Vestígios de uma marcha histórica: a passagem da Coluna Prestes por Santa Catarina


                                                           
Ângela Bastos

O tilintar anuncia a descoberta. Debaixo da terra são retiradas peças e pedaços de objetos que recontam a história da Coluna Prestes, a mais longa marcha militar do país. Foram 25 mil quilômetros por 11 Estados, com 53 combates ao longo de dois anos e meio. Para efeito de comparação, a Grande Marcha da China (1934-1935), com 100 mil revolucionários sob o comando de Mao Tse Tung, percorreu 10 mil quilômetros. Ainda que fracassadas em termos de objetivos, as tropas comandadas por Luiz Carlos Prestes  nunca sofreram derrota para as forças legalistas.

O movimento se rebelava contra um governo acusado de corrupção, que tinha Arthur Bernardes como presidente, e pregava reformas sociais contra os privilégios das oligarquias. Noventa e três anos depois, marcas da passagem da Coluna por Santa Catarina permanecem visíveis no extremo-oeste. São utensílios da lida com animais, defesa das tropas e ferramentas, como estribos, freios, armas, munição.Localizadas por moradores, algumas peças são preservadas em museus. 
                                                                        
Estribo federalista encontrado em terras de Dionísio Cerqueira, na divisa com o Paraná e fronteira com a ArgentinaFoto: Betina Humeres / Diário Catarinense

É o que ocorre em Guaraciaba, a 180 quilômetros de Chapecó e 706 de Florianópolis. Outras referências permanecem a céu aberto. Como marcos erguidos no meio da mata, antigas trincheiras, cruzes em memória daqueles que tombaram no confronto entre revolucionários e federalistas. Esse é o cenário de cidades como Dionísio Cerqueira, na fronteira com Bernardo de Irigoyen, na Argentina, e Descanso, primeira parada dos rebelados após partirem do Rio Grande do Sul e atravessarem o Rio Uruguai.Está mais raro, mas ainda hoje quando um agricultor rasga o solo um achado pode acontecer.

 Recentemente uma empresa que faz prospecção de metal foi contratada pela Associação Recreativa e Cultural Nacional para rastrear determinada área. Na proximidade de uma vala comum, foram encontrados estribos usados pelos oficiais, perfeitamente identificados pelo brasão da República gravado. O geógrafo Tiago Junior Gobetti conta que em décadas passadas era comum a localização de trincheiras onde combatentes se protegiam. Os abrigos tinham cerca de 60 metros de comprimento por 1,5 metro de profundidade.

– Com a expansão da agricultura, os terrenos foram transformados em potreiros e lavouras – diz o geógrafo.

Estima-se que cerca de 1,5 mil homens e mulheres a pé e a cavalo tenham marchado enfrentando mata virgem, sertão, polícias e jagunços a serviço do governo. Por onde passaram os rebelados, como em Santa Catarina, fizeram inimigos e amizades. 

Com o fim da marcha, Prestes se exilou na Bolívia e na Argentina, quando teve contato com a doutrina marxista. Depois, partiu para a União Soviética, onde viveu por três anos e conheceu a militante alemã Olga Benário, com quem se casou. De volta ao Brasil e já integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi preso com a mulher que, grávida, foi deportada para a Alemanha nazista. Antes de morrer, Prestes voltou ao extremo-oeste catarinense. Uma das homenagens ocorreu na cidade de Descanso, em 16 de dezembro de 1986, exatos 61 anos após a passagem da Coluna pela região. 


                                                                 Betina Humeres / Diário Catarinense
Escritor  guarda a imagem de um Prestes culto  e com muito dinamismo

Eliseu Oro, 94 anos, é um ilustre morador de Descanso. Nascido em São Domingos do Sul, passou a infância na cidade gaúcha de Passo Fundo até que em fevereiro de 1950 se mudou para Santa Catarina. Há 67 anos, vive no lugar onde construiu família e se destacou como agricultor, professor, vereador e prefeito. Um dos primeiros colonizadores, é autor de nove livros, como História de Descanso, em que descreve os primeiros tempos do município batizado com esse nome por ter servido de parada aos revoltosos.

Eliseu não presenciou o feito, mas guarda carinho e respeito pelo capitão do levante que colocou em polvorosa os quarteis brasileiros.– Assisti e guardei cópia do discurso que ele fez quando por ocasião dos 30 anos de Descanso. O então comandante esteve aqui para ser homenageado – conta para, em seguida, buscar na biblioteca da casa onde mora uma fotografia ao lado de Luiz Carlos Prestes.

O escritor observou no líder revolucionário um  homem culto, de muita leitura e com grande dinamismo. Isso, acredita, teria feito com que muitos tivessem se encantado pela proposta de tornar o Brasil da República Velha menos desigual. Apesar desse carisma, a marcha revolucionária divide opiniões. Para alguns foi uma tentava fracassada de implantar no Brasil um regime comunista. 

Oro acredita que até hoje exista confusão sobre a passagem dos revolucionários, inclusive em Descanso. Há muitas histórias de violências que teriam sido praticadas contra a população. Ele reconhece que esses crimes poderiam ter ocorrido, consequência da presença de um grande número de pessoas o que dificultava a organização e comando. Porém, costuma questionar como as tropas teriam feito matança de animais e invasões de propriedades se na época o lugar se tratava apenas de uma descampado:

– Como isso teria ocorrido se a marcha passou por aqui em 1925 e os primeiros habitantes da cidade se firmaram na região em 1935? – costuma questionar. Na época, diz o escritor, Prestes era apenas um militar com ideais sociais. Para reforçar a ideia, apenas em 1931 ele foi à União Soviética e se identificou ainda mais com o marxismo. Da longa conversa que teve com o ex-comandante quando ocorreu a visita a Descanso, Oro recorda as lembranças do tempo em que ele esteve preso:

– Ele contou que teve uma vida longa porque quando esteve preso em uma cela de 2 por 3 metros aproveitou para desenvolver um hábito: o de caminhar.

O líder do Partido Comunista morreu com 92 anos, em 7 de março de 1990, no Rio de Janeiro.

 Desnível remete para as trincheiras utilizadas nos tempos de conflito 

Geógrafo e professor,  Tiago Junior Gobetti é um apaixonado pela história da tríplice fronteira. Morador de Dionísio Cerqueira, ensina crianças e adolescentes sobre fatos ocorridos em Santa Catarina, Paraná e Argentina. Um dos lugares para onde transporta os conhecimentos é a localidade Maria Preta, que tem esse nome em homenagem ao rio que nasce na divisa do Estado  com o Paraná. Passados 90 anos, o terreno em desnível remete para as trincheiras utilizadas nos tempos de conflito que marcam a passagem da Coluna Prestes por terras catarinenses.

– Geograficamente falando, se não estamos em cima, estamos muito próximos de onde aconteceu, talvez, a segunda maior das batalhas entre as forças federais e revolucionárias. Os federais comandados pelo general Claudino Nunes e os revolucionários pelo major Cordeiro de Farias – explica o professor de geografia em um dos terrenos às margens da rodovia que corta a localidade.

Para ele, um embate interessante por ter sido desigual e com um desfecho surpreendente.– Enquanto as forças federais contavam com quase 2 mil soldados, os homens de Cordeiro não passavam de 70. Além de terem uma munição bastante inferior e uma reserva de recursos bélicos e militares muito pequena. Gobetti conta que em 1952, os moradores e um servidor do antigo Departamento de Estradas e Rodagens localizaram uma dessas trincheiras que tinha cerca de 60 metros de largura por 1,5 metro de profundidade. 

Esses espaços de proteção permaneceram por muito tempo. Mas a expansão da agricultura transformou os terrenos em potreiros e lavouras.Foi de uma dessas trincheiras que após muita resistência com parcos recursos, os soldados se viram obrigados a partir em direção à localidade da Separação. O professor diz que os entreveros de Maria Preta possuem uma carga histórica muito grande, pois permitem olhar para a região e enxergar um pouquinho do Paraná, de Santa Catarina. 

– Enfim, para tudo que converge para uma fronteira entre dois Estados e um país – sugere Gobetti.


 Linha Separação foi palco de um dos mais sangrentos combates da marcha histórica

Ainda em Dionísio Cerqueira um outro lugar é reconhecido como ponto de referência da passagem da Coluna Prestes pelo extremo-oeste catarinense. A Linha Separação foi palco de um dos mais sangrentos combates da marcha revolucionária ao longo dos 25 mil quilômetros percorridos pelo movimento. Não é oficial, mas populares falam que em torno de 200 homens teriam morrido.

–  Há um cruzeiro que representa pelo menos 27 oficiais que tombaram, mas só os com patentes altas. Os corpos dos soldados foram abandonados em uma cachoeira a 600 metros – conta Cleiton Weizenmann, da Associação Recreativa e Cultural Nacional, uma organização não-governamental que desde 2010 cuida do Cemitério da Separação.

Weizenmann considera o local de extrema importância e lembra que o próprio Prestes, em entrevistas, menciona o acontecimento tal a relevância do duelo para a continuidade do levante. Não fosse o episódio, o sonho da marcha revolucionária teria se encerrado ali. – Antes era tudo aberto, sem muros, viam-se animais pisoteando o pasto. A entidade considera que a área é histórica e fez melhorias, como a cerca ao redor – conta. 

O local é frequentado por estudantes das escolas e em datas especiais, como no Dia de Finados, por moradores de cidades vizinhas. Entre os visitantes, idosos que contam ter tido um parente enterrado ali. Gente que nem conheceu o familiar, mas ouviu relatos dos mais velhos e decidiram fazer disso uma tradição.

Todo o ano um grupo de cavaleiros também passa pelo local. Em 2017, a 29a edição da Cavalgada da Integração saiu da cidade gaúcha de Pinheirinho do Vale para percorrer o trajeto da Coluna Prestes na região. Um caminho bem diferente da época, quando as tropas rebeladas atravessaram o Rio Uruguai de barcaças e tiveram que abrir picadas na mata fechada. 

Mas que serve como resgate:

– É bonito ver homens, mulheres e crianças montados em seus cavalos reverenciando aqueles que morreram – diz Solange Maria Righi, diretora de Turismo da prefeitura de Dionísio Cerqueira.

Para o professor Mauro Prado, o local é um marco na história do Brasil e não apenas regional ou estadual.

– Aqui houve um encontro de duas tropas legalistas e que por um erro de estratégia ou de percurso dos próprios militares combateram entre si, numa espécie de fogo amigo.O combate durou 12 horas e varou a noite. De um lado, a tropa do coronel Claudino Nunes, da Brigada Militar do Rio Grande do Sul e, do outro, de Firmino Paim, do Batalhão Ferroviário do Paraná. Enquanto isso, os rebelados avançavam pelo território brasileiro. 

Mais tarde, Prestes juntaria suas tropas às do coronel Fidêncio de Melo, depois de vencer a mata e, por fim, alcançar a região do Iguaçu, onde aguardavam as forças de Isidoro Dias Lopes e Miguel Costa.O nome Separação, explica, vem do fato que, depois de percebem o erro, as tropas federais se separam. Uma voltaria para o Rio Grande do Sul, enquanto outra seguiria para o Paraná determinada a capturar as tropas de Prestes. 

A respeito de relatos contraditórios, como o fato dos protagonistas do choque terem sido os próprios revoltosos, o professor reage:

– Temos muitas fontes de pesquisa, como a obra de Lourenço Moreira Lima, autor de A Coluna Prestes, Marchas e Combates (1934), que descreveu a marcha. Além de falas do próprio Prestes e as narrativas de Leocádia Prestes, a filha dele, escritas no livro A Coluna Prestes (1990), com base em entrevista com o pai. Não foi astúcia das tropas de Prestes, mas falha dos federalistas que nunca assumiram o tropeço.


                                                            Betina Humeres / Diário Catarinense
                             Acervo reúne peças recolhidas por moradores na vizinhança

O Museu Histórico Professor Edvino Carlos Hölscher, em Guaraciaba, preserva um pedaço da passagem da Coluna Prestes pela região. Desde 1992, peças encontradas por moradores às margens do Rio Índio ocupam um dos expositores. Conforme Geovani Bertollo, assistente cultural do museu da cidade, os revoltosos passaram duas vezes pelo lugar. Imagina-se que o material tenha sido deixado no retorno para o sul do país. 

Há relatos sobre muitas outras peças encontradas. Mas que ficaram nas casas das pessoas. Só nas últimas décadas, as famílias foram estimuladas a encaminhar para o museu. Com isso, as peças foram se somando e hoje ainda que pequeno há um acervo que sempre desperta a atenção dos frequentadores.


                                                                     Betina Humeres / Diário Catarinense
Marco em concreto assinala lugar por onde passaram os revolucionários

Cerca de cinco quilômetros adiante, ainda na Linha Olímpio, mais rastros do levante. Porém, a céu aberto. Num campo acima da casa do agricultor Nelson Ludwig um marco em concreto foi erguido. A placa de identificação é de 20 de março de 1999. Ludwig dá explicações a respeito da localização:

– Aqui funcionou uma retaguarda da Coluna Prestes. Por isso, o lugar de observação era feito num ponto alto do terreno e permitia melhor visualização caso as tropas federalistas se aproximassem.O agricultor considera que o lugar é um pedaço importante da memória do município devido à relevância do movimento para o país. Mas considera que nem todos os administradores se interessam, o que faz com que as gerações mais novas desconheçam a história que tem relação com as primeiras famílias colonizadores.

 Ludwig conta ter achado restos de cela de cavalos e cintos de couro usado por pessoas. Mas o que mais encontrou foram peças de munição e cartuchos vazios.

– Teve um morador próximo que chegou a recarregar a espingarda. A arma funcionou e ele andou por aí dando uns tiros na bicharada – admira-se o agricultor.

Celso Martins: "Um conhecer em movimento"

(Com Emanuel Bonfante Demaria)


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