Luta contra aumento das passagens em SP mostra o que virá em 2016, lembra o Correio da Cidadania
Texto de Raphael Sanz
Não importa por onde comecemos a falar sobre as manifestações contra os aumentos da tarifa do transporte público de São Paulo; elas trazem características que provavelmente estarão presentes em todas as lutas sociais travadas nas ruas neste ano de 2016. E por isso é essencial entender o que está acontecendo, despindo-se de ideias pré-concebidas sobre os atores em questão. Podemos começar falando sobre a cobertura da imprensa, ou sobre a violência policial. Sobre a forma como se organiza o movimento, ou sobre a tática black bloc. Ou até mesmo sobre a ausência de espaços de diálogo entre o poder público e a sociedade. Todos são ingredientes já conhecidos, no senso comum, há pelo menos três anos.
O que temos de novo é o aprimoramento da repressão. O chacoalho que 2013 causou nas autoridades levou a uma escalada repressiva jamais vista. Um 2014 de Copa do Mundo e um 2015 de crise e ajuste fiscal também serviram para as aulas práticas dos agentes da “ordem”. E por falar em ajuste fiscal e crise econômica, o Movimento Passe Livre – responsável por convocar os atos – fez um levantamento de gastos em suas páginas da internet, no qual chegou à conclusão de que a crise existe em diversos setores, menos nos recursos da repressão.
Recentemente, foram comprados 6 blindados israelenses Plasan Sasa pela PM paulista. Segundo informações deste levantamento – feito a partir de dados divulgados por Metrô, SPtrans e imprensa – os veículos custaram 30 milhões de reais. Com essa verba seria possível comprar 100 ônibus, 272 ambulâncias, ou até mesmo financiar a tarifa zero por cerca de três dias para os 4,6 milhões de passageiros diários do metrô de São Paulo.
O aumento entraria em vigor no sábado, dia 9 de janeiro. Vamos aos fatos.
Primeiro ato: o caos
Na sexta-feira, 8 de janeiro, o primeiro ato se concentrou no Theatro Municipal, a partir das 17h. Cerca de 6 mil pessoas saíram de lá às seis e meia e marcharam em círculos, contornando o próprio Theatro Municipal e o Largo do Payssandu antes de ganharem o Vale do Anhangabaú. Enquanto passavam pelo Vale, a Tropa de Choque se posicionava na lateral do Terminal Bandeira, onde se encontram as avenidas 9 de Julho e 23 de Maio.
A multidão cruzou o Viaduto do Chá por baixo e buscou o acesso à avenida 23 de Maio. A tática do Movimento Passe Livre é exatamente essa. Trancar as ruas para chamar atenção à pauta. Concorde-se ou não, é desonesto afirmar que a ação policial foi decorrente da depredação de qualquer forma de patrimônio. O que se viu foi uma tropa de choque da polícia militar instruída a impedir a qualquer custo que a multidão trancasse a avenida 23 de Maio. E começou a chuva de bombas e balas de borracha, às 19h em ponto.
Uma parte da multidão subiu em direção à rua Augusta, outra parte voltou na direção do Theatro, e assim toda a manifestação foi se dissipando pelo centro de São Paulo. Estava aberta a temporada de caça. Policiais rondavam ostensivamente as ruas em busca de manifestantes. Nesse momento, e não antes como insistem os grandes meios, alguns manifestantes – e nem todos mascarados – quebraram vidraças de bancos e tentaram fazer barricadas no trajeto entre a entrada do Terminal Bandeira e a rua Martins Fontes.
Podemos entender a atitude de diversas formas. O que esta reportagem viu foi uma reação – ainda que impensada – à repressão. Os jovens veem nos bancos um símbolo de opressão. Talvez a ação tomada no calor do momento seja questionável, mas a análise não. Basta uma breve pesquisada a respeito dos inigualáveis lucros de Itaú, Bradesco e Santander em plena crise econômica e ano de ajuste fiscal. E o recente veto da presidenta Dilma em incluir a Auditoria da Dívida Pública nos próximos planos de governo só joga água no mesmo moinho.
muito a ver com isso, e que nos perdoe a presidenta, mas que pênalti perdido foi esse? Já funcionou no Equador, por exemplo, nosso vizinho.
Relatos de agressões, abusos de autoridade e práticas questionáveis por parte da repressão começaram a pipocar nas redes sociais. Um deles, esta reportagem teve o desprazer de presenciar. A prisão dos quatro garotos, filmada também pelos Jornalistas Livres, na qual uma série de flagrantes foi forjada para justificar a ação. Os garotos foram conduzidos à base policial localizada na praça Roosevelt sob aplausos de um casal que frequentava a praça. Skatistas solidários aos garotos fizeram coro contrário, em repúdio os aplausos.
Na segunda-feira seguinte, o MPL fez o chamado “trancamento de ruas”. Trancou a Faria Lima, na altura do Largo Batata como uma prévia da manifestação do dia seguinte. Também recebemos informações de trancamentos na Lapa. Na segunda-feira, 18 de janeiro, véspera do quarto ato, destacou-se o trancamento do terminal Parque Dom Pedro, o maior terminal de ônibus urbano da América Latina.
Segundo ato: a barbárie
O segundo ato contra o aumento das tarifas não começou às 17h, na Praça do Ciclista, como previa sua concentração. Diversas questões anteciparam as tensões. Um vídeo “viralizado” na internet que mostrava um policial infiltrado agredindo uma manifestante e logo sendo agredido por outros manifestantes; um enorme conflito entre poder público e movimento social a respeito do trajeto; e, para variar, a irresponsabilidade dos grandes meios de comunicação na cobertura dos fatos.
O vídeo citado gerou revolta em setores mais conservadores da sociedade, uma vez que foi lançado em página característica. Foram feitas prisões na casa dos manifestantes que foram filmados, em ações que fugiram do padrão exigido pelos códigos de justiça brasileiros. A não presença de oficiais de justiça com mandado de prisão ou algo do gênero pode vir a caracterizar uma ação ilegal por parte dos policiais envolvidos.
Por outro lado, a grande imprensa não ficou atrás. Manchetes de jornais impressos chamando os manifestantes de “mimados”, “vândalos”, entre outros jargões, fez lembrar a mesma mídia de antes do grande massacre de 13 de junho de 2013, no qual muitos profissionais da imprensa foram atacados em nome de uma suposta “retomada” da Paulista, bradada no editorial de um desses famosos jornais.
Outra questão levantada pela imprensa corporativa foi a de questionar a pauta de modo superficial. “Mas como se revoltam por uma aumento de 30 centavos e não dizem nada sobre os bilhões roubados?” Sejamos francos e menos canalhas. É tão óbvio quanto coerente que quem se revolta com o aumento do transporte público também está revoltado com a situação de crise e corrupção como um todo. Além disso, o MPL já deixou bem claro que não tem a proposta de dirigir um movimento mais amplo, mas, sim, pautar a questão do transporte público dentro das movimentações sociais e populares, por ser uma pauta com a qual eles já possuem acúmulo de mais de dez anos de estudos e atuação.
Mais uma questão que abalou as relações entre a multidão e o Estado foi a respeito do trajeto a ser percorrido pelo ato. Os manifestantes haviam definido em reunião prévia que iriam para o Largo da Batata, em Pinheiros. A polícia militar fazia questão de que descessem para o centro da cidade e terminassem na praça da República. A distância para ambos lugares é praticamente a mesma a partir da Praça do Ciclista; acontece que além da decisão prévia sobre o destino do ato, a polícia havia preparado uma recepção, digna de autocracia, para os manifestantes ao longo da descida da Consolação e na chegada ao centro da cidade. O clima esquentava.
A multidão se recusou, em jogral, a seguir o trajeto determinado pela PM, que por sua vez decidiu que por isso a manifestação não poderia acontecer. Por volta das 18h30, a multidão se dirigia para a Avenida Rebouças e era barrada pela PM. Havia bloqueios feitos pelas tropas de Choque e do Braço na Consolação, no acesso da Paulista à Rebouças e na própria Paulista pouco antes da esquina com a Haddock Lobo. Em outras palavras, os pouco mais de 4 mil manifestantes estavam encurralados.
Na esquina da Paulista com a Consolação, próximo do acesso à Doutor Arnaldo, diversos jornalistas estiveram isolados da multidão pelo cordão policial e eram impedidos de trabalhar do outro lado. Isso antes e também logo depois das 19h, quando novamente começaram as bombas. Assim como na sexta-feira anterior, a repressão foi brava, mas nesse dia podemos dizer que foi um massacre. “Foi pior do que 2013”, afirmou o fotógrafo Sérgio Silva no calor do momento, ele que sentiu na pele (e no olho) a repressão de três anos atrás.
O saldo final foi incalculável. Esta reportagem acabou envelopada na rua Sergipe junto com grupos de manifestantes que tentavam dispersar. “Todo mundo aqui cala a boca e senta em cima da mão que eu estou mandando”, afirmou o policial do Choque, sem identificação. Muitos jovens secundaristas estavam ali, e nitidamente desesperados. Em um breve espaço de tempo, consegui sacar o cartucho de memória da câmera, substituí-lo por um vazio, e esconder o que continha as fotos do dia – não são raros os relatos de material jornalístico apagado ou apreendido em situações como essa.
Dois estudantes secundaristas tentaram argumentar e pediram calma aos policiais, que responderam com uma prisão por desacato e um espancamento em cada um. Um colega deles afirmou que eram estudantes do Fernão Dias, segunda escola a ser ocupada no ano passado. O nível de violência na ação e na postura dos policiais chamou a atenção de um professor da FAU que também acabou envelopado: “Vou escrever um pós-doutorado sobre essa linguagem violenta com um relato disto que acabou de acontecer”, declarou. Vale lembrar que o envelopamento, ou “caldeirão de Hamburgo”, é uma tática proibida e já gerou polêmicas a seu respeito em fevereiro de 2014, durante manifestação crítica à realização da Copa do Mundo da FIFA que aconteceria dali a poucos meses.
Após o envelopamento, o jovem Peterson Marques procurou a reportagem do Correio da Cidadania. Ele havia perdido os dentes da frente por causa da agressão policial. “Eu fui ajudar as meninas que estavam apanhando e comecei a apanhar também, na cara. Só percebi que tinha perdido os dentes quando fui cuspir”, contou. Ele foi para a Santa Casa, onde recebeu atendimento. No fechamento desta matéria, a última informação que temos é de que conseguiu um dentista que se ofereceu para fazer tratamento de canal e recolocar os dentes perdidos.
Além de Peterson, o pintor Douglas Ferreira, de 24 anos, foi atingido no olho esquerdo por uma bala de borracha e correu risco de perder a visão. Apuramos que já não corre esse risco. Além dele, houve centenas de relatos de feridos dos quais o jornalista Alceu Castilho tomou nota e cujo link está disponível ao final desta reportagem.
A libertação dos três presos, o repúdio à ação da PM e o direito à livre manifestação se juntaram ao aumento da tarifa e deram o tom do ato que se realizou dois dias depois. Em contrapartida, governo do estado e prefeitura tentaram uma anticonstitucional liminar que impedisse manifestações – especialmente as do MPL, visto que em outras manifestações o tratamento é “diferenciado” – de serem realizadas sem uma aprovação prévia do comando da polícia militar em relação ao trajeto que percorrerá. É o poder público dando cada dia mais mostras da sua incrível capacidade de diálogo.
Terceiro ato: paz com armas, vozes cansadas
“Por favor, não jogue bomba”, dizia a camiseta de um manifestante, ainda na concentração no Theatro Municipal, e de certa forma expressava o clima de tensão que manifestantes, imprensa e transeuntes sentiam em relação à ação policial. Desde as 14h, três antes do início da concentração, a polícia já tomava toda a região do Vale do Anhangabaú e arredores da Praça Ramos – onde fica o Theatro Municipal, local de uma das concentrações do ato deste dia. Acompanhamos esta manifestação, que foi até o vão do MASP, passando pela avenida Brigadeiro Luis Antônio. A outra concentração foi no Largo da Batata, às 17h em Pinheiros.
Ainda no Theatro, o jogral de início do ato comemorou a soltura de três manifestantes presos nos atos anteriores, mas lembrou que ainda restavam dois. Havia uma presença mais intensa da mídia. O ato partiu no sentido da Secretária Estadual de Segurança Pública, poucas quadras de distância dali. Chegando lá, encontramos uma secretaria altamente guardada pela PM. Foi feito um jogral criticando a política de segurança e pedindo a desmilitarização da polícia e o respeito aos direitos de se manifestar. O ato seguiu sentido Brigadeiro Luis Antônio, por onde subiria até virar à direita na Paulista e encerrar em frente ao MASP, onde foi feito outro jogral.
Não houve muitos incidentes durante o trajeto, a não ser uma bomba que estourou fora do espaço da manifestação ainda no início da subida da Brigadeiro. Segundo manifestantes que estavam próximos, policiais as atiraram na direção de moradores de rua que ali estavam. “Houve um princípio de desespero e revolta, mas o povo se segurou e estamos seguindo. Hoje está bonito”, afirmou Luis Berti, livreiro. Também foi possível presenciar um policial da Tropa do Braço dando uma cacetada em um jovem que participava do cordão de isolamento dos manifestantes. Aparentemente sem motivo.
De qualquer maneira, é importante ressaltar mais uma vez que a presença ostensiva e explicitamente intimidadora da polícia ditou o passo tímido deste terceiro ato. Mas nem tudo foi só intimidação e provocação. Também houve vias de fato. Uma breve confusão de aproximadamente 15 minutos entre manifestantes que tentavam pular a catraca da estação Consolação, na linha verde do metrô, gerou bombas e tiros dentro da estação por parte dos agentes do Estado e alguns vidros quebrados por parte de manifestantes mais exaltados. Este fato foi tomado como um todo pela “rigorosa” cobertura dos grandes meios de comunicação.
Enquanto isso, na dispersão do outro ato, um fato ainda mais estarrecedor, que prossegue ignorado pelos mesmos rigores. Um grupo de manifestantes foi encurralado pela polícia na ponte Eusébio Matoso. Relatos dão conta de agressões físicas a manifestantes, incluindo até mesmo agressões sexuais. “Não havendo nenhum tipo de registro cinematográfico, espancaram todos com socos, chutes, spray de pimenta e cacetadas.
Com as meninas a abordagem foi ainda pior: além de bater, as abusaram, colocando a mão em suas vaginas e tacando-as no chão, aos risos. Que tipo de instituição faz isso? Que tipo de instituição tem como parte do trabalho, além de espancar e desorientar pessoas por elas se manifestarem, também violentá-las sexualmente e, quem sabe, assassiná-las?”, desabafou a manifestante D.M. nas redes sociais. Nenhuma nota na grande imprensa.
E na semana em que publicamos essa primeira reportagem sobre os atos contra a tarifa, a dura vida paulistana continuará sacudida pelas manifestações contra o reajuste nos ônibus, trens e metrôs. Se a cidade vai parar ou a nova tarifa se imporá, os próximos dias dirão. De toda forma, continuaremos registrando os novos e candentes capítulos das disputas sociais e econômicas que marcam esse incerto período da história brasileira.
(Com o Correio da Cidadania)
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