Um discurso sombrio (sobre o Estado da União)


                                                                 
                             USA Donald Trump Rede zur Lage der Nation (Reuters/J. Bourg)


 Michael Knigge (*)

Ao falar de imigração em seu primeiro discurso sobre o Estado da União, Trump pintou um retrato assustador de um país e de um povo, em suas palavras, vítimas da imigração.

Em seu primeiro discurso sobre o Estado da União, o presidente americano, Donald Trump, não depreciou ninguém pelo nome. Ele não atacou Hillary Clinton nem os meios de comunicação, dois de seus alvos favoritos. Não incentivou divisões entre republicanos e democratas – na verdade, falou muito de bipartidarismo, pedindo aos legisladores que trabalhem juntos em prol do povo americano. Tudo pelas notícias positivas.

Mas, ao mesmo tempo em que o começo – e, até certo ponto, o fim – de seu longo discurso pode ser caracterizado como otimista, com o foco na economia e no orgulho americano, o tom do restante de sua fala se tornou cada vez mais sombrio e ameaçador.

Os trechos sobre imigração, em particular, pintaram um retrato assustador de um país, em suas palavras, vítima tanto da imigração legal quanto ilegal. A forma como Trump descreveu os imigrantes, como fomentadores do caos para o povo americano, atingiu seu ponto mais baixo quando ele explorou a dor com fins políticos. Como na campanha presidencial, ele chamou a atenção na plateia para pais de crianças mortas por membros de gangues que também eram imigrantes sem documentos.

Curiosamente, a parte sobre imigração foi também o trecho mais detalhado de discurso que, no geral, foi pouco específico. Trump reiterou o que, em sua opinião, deveriam ser os quatro pilares de uma reforma migratória: a possibilidade de os chamados "dreamers" receberem a cidadania americana; a construção de um muro na fronteira com o México; o fim da loteria de vistos; e uma diminuição significativa do reagrupamento familiar de imigrantes.

Trump disse que os imigrantes podem levar um número ilimitado de parentes distantes aos EUA – o que, na realidade, é mentira. Os imigrantes com cidadania americana ou que possuem um green card podem somente reagrupar seus parentes mais próximos.   

De forma abominável, Trump não apenas relacionou a imigração ilegal com a criminalidade de gangues, mas também vinculou as duas principais formas de entrar legalmente nos EUA – a loteria de vistos e o reagrupamento familiar – com o terrorismo.

O próprio presidente americano chamou de "concessão" o projeto para permitir a naturalização dos "dreamers" e, ao mesmo tempo, reduzir drasticamente a imigração legal. Mas sua imagem de um país ameaçado pelos imigrantes deixa, na verdade, pouco espaço para entendimento com os democratas.

Revelador também é o foco de Trump em proteger a subsistência dos americanos das ameaças de qualquer tipo de imigração, além de suas repetidas descrições dos EUA como vítima de um cerco econômico por parte de países que, segundo ele, usam práticas comerciais desleais, prejudicando o trabalhador americano.

Funcionou durante a campanha para impulsionar sua base – e, pode-se dizer, continua funcionado.

Revelador também é o que ele minimizou. A Rússia – sua suposta interferência nas eleições americanas e possível relação com a campanha de Trump são alvo de uma série de investigações – foi mencionada uma vez. A China foi citada três vezes, e a palavra "democracia" não apareceu em nenhum momento do discurso.

O primeiro discurso de Trump sobre o Estado da União será bem recebido entre seu eleitorado e grande parte dos republicanos. Mas o tom profundamente nativista e cerceador é um anátema para qualquer um que considere os EUA uma nação de imigrantes e que acredite no lema E pluribus unum, "de muitos, um".

Dito isso, o discurso tem pelo menos um efeito prático: deve finalmente acabar com qualquer argumento fútil sobre Trump como potencial "unificador" ou sobre um potencial recomeço sem sua presidência.

(*) Michael Knigge é correspondente da DW em Washington

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