De 21 a 24 o Vaticano vai abrir a caixa preta dos crimes sexuais em seus domínios em todo o mundo

                                                 

"É preciso ver a crise dos abusos sexuais como uma crise global, porque a própria Igreja é global, mas também porque suas várias partes estão cada vez mais interconectadas".

A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, em artigo publicado em Commonweal, 18-02-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Segundo ele, "A Igreja Católica fez mais nos últimos anos do que qualquer outra instituição global para elevar seus padrões de proteção infantil. Isso aconteceu – deve-se reconhecer – porque ela foi forçada a fazer isso, mas também porque tem os recursos para fazer isso (nem toda instituição tem)".

Eis o texto.

2018 foi o ano em que muitos católicos finalmente aceitaram que a crise dos abusos sexuais na Igreja é realmente um problema global. Daí a decisão do Vaticano de reunir os presidentes de todas as Conferências Episcopais em Roma para discutir a questão entre os dias 21 e 24 de fevereiro.

A crise dos abusos nos força a olhar para a interconexão da Igreja e a resistir ao espírito do nosso tempo, que não apenas fecha fronteiras e constrói muros, mas também nos cega diante do modo como aquilo que está acontecendo em uma parte do mundo se relaciona com aquilo que está acontecendo em outra.

É claro, nós, católicos, fomos ensinados que a Igreja é o Corpo de Cristo e que, se um membro desse corpo sofre, todo o corpo sofre. Nós sabemos disso, mas também nos esquecemos disso. Nos últimos anos, cada membro parecia preocupado com o seu próprio sofrimento. 

O escândalo dos abusos sexuais nos EUA, ou no Chile, ou na Austrália repercute em outras partes do mundo. E os abusos que ainda não foram revelados em outros países – por causa de diferenças culturais e políticas, assim como de diferentes níveis de escrutínio da mídia – também afetarão os católicos dos EUA quando forem finalmente revelados.

Essa é uma das razões pelas quais a reunião no Vaticano deve se concentrar mais nos países onde a crise dos abusos ainda não eclodiu e naquelas Igrejas que ainda precisam desenvolver suas próprias reformas para prevenir, detectar e responder aos abusos.

O ano passado foi um divisor de águas. As revelações no Chile e nos EUA, de modo especial, puseram em questão o papel do Vaticano e do papa na crise global. Elas também enfraqueceram a credibilidade dos bispos para lidar com a crise. Vários grupos de católicos leigos, com várias pautas, deram um passo à frente oferecendo-se para assumir um papel de liderança no enfrentamento da crise.

Um congresso que ocorreu em Washington no início deste mês ilustrou a mudança de equilíbrio na conversação católica estadunidense sobre a crise dos abusos. Organizado pela Leadership Roundtable (uma rede de gestão eclesial fundada e desenvolvida por Geoffrey Boisi e Kerry Robinson), esse congresso apresentou perspectivas teológicas e culturais muito diferentes das evidenciadas em outro recente evento promovido por um grupo conservador chamado “Better Church Governance Group”.

Uma diferença importante entre esses dois eventos foi que, no evento organizado pela Leadership Roundtable, os leigos e o clero estavam juntos na mesma sala. Os bispos estavam representados pelos cardeais Blase Cupich, Sean O’Malley e Joseph Tobin, junto com dom Shawn McKnight, bispo de Jefferson City, Missouri, e dom Mark Bartchak, bispo de Altoona-Johnstown, Pensilvânia. O núncio apostólico nos EUA, o arcebispo Christophe Pierre, também estava presente.

Entre os leigos convidados para falar na conferência estavam reitores de universidades, especialistas na formação do clero e conhecidos promotores do diálogo intra-eclesial, como John Carr e Kim Daniels, da “Iniciativa sobre o pensamento social católico e a vida pública” da Universidade de Georgetown. 

O objetivo do congresso era apresentar um conjunto de propostas para fortalecer e se basear na Carta de Dallas, propostas a serem enviadas às lideranças da Igreja Católica nos EUA. As apresentações da conferência e as conversas em grupo foram notavelmente honestas e diretas. Os participantes, inclusive eu, foram solicitados a cumprir a Regra da Chatham House (que basicamente significa que eu não posso dizer a você quem disse o quê).

O que eu posso dizer é que as discussões foram incrivelmente livres de qualquer tentativa de usar a crise dos abusos para promover uma agenda ideológica sobre as questões candentes que dividem a Igreja. 

Ninguém propôs soluções simplistas ou demagógicas. 
E ninguém tentou deslegitimar o pontificado de Francisco.

Há algo mais que tornou significativo o congresso da Leadership Roundtable. Foi a decisão dos organizadores de convidar o Pe. Hans Zollner, SJ, presidente do “Centro para a Proteção dos Menores” da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Zollner foi nomeado por Francisco para ajudar a organizar a próxima reunião no Vaticano.

Sua apresentação na conferência em Washington abordou as raízes teológicas e eclesiológicas da crise e analisou os diferentes estágios da crise em diversas áreas do mundo.

É preciso ver a crise dos abusos sexuais como uma crise global, porque a própria Igreja é global, mas também porque suas várias partes estão cada vez mais interconectadas. A presença na Igreja dos EUA e da Austrália de padres, religiosos e leigos de outras partes do mundo é cada vez mais visível, e o escândalo ainda não emergiu em muitas das Igrejas locais de onde essas pessoas estão vindo. Como todos aprendemos da maneira mais difícil, a inconsciência da crise é uma das coisas que a perpetuam. 

As regras que governam a formação de padres nascidos nos EUA só chegarão longe em uma Igreja que dependa fortemente de padres nascidos no exterior com uma formação diferente. Os bispos norte-americanos que importam padres do exterior estão assumindo um grande risco ao ignorar a dimensão global do escândalo dos abusos sexuais.

Por mais que alguns achem difícil acreditar, a Igreja Católica fez mais nos últimos anos do que qualquer outra instituição global para elevar seus padrões de proteção infantil. Isso aconteceu – deve-se reconhecer – porque ela foi forçada a fazer isso, mas também porque tem os recursos para fazer isso (nem toda instituição tem).

Mesmo assim, o trabalho não está acabado e, em alguns lugares, ele está apenas começando. A Igreja, em algumas partes do mundo onde a crise ainda precisa vir à tona, precisa do exemplo e da liderança da Igreja dos EUA, que tem lidado com esse problema há décadas e aprendeu algumas lições dolorosas, mas necessárias, durante esse período.

Uma coisa que descobriremos na cúpula do Vaticano sobre os abusos sexuais, que começa em poucos dias, é se a Igreja dos EUA é capaz de fornecer apoio e liderança para os católicos que ainda lutam nos estágios iniciais dessa crise global.

(Com o IHU)

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