Eleições presidenciais em Portugal: vitória de Marcelo, “filho de Deus e do Diabo”

                                                                          
 Luis Leiria, de Lisboa para o Correio da Cidadania (*)

Eleições presidenciais em Portugal: vitória de Marcelo, “filho de Deus e do Diabo”
Exatamente dois meses depois, no domingo 24 de janeiro, o candidato Marcelo Rebelo de Sousa, apoiado pelos mesmos partidos da direita, o PSD e o CDS, venceu as eleições presidenciais, logo à primeira volta, com 51,99% dos votos (nas eleições de 4 de outubro, a direita unida tivera 38,5%). Significa isto que a direita recuperou o terreno, em tão pouco tempo, depois de ter perdido o governo? Não: são eleições diferentes, e as presidenciais não podem ser vistas como uma espécie de segunda volta das parlamentares.

Além disso, apesar de a vitória do professor de direito e comentarista televisivo Marcelo Rebelo de Sousa ser uma derrota da esquerda, ela foi obtida com uma política muito diferente da que PSD e CDS vinham levando depois de saírem do governo.

Sistema semipresidencialista

Já aqui falamos das particularidades do sistema político português, habitualmente caracterizado como semipresidencialista (ou semiparlamentarista). Isto significa que o presidente da República é o chefe do Estado, mas não do governo. O executivo é formado de acordo com o resultado das eleições parlamentares e responde diante do Parlamento – e não do presidente. 

Eleições parlamentares e presidenciais são separadas, em datas diferentes, e os mandatos têm durações diferentes: o do Presidente da República, cinco anos, e o do governo que sai das eleições parlamentares, quatro (se não houver antecipação de eleições). É comum que presidente e primeiro-ministro sejam de partidos diferentes.

As eleições parlamentares elegem os deputados (em Portugal não há senadores) e é do Parlamento que sai o governo, chefiado por um primeiro-ministro. Cabe ao presidente designar o primeiro-ministro, mas este, a partir do momento em que é nomeado, responde ao Parlamento.

Porém, o presidente não é uma “Rainha da Inglaterra”: a Constituição dá-lhe uma espécie de superpoder, uma “bomba atômica”, que é a faculdade de dissolver o Parlamento e convocar novas eleições. Pode ainda vetar leis, mas, se estas forem aprovadas de novo no Parlamento, é obrigado a promulgá-las.

Ao contrário das eleições parlamentares, onde apenas se podem candidatar partidos legalizados, as eleições para a Presidência são destinadas a candidaturas individuais, de cidadãos de mais de 35 anos, desde que sejam apoiados por 7.500 eleitores. Assim, os candidatos podem ou não ter o apoio de partidos, e mesmo, como aconteceu nestas últimas eleições, um partido pode apoiar mais do que um candidato.

Resultados

No domingo, Marcelo Rebelo de Sousa venceu as eleições presidenciais, logo à primeira volta, com 51,99% dos votos. Só haveria segunda volta se nenhum candidato tivesse mais do que 50% de votos. Nesse caso, os dois mais votados disputariam uma nova eleição três semanas depois.

No segundo lugar, ficou António Sampaio da Nóvoa, professor universitário, ex-reitor da Universidade de Lisboa, apoiado por uma parte do PS, com 22,9%, e em terceiro Marisa Matias, eurodeputada, apoiada pelo Bloco de Esquerda, com 10,13%. A deputada Maria de Belém, ex-ministra e ex-presidente do PS, apoiada por parte deste partido, ficou em quarto lugar com 4,24% dos votos e o ex-padre Edgar Silva, apoiado pelo PCP, ficou em quinto, com 3,95%. Os cinco candidatos menos votados obtiveram, somados, 6,8% dos votos e houve 1,24% de votos em branco e 0,93% de votos nulos.

Apoiado pelo PSD e pelo CDS, Marcelo fez questão de que nem Passos Coelho (o primeiro-ministro que aplicou a política da troika e da austeridade, líder do PSD) nem Paulo Portas (vice-primeiro-ministro do mesmo governo e líder do CDS) aparecessem em qualquer ação de campanha ou tempo de antena. Não renegou os apoios, mas fez gala de não contar com qualquer das duas máquinas partidárias.

Durante a campanha, Marcelo serviu cafés atrás do balcão de um boteco, penteou uma cabeleireira, contratou um táxi para percorrer o país, almoçou sanduíches e garantiu que era o “candidato da marmita”. Parecia seguir a inspiração de Jânio Quadros, embora não haja notícia de que tenha alguma vez pulverizado a gola do terno de talco para fingir que era caspa.

Na verdade, sua campanha foi uma não-campanha, porque não precisava dela. Há 16 anos que o “Professor Marcelo” tem um “tempo de antena” semanal em horário nobre da televisão onde comenta política, economia, mas também desporto e apresenta livros. A sua notoriedade é tão elevada que três das quatro primeiras pesquisas, logo após ter confirmado ser candidato, lhe davam resultados acima dos 60%.

Ainda assim, e mesmo procurando evitar ao máximo os principais temas, fez questão de se distanciar abertamente da política de PSD e CDS. Ao contrário destes dois partidos, que hostilizam o governo de António Costa, a quem acusam de não ter legitimidade para governar, Marcelo Rebelo de Sousa apoiou esse mesmo governo e todas as suas medidas e criticou a polarização direita-esquerda, afirmando a intenção de acabar com as fraturas e “unir os portugueses”. 

O objetivo era conquistar uma parcela dos eleitores do PS, ao mesmo tempo em que garantia o voto da direita, por pura e simples falta de alternativa: apesar de serem dez os candidatos à presidência, nenhum se declarou de direita e o próprio Marcelo dizia situar-se na “esquerda da direita”.

“A lealdade não é o seu forte”

Os jogos de palavras e a inconstância das posições que defende são, aliás, uma característica do presidente eleito, que, quando apanhado em contradição se escuda no fato de ser há anos comentarista e não político ativo – e isto apesar de ter sido um dos fundadores do PSD e até mesmo seu líder durante três anos. Paulo Portas, o líder do CDS, não esconde que não confia em Marcelo Rebelo de Sousa.

Nos tempos em que Portas era diretor de um jornal e ainda não entrara na política, afirmava que a lealdade “não era o forte” do professor de direito. “Eu costumo dizer que Marcelo é filho de Deus e do Diabo. Deus deu-lhe a inteligência e o Diabo deu-lhe a maldade”, afirmou em 1993, numa entrevista de televisão que ficou célebre. “Sobretudo uma pessoa que quer ser primeiro-ministro tem de se tornar confiável. E tornar-se confiável significa que a gente possa acreditar nele”, dizia Portas. Marcelo nunca foi primeiro-ministro, mas agora chegou à presidência.

Filho de um político ativo da ditadura de Salazar e Caetano, que ocupou cargos como governador de Moçambique e ministro do Ultramar, das Corporações e da Saúde, o jovem Marcelo renegou a educação paterna e viveu a chamada crise acadêmica de 1969, quando os estudantes de Coimbra enfrentaram a ditadura, participando em manifestações de apoio ao regime.

No final da ditadura ligou-se a um setor da oposição consentida do regime, que via na política colonial do governo um obstáculo à aproximação à Comunidade Econômica Europeia (CEE) e entrou no semanário Expresso, lançado por este setor. Começou assim a sua vinculação aos meios de comunicação, que sempre fez questão de manter – no Expresso, no Semanário, na rádio TSF, nos canais de televisão RTP e TVI.

A verdade é que como comentarista sempre teve mais sucesso que como político: quando foi líder do PSD não conseguiu levar o partido à vitória, a sua candidatura à câmara (prefeitura) de Lisboa também foi derrotada. Como experiência governativa pode apenas exibir um cargo de secretário de Estado da presidência do Conselho de Ministros e logo em seguida de Ministro dos Assuntos Parlamentares do VIII Governo Constitucional (1981-1983).

Derrota para a esquerda

Mesmo tendo uma política diferente do PSD e do CDS que o apoiaram, a vitória de Marcelo é uma derrota da esquerda, que tinha como primeiro objetivo forçar uma segunda volta e derrotá-lo nessa segunda eleição. O principal responsável por essa derrota é o Partido Socialista, que se dividiu entre o apoio a dois candidatos – Sampaio da Nóvoa e Maria de Belém –, sendo que António Costa, o primeiro-ministro, não tomou posição pública por nenhum deles.

Há quem pense que o PS operou essa divisão com a intenção de facilitar a vitória de Marcelo, e que essa seria a verdadeira opção da direção socialista. É uma visão conspirativa da História que parece despropositada. O PS dividiu-se entre dois candidatos não por um qualquer maquiavelismo da sua liderança (como se isso fosse possível!), mas, sim, porque é um partido com fortes elementos de crise.

Apesar de ter conquistado o governo, a sua votação ficou muito aquém do que esperava e, à sua esquerda, viu crescer Bloco de Esquerda e PCP que, juntos, chegaram a quase 19%. O fantasma da pasokização continua a pairar e há grandes divergências sobre o rumo a seguir.

Salomonicamente, António Costa afirmou que a primeira volta das eleições seria uma espécie de primárias do PS. O resultado é que não houve segunda volta. O candidato Sampaio da Nóvoa, ex-reitor da Universidade de Lisboa e um desconhecido nas lides políticas, conseguiu decolar e chegar aos 22,9%, contando com o apoio de três ex-presidentes – Ramalho Eanes, Mário Soares e Jorge Sampaio.

Mas a candidatura de Maria de Belém, que no início aparecia em segundo lugar nas pesquisas, desmoronou para 4,24%. A ex-presidente do partido contava com apoios ilustres, como o do ex-candidato à presidência Manuel Alegre, mas demonstrou graves falhas éticas no seu currículo, como quando acumulou o trabalho de consultoria para uma empresa privada de saúde (Espírito Santo Saúde) com o cargo de deputada, quando participava justamente da Comissão de Saúde do Parlamento. A machadada final foi a descoberta de que Maria de Belém fazia parte da lista de 30 parlamentares que recorreram ao Tribunal Constitucional para defender privilégios específicos que tinham terminado (subvenções vitalícias).

O segundo lugar de Sampaio da Nóvoa, porém, teve como base uma campanha dirigida a conquistar votos ao centro, dando destaque ao apoio do general e ex-presidente Ramalho Eanes que, em 1975, liderou o 25 de Novembro, o episódio que marcou o início da contrarrevolução que pôs fim à fase mais aguda da Revolução dos Cravos. A obsessão por obter votos do centro deu origem a uma campanha ambígua, por vezes pouco clara e tentando evitar assuntos mais difíceis como o da União Europeia.

O triunfo de Marisa Matias

O Bloco de Esquerda apostara numa eventual candidatura de Carvalho da Silva, ex-secretário-geral da central sindical CGTP, a maior do país, e ex-dirigente do PCP. Mas, no final de maio de 2015, o atual investigador e sociólogo anunciou que não iria se candidatar. “Eu manifestei disponibilidade mas nunca me inscrevi na corrida, nem me coloquei na linha de partida”, disse.

A essa altura, o partido liderado por Catarina Martins já estava concentrado nas eleições de outubro, quando obteria o maior resultado da sua história, e decidiu deixar para depois de 4 de outubro a decisão da candidatura às presidenciais.

O anúncio da candidatura da eurodeputada Marisa Matias só se deu a 7 de novembro. Por essa altura, Marcelo Rebelo de Sousa já anunciara que era candidato um mês antes (e na verdade estava em campanha há 15 anos), e Sampaio da Nóvoa fazia a sua campanha há sete meses. Havia, assim, um enorme risco nesta candidatura, que a jovem socióloga de 39 anos aceitou correr, com um entusiasmo que haveria de contagiar muita gente.

A candidatura de Marisa Matias reforçou a imagem de renovação do Bloco de Esquerda como um partido que soube fazer a transição dos dirigentes do tempo da revolução de abril de 1974 para uma geração mais jovem – e, mais ainda, uma geração onde as mulheres têm papel de destaque, como bem observou o The Guardian e, mais recentemente, a Folha de S. Paulo.

A líder do Bloco, Catarina Martins, 42 anos, conduziu o partido à sua maior vitória de sempre em 4 de outubro de 2015, numa campanha onde o seu próprio desempenho foi decisivo para o resultado. A jovem deputada Mariana Mortágua, de 29 anos, ganhou destaque na comissão parlamentar de inquérito ao Banco Espírito Santo e desde então firmou-se como uma das mais importantes parlamentares do país – e a irmã gêmea Joana, eleita deputada nas últimas eleições, segue-lhe os passos.

Marisa Matias, deputada europeia do Bloco de Esquerda desde 2009, vai no segundo mandato e tem desenvolvido uma atividade incansável nas mais variadas áreas. Em 2011, foi eleita pelos pares, com mais de 350 votos obtidos por voto secreto, como Deputada do Ano na área da saúde, tendo sido a única deputada do Grupo Parlamentar da Esquerda Unitária a receber este prêmio desde a sua criação. Dedicou-se também a questões internacionais, como a dos refugiados ou a da Palestina, tendo em setembro de 2014 presidido a apresentação das conclusões da sessão extraordinária sobre Gaza do Tribunal Russell para a Palestina, no Parlamento Europeu, com membros do júri como Ken Loach e Roger Waters.

A campanha de Marisa Matias foi uma lufada de ar fresco numas eleições normalmente pomposas e institucionais. A candidata falou sempre de forma clara, como quando afirmou que se fosse presidente vetaria o orçamento retificativo já aprovado pelo governo António Costa por causa do banco Banif.

Este orçamento determinou a aplicação de 3 bilhões de euros de dinheiro público no Banif, um banco em dificuldades que já se encontrava intervencionado pelo Estado e foi vendido ao Santander. A decisão foi uma imposição da Comissão Europeia ao governo português e representou a primeira fratura entre o PS, por um lado, e o Bloco de Esquerda e o PCP, que votaram contra essa medida – e recorde-se que o governo do PS se baseia num acordo de sustentação parlamentar com estes dois partidos. O resgate de 3 bilhões do Banif só seria aprovado devido à abstenção do PSD.

“Defesa do país contra a finança”

Marisa Matias foi a única candidata presidencial a opor-se a esta solução para o banco, que mais uma vez penalizou a população para beneficiar o sistema financeiro. A candidata apoiada pelo Bloco de Esquerda foi também a primeira a trazer ao debate a questão das subvenções vitalícias aos ex-deputados, que com apenas 12 anos de mandato tinham direito a uma aposentadoria para toda a vida.

Apesar de esse privilégio ter sido extinto em 2005, havia ainda muitos deputados que tinham direito a ele, e que reclamaram ao Tribunal Constitucional, que lhes deu razão. A decisão causou escândalo generalizado, e complicou a situação da candidata Maria de Belém, quando se descobriu que fora uma das parlamentares a entrar com o recurso diante do Tribunal.

Enquanto esta candidatura desmoronava, a de Marisa Matias crescia. Na sua intervenção na noite eleitoral, a porta-voz do Bloco, Catarina Martins, destacou a “capacidade extraordinária” de Marisa, que “colocou no centro da agenda a defesa do país contra a finança, a defesa dos direitos contra o privilégio”.

Catarina Martins afirmou que “a determinação do Bloco mudou o mapa político em Portugal”, pois “há um povo que quis começar a desmantelar a austeridade e que escolhe este espaço político para a luta e para a defesa de trabalhadores e reformados. O Bloco é a força fundamental para essa política de confiança”.

Os 10,13% dos votos são o melhor resultado jamais obtidos pelo Bloco de Esquerda em eleições presidenciais, quase o dobro dos 5,3% conquistados por Francisco Louçã em 2006. Em contraste, o PCP obteve o pior resultado em presidenciais, tendo o candidato Edgar Silva recebido apenas 3,9% dos votos.

“Durante esta campanha milhares de pessoas me falaram das suas vidas, dos seus problemas, das suas lutas, muitas delas me pediram que não me esquecesse delas e que nunca desistisse. Eu quero aproveitar esta ocasião para lhes confirmar que não as esquecerei e que não vou desistir”, afirmou Marisa Matias na noite eleitoral.

Enquanto os candidatos digeriam os resultados eleitorais e Marcelo Rebelo de Sousa se preparava para a posse, que será no dia 9 de março, uma pesquisa confirmava que as presidenciais não alteraram o balanço de forças entre os partidos. Segundo o Instituto Aximage, se as eleições parlamentares se realizassem agora, PSD e CDS, juntos, teriam apenas 39% dos votos, enquanto que PS, Bloco de Esquerda e PCP teriam 52%, mantendo-se assim intocável a maioria dos partidos de esquerda.


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(*) Luis Leiria é jornalista.

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