Maturidade e Conhecimento

                                                                       


 Deolindo Amorim (*)

Ensina a Doutrina Espírita que, enquanto a parte material da ciência exige somente “olhos que observem”, a parte espiritual exige certo grau de maturidade, que “independe da idade e do grau de instrução”, porque é peculiar ao desenvolvimento do espírito

Entendamos logo a palavra ciência no sentido amplo de conhecimento, e não em termos restritos de laboratório ou gabinete de pesquisas. Ciência, na acepção lata de saber, a fim de que nos possamos situar bem no pensamento da Doutrina. 

Traduzida em expressão mais simples, a lição doutrinária quer dizer claramente que, sem a necessária maturidade espiritual, não temos condições de penetrar em determinadas nuanças ou sutilezas do conhecimento. Faz-se necessário o esforço próprio, o refinamento íntimo, a aquisição, enfim, de valores mais profundos.

Obviamente, maturidade não significa envelhecimento, mas experiência, equilíbrio, senso de responsabilidade, aprimoramento moral. Claro que a idade física, sob o “peso dos anos”, como se costuma dizer, às vezes favorece muito a experiência, mas não se pode condicionar sistematicamente a maturidade espiritual às demarcações da faixa etária.

A idade, ao longo do tempo, oferece oportunidades bem propícias a reflexões mais demoradas, em razão das vivências sucessivas, não há dúvida, mas a ancianidade biológica não significa, em todos os casos, que o elemento mais idoso já tenha amadurecido suficientemente para certas coisas da vida. E tanto é exato que há moços de 20 anos já bastante amadurecidos, ao passo que muitas pessoas de 50, 60 ou 70 anos ainda são imaturas nas ideias, como nas reações e nos procedimentos. É a vida cotidiana que no-lo demonstra a cada passo. Pelo encadeamento da reencarnação, não se sabe quem seja mais moço ou mais velho no curso do aprendizado espiritual.

A escala do conhecimento é infinita, mas o labor humano precisa transpor naturalmente três planos consecutivos: o conhecimento prático ou imediato, inerente à natureza física; as operações racionais, que nos levam a outra ordem de conhecimento, facultando a descoberta de verdades lógicas, fora da órbita dos sentidos, e o amadurecimento espiritual, a que o Espiritismo dá muita ênfase, justamente porque nos abre uma perspectiva incalculável de conhecimento em profundidade. 

O conhecimento discursivo, que se realiza através de processos lógicos, inegavelmente nos traz muito enriquecimento intelectual, mas não chega à essência de certas questões fundamentais, não tem elementos para entrar no cerne de transcendências desafiantes, como a causa última da vida, o destino do ser humano, a ação divina, os julgamentos da consciência, por exemplo. 

Há necessidade, portanto, de amadurecer espiritualmente, como diz a lição espírita. A esta altura naturalmente já nos defrontamos com uma categoria de conhecimento que ultrapassa a experiência sensível ou material, assim como o raciocínio esquematizado, porque se projeta no plano da intuição pura, iluminada pela elevação do espírito acima dos objetos contingentes e da própria lógica formal. 

Encontramos Bergson exatamente nesta posição. Para ele, mais psicólogo do que propriamente filósofo, segundo certa opinião crítica, que não nos interessa discutir, para ele — repetimos — o conhecimento intelectual é finito ou limitado e, por isso mesmo, não pode alcançar problemas como a existência de Deus, a essência da vida, e assim por diante. É a intuição, no esquema bergsoniano, a categoria mais alta do saber. Mas — recorramos, agora, à Doutrina Espírita —, para desenvolver a intuição, faculdade mais alta do espírito, indispensável se faz a transformação íntima, o engrandecimento moral, o trabalho profícuo e persistente para que não fiquemos na superfície do conhecimento.

Seja como for, o conhecimento é progressivo e, por conseguinte, não pode transpor todas as etapas de um salto. A experiência inicial, em contato direto com o mundo material, é um ponto de partida, embora nos permita somente uma visão muito reduzida das coisas e da vida. 

O conhecimento empírico, em suma, depende apenas da observação e das técnicas apropriadas, tanto quanto do instrumental adequado a cada tipo de investigação e verificação, é um estágio em que o “saber de experiência feito”, no dizer do celebrado poeta lusitano, tem muita significação em seu momento, pois o fato de nos interessarmos pela realidade transcendente, que ocupa outro plano de conhecimento, não nos induz a fazer tabula rasa da realidade imanente, realidade que está em nós e no ambiente que nos rodeia. 

Nesta ordem de raciocínio, cabe lembrar que Tomás de Aquino, o grande doutor da Escolástica, apesar de todo o apriorismo dominante em sua época, rejeitou o argumento ontológico, defendido por Anselmo, também teólogo medieval dos mais acatados, segundo o qual devemos aceitar, antes de tudo, a existência de Deus como o Ser evidente por si mesmo e, depois, por dedução, reconhecer as manifestações de sua presença pelo mundo visível. 

Em contraposição à prova ontológica, que desce do absoluto para o relativo ou do criador para a criação, entendia Tomás de Aquino que se deve partir do mundo concreto e, por fim, chegar à concepção de Deus em suas perfeições. Por outras palavras: raciocinar do visível para o invisível, do efeito para a causa. 

Adstrito à esfera de suas possibilidades, o conhecimento empírico é válido até certo ponto, mas insuficiente, de certo ponto em diante, justamente porque nos revela apenas os aspectos contingentes da verdade, o que está na superfície, nunca nos explica a realidade essencial. Seus instrumentos de sondagem e comprovação, por mais precisos que nos pareçam, não alcançam o lado espiritual do ser humano.

Ninguém pense que se realiza integralmente, do ponto de vista do conhecimento, apenas por ter acumulado experiências no campo objetivo ou exterior, conquanto as experiências sejam meritórias. O trabalho experimental é um meio, não ó o fim último da “sede de saber”. Do mesmo modo, a luz da razão é uma das mais poderosas vias do conhecimento, mas não podemos fazer do raciocínio analítico uma instância definitiva da verdade. 

Não basta encontrar a solução lógica de problemas ocasionais, pois o progresso do espírito requer muito mais. E a que ponto vamos chegar, finalmente? Exatamente ao conhecimento interior, mais profundo e mais seguro do que a transitoriedade dos conceitos formais: “conhecer-se a si mesmo”, como já ensinava o filósofo, antes do próprio Cristianismo. E ninguém se conhece a si mesmo enquanto não amadurece espiritualmente. 

Há pessoas muito intelectualizadas, habituadas a uma dialética impressionante, mas nem por isso deixam de ser ainda imaturas em relação aos assuntos de ordem espiritual. Querem prodígios facilmente, tentam submeter os Espíritos aos caprichos humanos, pretendem fazer barganhas com a Justiça Divina por meio de sofismas ou fórmulas sibilinas e pedem constantemente que os Espíritos lhes revelem tudo ou descubram o panorama de toda a sabedoria de um momento para outro, sem estudo, sem perseverança e sem modificação íntima. 

E aqui, na realidade, vemos e sentimos o pensamento da Doutrina Espírita em toda a sua clareza e plenitude: “Muitos, entretanto, dos que acreditam nos fatos das manifestações não lhes apreendem as consequências, nem o alcance moral ou, se os apreendem, não os aplicam a si mesmos”. Pouco adiante, no mesmo trecho: “Pedem aos Espíritos que incessantemente os iniciem em novos mistérios, sem procurar saber se já se tornaram dignos de penetrar nos arcanos do Criador”. (“O Evangelho Segundo o Espiritismo” — capítulo XVII, seção IV. Referências convergentes; “O Livro dos Espíritos” — questões 192, 218 e 365).

O elemento não espírita, se é inteiramente estranho aos conceitos espíritas, poderá tomar a expressão “novos mistérios” no sentido corrente ou ao pé da letra, o que não condiz absolutamente com as ideias espíritas. Mistério — não faz mal dizer o que já é cediço entre nós — é o que ainda não é conhecido: o mistério de hoje pode ser desvendado amanhã e, assim, deixa de ser mistério, é um conceito apenas temporal e, por isso, dentro dos contextos espíritas, jamais poderia ser entendido na acepção teológica.

A falta de madureza para as coisas do espírito tanto se verifica em pessoas sem instrução regular quanto em pessoas muito preparadas. Então, mais uma vez temos de voltar ao ponto central: é preciso amadurecer, antes de tudo. Como? Por meio de penitências? Retirando-se do mundo e fazendo vida de eremita? Entregando-se ao desleixo pessoal? Nada disso. Amadurecimento pressupõe disposição íntima, vontade forte e perseverante de sair da vulgaridade e encarar seriamente os assuntos elevados, renovação moral sem fugir às necessidades naturais e à normalidade da vida terrena. 

Amadurecimento, em suma, é reflexão profunda do Espírito, tanto faz ser moço ou ser muito idoso do ponto de vista humano. À medida que melhoramos interiormente, o conhecimento se torna mais rico de ideias e soluções, permitindo-nos descobrir aspectos e valores muito mais profundos do que as experiências ordinárias ou comuns. 

Que fale mais uma vez a Doutrina: “Nem tudo pode ser revelado ao homem neste mundo, mas o véu se levanta a seus olhos, à medida que ele se depura; mas, para compreender certas coisas, são-lhe precisas faculdades que ainda não possui.” (“O Livro dos Espíritos” — questões 17 e 18.). 

Já se vê, consequentemente, que ninguém consegue chegar à sabedoria de um momento para outro ou por meio de artifícios. Sabedoria é conquista do Espírito através do tempo e de trabalho constante. Depurar-se não é mortificar-se, é renovar-se a cada dia. E a renovação estimula o desenvolvimento de faculdades superiores em direção ao ponto mais alto do conhecimento, pois revela o ser humano a si mesmo pelas claridades de seu mundo interior. 

Quem apenas faz leituras “por alto”, sem compreender o pensamento da Doutrina, certamente não pode descobrir a parte mais sutil, consistente e duradoura do ensino espírita. Então, que procuremos, na experiência do dia-a-dia, realizar o nosso indispensável desenvolvimento espiritual para que possamos chegar a esse estágio progressivo, é o amadurecimento, de que nos fala a Doutrina Espírita.

Fonte: Reformador, abril de 1978, Rio de Janeiro-RJ. Revista de divulgação da Federação Espírita Brasileira.

(*) Deolindo Amorim nasceu em Baixa Grande-BA, em 23 de janeiro de 1906 e desencarnou no Rio de Janeiro, em 24 de abril de 1984. É considerado, ao lado de Carlos Imbassahy e Herculano Pires, um dos maiores pensadores espíritas do Brasil. Jornalista, sociólogo, escritor espírita de estilo professoral, extremamente didático e elegante, Deolindo foi um dos maiores divulgadores do Espiritismo como cultura e voltado para a análise de questões da atualidade. Fundou o Instituto de Cultura Espírita do Brasil (ICEB), foi um dos idealizadores da Associação Brasileira de Jornalistas e Escritores Espíritas (Abrajee) e graças ao seu empenho, em conjunto com a Liga Espírita do Brasil, realizou-se no Rio de Janeiro, em 1949, o II Congresso Espírita Pan-Americano. 
Obras: Espiritismo e Criminologia; O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas; Africanismo e Espiritismo; O Espiritismo e os Problemas Humanos; Ideias e Reminiscências Espíritas; Allan Kardec, o Homem e o Meio, dentre outras.


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