'Jesus, Alegria dos Homens'

                                                                         

Sinval de Itacarambi Leão | 26/12/2019 12:35


Segundo está registrado no Google, a tradução correta em português da cantata de Johann Sebastian  Bach seria "Jesus, alegria que os homens desejam". Diferença semântica sutil (porém, fundamental) para se apreciar "os Jesus” dos primeiros séculos (Concílio de Niceia), da Idade Média (santo Tomás de Aquino), da Renascença (Concílio de Trento), da era moderna (Bach), do Romantismo (Joseph Ernest Renan) e da pós-modernidade (Gregório Duvivier).

O especial de fim de ano de 2019 do Porta dos Fundos, "A Primeira Tentação de Cristo", exibido na Netflix, aconteceu burocraticamente na grande mídia —mas foi turbinado nas redes sociais por caracterizar Jesus Cristo como gay. Houve de tudo: da crítica legítima por conta da liberdade de expressão à guerrilha em prol da censura governamental. Brilhou quem brincou de criar uma teologia da sátira.

Cristo veio ao mundo para dividir, assim como todos os profetas. Milhões de cristãos morreram por defender sua divindade. Todos os séculos da cristandade tiveram suas noites de são Bartolomeu, à semelhança do massacre na Redação do jornal satírico Charlie  Hebdo (Paris, 2015) por fundamentalistas do Estado Islâmico, provocado pelas charges esculhambando Maomé.

A reação ao especial do Porta dos Fundos não chegou a tanto. Além dos discursos de ódio da bancada da Bíblia, no Congresso, a crítica profissional esteve mais para condescender com o humor satírico que para o rigor estético da Ilustríssima. Nas mídias sociais, o recorrente foi o linguajar do ódio. 

Nada comparável com o que aconteceu na Igreja Católica a partir da edição do ensaio "Vie de Jesus", em 1863, de Josefh Ernest Renan (1823-1892). Cardeais, bispos e párocos de aldeia demonizaram Renan com tal fúria que até o Collège de France, a suprema instituição ligada à Sorbonne —portanto, uma autoridade laica e estatal— o expulsou e cassou sua cátedra de hebraico.


Renan não se submeteu à inquisição informal da opinião pública francesa e influenciou os intelectuais de seu país e de todo o mundo, inclusive no Brasil Imperial, onde Joaquim Nabuco destacou-se como seu maior discípulo. A perseguição a Renan só terminou com o Concílio Vaticano 2º, na década de 1960, pois até aí editoras católicas como a FTD, abastecedoras de livros didáticos dos antigos cursos ginasiais e colegiais, consideravam a obra dele perversa. 

Também nessa época, Jesus passa a objeto de desejo dos artistas, principalmente na mídia de massa, como em grandes musicais ("Jesus Cristo Superstar", de Andrew Lloyd Webber, 1971) e no cinema (Franco Zeffirelli, 1977;  Martin Scorsese, 1988; e Mel Gibson, 2008).

No serviço de streaming, onde brilha o Porta dos Fundos, "Jesus, Alegria dos Homens" vira trilha sonora de um mundo de desejos. Nele há os que não se rendem, a turma dos humoristas.

Artigo publicado na seção digital de Tendências e Debates da Folha de S.Paulo



(Com o Portal Imprensa)

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