Dia Mundial da Ciência Pela Paz e o Desenvolvimento


                                                     

Frederico Carvalho  

«Quando se afirma a importância da ciência e da tecnologia para o desenvolvimento e a paz importa dizer que o grande capital privado e as suas corporações se servem da ciência e da tecnologia única e exclusivamente quando isso serve os seus interesses egoístas. Fora disso vão ao extremo de negar os próprios factos científicos.»

Todos os anos, no dia 10 de Novembro, a UNESCO incentiva as autoridades e os cidadãos em geral em todos os estados membros a promover ou simplesmente participar em acções de diversa natureza que visem despertar a consciência para a ligação íntima entre Ciência, Paz e Desenvolvimento.

Afirmar essa ligação é uma necessidade do nosso tempo em que os povos enfrentam sérias ameaças à própria sobrevivência na nossa Terra mãe. Tempo também em que o grande capital que sustenta as corporações multinacionais cobiça e apropria-se dos recursos naturais mais valiosos onde quer que se encontrem indiferente às condições de vida das populações que se degradam e aos impactos ambientais sobre o meio natural. 

Fá-lo em conluio com poderes locais que lhe são subservientes e, onde os não encontra, não hesita em recorrer à subversão e à guerra, directamente ou por procuração, sempre com enormes custos humanos e materiais.

Onde então entra a Ciência nisto tudo? Todos nós, mulheres e homens, cidadãos comuns, apercebemo-nos naturalmente dos extraordinários benefícios que os avanços da ciência e as suas aplicações técnicas trazem ao nosso dia-a-dia – os progressos da medicina, a facilidade de comunicarmos entre nós e a possibilidade de nos informarmos, em casa ou no trabalho, do que se vai passando à nossa volta, na nossa terra e no mundo, de nos deslocarmos mais rápida e comodamente, de um local para outro e conhecer novas terras, novas formas de estudar e aprender, na escola e ao longo da vida, e tantas coisas mais.

De tudo isto temos consciência – é a face boa da ciência e da técnica, ciência e técnica que se foram construindo ao longo de gerações e gradualmente acelerando o ritmo dos seus avanços. Todavia a ciência e a técnica podem ter, sempre tiveram e têm, aplicações perversas de que muitos de nós se aperceberam e apercebem todos os dias. 

Foram pessoas como nós que destruíram vilas e cidades com os armamentos mais aperfeiçoados que lhes puseram nas mãos, empurradas para um destino infeliz por forças poderosas. Ao olhar agora para a outra face da ciência – a ciência do mal – voltamos a encontrar o monstro do grande capital para o qual o objectivo do lucro e a acumulação privada da riqueza criada pelo trabalho humano é o fim último sempre presente, nas decisões que toma, nas guerras que fomenta, no trabalho científico que financia. 

Os países governados – é esse o termo – pelo grande capital privado zelador dos interesses das corporações apátridas que comanda, investem meios humanos, materiais e financeiros na investigação científica para fins militares que frequentemente ultrapassam os meios destinados à investigação em áreas fundamentais para o progresso e bem-estar social, desde logo na saúde e educação mas também na defesa e preservação da natureza, no combate às alterações climáticas, ou nas energias renováveis.

A desigualdade na distribuição da riqueza, hoje, no mundo, atingiu níveis insuportáveis: o equivalente a metade da riqueza de todo o planeta está nas mãos de oito pessoas. Passam fome 800 milhões de seres humanos; quase 300 milhões de crianças estão subnutridas. Por ano, a morte de cerca de três milhões de crianças com menos de cinco anos é atribuída à subnutrição.

Noventa por cento daqueles que vivem abaixo do nível considerado de pobreza encontram-se na Ásia, na África Subsariana, na América Latina e nas Caraíbas.

A revolta que este quadro sombrio deve suscitar acentua-se com outro aspecto da realidade que é o facto de cerca de 10% do produto interno bruto (PIB) mundial estar resguardado em paraísos fiscais, uma interessante criação do capital predador.

O papel da educação

Neste ano de 2017, o tema escolhido para o Dia Mundial da Ciência pela Paz e o Desenvolvimento foi «A Ciência para um Entendimento Global», reflectindo a necessidade de congregar vontades e trabalhar em conjunto para a resolução dos grandes problemas com que os povos e o mundo se defrontam.

Na mensagem que tornou pública nessa ocasião, Irina Bokova, directora-geral da UNESCO e a primeira mulher a ocupar esse cargo, apontou alguns daqueles que são em seu entender esses problemas e sublinhou a importância das Ciências e da Tecnologia na procura de respostas-chave para a construção da Paz e a promoção de um desenvolvimento sustentável. 

A própria natureza dos desafios que enfrentamos, como a gestão da água, o uso sustentável dos oceanos, a protecção dos ecossistemas e da biodiversidade, a adaptação às alterações do clima e a resposta aos desastres naturais, exige uma abordagem integrada envolvendo os vários domínios do conhecimento científico e respostas inovadoras. 

Uma tal abordagem, antes de mais, exige da parte dos responsáveis políticos o reconhecimento do papel da Ciência e dos trabalhadores científicos na procura de respostas eficazes visando a superação das ameaças existentes, o que exige, à partida, a existência de uma política científica nacional assente num debate alargado e construída em diálogo com a comunidade científica.

A História ensina-nos e a actual situação do mundo confirma-o, que a educação tem um papel decisivo nos processos de transformação social. Isso mesmo é sublinhado na mensagem de Irina Bukova atrás referida quando chama a atenção para uma iniciativa pioneira da UNESCO dirigida no sentido de promover a cooperação científica a nível global, encorajando, simultaneamente, acções locais ou regionais, focada em duas problemáticas-chave: a igualdade dos géneros e África. 

Neste contexto, a UNESCO lançou no corrente ano um simpósio internacional inovador e um fórum de debate político, sobre o tema «educação das jovens mulheres no domínio das ciências, da tecnologia, da engenharia e da matemática». Desta forma procura a UNESCO contribuir para o combate que é essencial travar às enormes desigualdades de género que se verificam naquelas áreas de conhecimento nos países do Sul, nomeadamente em África. O mundo não pode ser salvo sem as mulheres e há mesmo quem pense e diga que «serão as mulheres a salvar o mundo».

As desigualdades de género devem ser uma preocupação global quando se fala na Paz e no desenvolvimento. Presente em diferentes formas e graus em todas as partes do mundo são particularmente acentuadas nos países ditos «em desenvolvimento» e nestes sobretudo nos mais pobres, que são simultaneamente os mais violentamente explorados pelo grande capital associado às grandes corporações multinacionais.

Quando se afirma a importância da ciência e da tecnologia para o desenvolvimento e a paz importa dizer que o grande capital privado e as suas corporações se servem da ciência e da tecnologia única e exclusivamente quando isso serve os seus interesses egoístas. Fora disso vão ao extremo de negar os próprios factos científicos que entendem não servir esses interesses, não hesitando mesmo em desacreditar as fontes que os trazem a público.

Pessoas e instituições respeitáveis são alvo de perseguições ou de boicote quando se mostram desalinhadas ou quando denunciam crimes ambientais como a desflorestação massiva na Amazónia ou na Indonésia, por exemplo. No complexo químico-industrial, em que se distinguem corporações gigantes como a Monsanto ou a Bayer (que recentemente adquiriu a primeira) são denunciadas práticas criminosas contra o meio natural e a saúde pública, trazidas à luz do dia por cientistas corajosos que são expulsos e perseguidos. 

Noutra área, a dos armamentos, o «capitalismo de desastre» prospera graças às encomendas públicas de material de guerra em constante processo de sofisticação. E nas altas esferas da política aparecem caixeiros-viajantes empenhados em conseguir mais e melhores encomendas de armamentos junto das elites governantes de estados «mal-armados». Um exemplo edificante é o das recentes visitas de Donald Trump, ao Médio Oriente e ao Sueste Asiático.

Oportunidade de diálogo

A negação da Ciência a que se fez alusão acima, pode encontrar-se em países desenvolvidos mas cujo grau de cultura é medíocre. Nos meios do grande capital privado, a negação da Ciência é frequentemente hipócrita. Nega-se factos científicos porque prejudicam interesses políticos ou económicos. Daí o abandono pelos EUA do Acordo de Paris sobre mudanças climáticas. Daí o limitado investimento nas energias renováveis a par da promoção da extracção e queima de carvão e petróleo.

E outros exemplos poderão apontar-se. Entretanto, investe-se fortemente na investigação para fins militares, em novas armas e novas formas de guerra, como a guerra cibernética ou os chamados «robôs assassinos» que são sistemas de armamentos com capacidade de decisão autónoma, quer dizer, sem intervenção humana, sobre quem matar, onde e quando.

Em Outubro último os Estados Unidos, prontamente seguidos por Israel, anunciaram retirar-se da UNESCO à qual desde 2011 não pagavam a quotização que lhes cabia como membro da organização. Alegaram a esse respeito «um posicionamento continuado anti-Israel» daquela organização. Permanecem entretanto com o estatuto de observador.

Irina Bokova lamentou a decisão tomada «num momento em que a luta contra o extremismo violento impõe reforçar o investimento na educação, no diálogo intercultural como barreira contra o ódio», valores que estão na raiz da UNESCO, a agência das Nações Unidas que promove a educação para a Paz e a defesa da cultura contra os ataques que lhe são movidos.

A iniciativa da UNESCO de promover um «Dia Mundial da Ciência pela Paz e o Desenvolvimento» merece aplauso e deve ser olhada com simpatia por todos nós. Importa todavia notar que tanto a UNESCO como a própria Organização das Nações Unidas estão longe de dispor dos instrumentos – meios e influência política – que seriam necessários para levar o mundo a trilhar caminhos diferentes daqueles que vem seguindo. 

Entretanto deve reconhecer-se que para construir as transformações sociais que são indispensáveis para assegurar um futuro sustentável às sociedades humanas no planeta e a sua própria sobrevivência, é imperioso, como disse Bento de Jesus Caraça, «despertar a alma colectiva das massas».

Iniciativas como a deste «Dia Mundial» são em si mesmo uma oportunidade de diálogo e aprendizagem que deve contribuir para interiorizar na consciência de muitos a gravidade dos problemas que vivemos no nosso mundo e as suas diversas origens e qualidades.

O mundo caminha hoje num sentido oposto ao que conduziria à Paz, esta mesma indispensável ao desenvolvimento social, económico e cultural dos povos e à criação de condições que assegurem a continuação da vida no planeta. Não será possível mudar de rumo no quadro do capitalismo.

Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2295, 23.11.2017

(Com odiario.info)

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