trabalho sujo para eles, porque os dirigentes desses partidos tentarão apresentar as “reformas” como algo de algum modo “bom para as pessoas comuns”.
Em última análise, a única coisa “radical” em Alexis Tsipras foi não usar gravata.
“Foi fachada” diz o veterano e premiado John Pilger de Tsipras e seus “camaradas”. Não eram radicais no sentido do cliché usual, nem eram “anti-austeridade”.
A lição que precisamos de tirar da traição verdadeiramente épica de Tsipras é nunca julgar os políticos pela aparência e não nos deixarmos ir pelos rótulos que os media dão aos partidos. Em vez disso, as questões que precisamos de colocar são: quão genuíno é o compromisso dos políticos com a causa e quão contraditórias são as posições que tomam?
A Grécia prova-nos que se pode ser pró-Euro ou anti-austeridade, mas não ambas as coisas.
Alexis Tsipras pôs o seu compromisso com uma moeda colonial acima de tudo o resto e, ao fazê-lo, será lembrado como mais um pseudo-esquerdista que alinhou com os banqueiros contra o seu próprio povo.
- Neil Clark é jornalista, escritor, radialista e autor de blogue. Escreveu para diversos jornais e revistas no Reino Unido, incluindo The Guardian, Morning Star, Daily e Sunday Express, Mail on Sunday, Daily Mail, Daily Telegraph, New Statesman, The Spectator, The Week, e The American Conservative. É convidado regular de RT e tem aparecido também na BBC rádio e TV, Sky News, Press TV e Voice of Russia. É co-fundador de Campaign For Public Ownership @PublicOwnership. O seu premiado blog encontra-se em www.neilclark66.blogspot.com. Usa o tweeter para política e assuntos mundiais @NeilClark66
Tradução: Jorge Vasconcelos (Com odiario.info)
Comentários