Cartas de Prestes e Olga que vão a leilão fazem parte de patrimônio público

                                                            

Em reportagem exclusiva para o blog The Intercept, o jornalista e escritor Mário Magalhães descobriu que o lote de cartas de Luiz Carlos Prestes e sua mulher Olga que serão leiloadas esta semana por R$ 350 mil têm sinais claros de que foram subtraídas de arquivos públicos. O dono diz que achou o lote no lixo.

AS 319 CARTAS endereçadas ao líder comunista Luiz Carlos Prestes (1898-1990) que vão a leilão na quinta-feira pertenceram a acervo público não identificado, de onde teriam sido extraviadas em passado próximo ou longínquo. O lance mínimo para arrematar o lote é de R$ 350 mil.

A correspondência começa em 1936, ano em que Prestes foi preso em março, e termina em 1945, quando a anistia o libertou em abril (uma missiva de 1946 é exceção). Entre os remetentes estão sua companheira, a alemã Olga Benario; a mãe, Leocádia; a irmã Lygia; e outros parentes e amigos.

A leiloeira Soraia Cals anunciou que, como se ignora o nome do proprietário original dos documentos, eles serão vendidos “sob reserva de direitos” de pessoa ou instituição que mais tarde venha a reivindicar a posse. O Intercept descobriu indícios de que a coleção epistolar a ser apregoada depois de amanhã constitui patrimônio público subtraído. Logo, não poderia ser leiloada.

Um exemplo é uma carta de 4 de abril de 1936 de Olga para Prestes em que ela informa sua gravidez. A revolucionária alemã estava encarcerada numa cadeia da rua Frei Caneca, no Rio. O marido, no quartel da Polícia Especial, no morro de Santo Antônio, região central da cidade.

O plano de revolução que trouxera os dois ao Brasil malograra em novembro do ano anterior. O casal foi preso no dia 5 de março, no subúrbio de Todos os Santos. Em setembro, o governo de Getulio Vargas e o STF entregaram Olga para a Gestapo. 

Ela era comunista e judia. Os nazistas a mataram em 1942, no campo de extermínio de Bernburg. A filha dela e de Prestes, Anita Leocádia, nascera em Berlim em novembro de 1936.

As mensagens trocadas por Olga e Prestes enquanto estiveram presos no Rio foram preservadas pela polícia política do antigo Distrito Federal. Na primeira metade da década de 1990, seu acervo foi encaminhado para o Aperj (Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro).

A folha única escrita em francês em que Olga conta estar grávida não integra, contudo, o prontuário 1.675 da polícia, dedicado à militante. Essa carta irá a leilão. Ela tem uma anotação a lápis, “9-IV”, ou 9 de abril. Deve ser a data em que Prestes a recebeu. É a mesma da resposta do “Cavaleiro da Esperança”, conservada pelo Arquivo Público: “Nestas linhas não posso traduzir tudo o que sinto e estou mesmo incapaz de escrever as palavras que digam algo sobre o imenso afeto que nos une”.

Carimbos oficiais

O Intercept observou o lote 323, com a correspondência, em exposição pré-leilão em Copacabana. São numerosos os sinais de que compunha acervo público policial ou prisional. Muitos envelopes estão catalogados com o número “13” manuscrito em lápis azul. Carimbos de “Censura”, da Casa de Correção ou da Penitenciária Central do Distrito Federal, marcam os papéis. 

Mostram que as mensagens, liberadas ou não para o destinatário, eram monitoradas pelas autoridades. Veem-se “vistos” registrados por funcionários públicos, idêntico procedimento aplicado à papelada sob guarda do Aperj. Com lápis grafite, datas foram inscritas sobre os documentos, nos moldes de notações arquivísticas.

Esse tesouro histórico é formado por peças originais. De acordo com o jornal O Globo, que no domingo dedicou três páginas ao assunto, o lote inclui uma carta que Olga escreveu para Prestes, em maio de 1940. Trecho: “Como eu poderia descrever pelo menos uma fração dos sentimentos e pensamentos que suas lindas palavras despertaram em mim?”.


O Intercept constatou que essa carta de 14 de maio de 1940 foi publicada num livro de 2002, o último dos três volumes com a correspondência enviada e recebida por Prestes de 1936 a 1945. A organização da trilogia foi de Anita Leocádia, historiadora, e sua tia Lygia. A edição, do Aperj e da Paz e Terra.

Como a carta original foi parar no leilão? Em mensagem a O Globo, Anita Leocádia disse que “a correspondência do meu pai durante os nove anos de sua prisão no Rio de Janeiro […] se encontra arquivada no Aperj”. Uma carta redigida em alemão por Olga e que será leiloada tem data de 26 de outubro de 1939. A mãe de Anita penava no campo de concentração de Ravensbrück.

Não foi raro, outrora, o sumiço de documentos do acervo das polícias políticas do à época DF e de suas sucessoras dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro. O delegado Cecil Borer foi o principal idealizador e organizador do arquivo.

Em 2001, ele me disse ter esvaziado a maior parte do prontuário do governador Carlos Lacerda (esvaziou mesmo). É desconhecido o autor do desaparecimento de farto conteúdo da pasta do ex-presidente João Goulart (nem se isso ocorreu depois ou, mais provável, antes da transferência para o Aperj). A do governador Leonel Brizola sumiu.

No Arquivo Público permanece muita história. No prontuário de Olga, descobre-se sua altura, 1,75 metro (bem mais alta do que Prestes). Que ela, mesmo grávida, perdeu 12 quilos na prisão (67 para 55). Que no inverno carioca fez um pulôver de tricô para o marido. “Há indicações de que teremos um menino”, avisou. E que na derradeira carta antes de o navio “La Corunã” atracar no porto alemão de Hamburgo a prisioneira escreveu: “Carlos, prometo que vou resistir enquanto eu tiver forças e me mostrar digna de ti e de nossa causa”.

As informações do parágrafo acima foram publicadas em 11 de janeiro de 2003 pela Folha de S. Paulo, na reportagem “O baú de Olga”.

Cartas ‘encontradas no lixo’

A descoberta das cartas teria sido acaso, conforme O Globo: “Um catador passou pela lixeira antes da equipe da Comlurb e as levou a um negociante de antiguidades da Praça Quinze”. O jornal entrevistou dois vendedores da feira de antiguidades que teriam manipulado a correspondência depois de resgatada do lixo. Um deles é o dono do material.

A leiloeira Soraia Cals disse ao Intercept que sua “hipótese é a correspondência ter sido guardada na casa de alguém. Essa pessoa morreu, e a família colocou no lixo”. Sobre a possibilidade de comprovação de que se trata de documentação pública, portanto pertencente ao Estado, declarou: “A gente tem que apurar”.

A historiadora Maria Teresa Villela Bandeira de Mello, diretora do Aperj, afirmou que o arquivo “tentará medidas para impedir o leilão até que a procedência da documentação esteja esclarecida”. Levantamento inicial feito ontem não percebeu falta de documentos.

Biógrafo de Olga, o jornalista e escritor Fernando Morais prefere que a coleção permaneça em arquivo público. “Se isso for parar na mão de particulares, não será um crime apenas contra o Estado, mas contra a sociedade. Quem quiser pesquisar sobre esse período da história do Brasil, vai ter que pedir por favor ao dono do acervo”.


https://nocaute.blog.br/2018/11/20/cartas-de-prestes-e-olga-que-vao-a-leilao-fazem-parte-de-patrimonio-publico/

(Com Nocaute)

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