Vidas salvas em meio à pandemia


                                                                           

Natália Viana (*)

Em meio à pandemia de coronavírus, tem sido impossível conversar com alguém que tenha um parente querido dentro do sistema prisional sem sair abalada. Se a vasta maioria da população já está aflita com a possibilidade do vírus atingir os seus, os familiares de presos convivem com a certeza de que é apenas questão de tempo até que a doença se alastre nas cadeias. 

A população carcerária brasileira tem hoje 773.151 mil pessoas, que se espreme em 461.026 vagas, em condições que só podem ser descritas como medievais. Essas pessoas já morrem hoje, de doenças tratáveis como HIV, sífilis e tuberculose. 62% das mortes dentro do sistema prisional são por essas doenças, e não por violência. Imagine o que poderá trazer então um vírus com enorme velocidade de contaminação e ainda sem cura? 

A preocupação levou o Conselho Nacional de Justiça a emitir recomendações bastante razoáveis aos juízes brasileiros, como a revisão de prisões provisórias por crimes cometidos sem violência. Rápido, o Ministro do STF Marco Aurélio seguiu a recomendação do Conselho e no último dia 18 decretou que todos os magistrados de vara de Execução penal deveriam avaliar a concessão de liberdade condicional para maiores de 60 anos e de regime domiciliar para demais grupos de risco, além de avaliar penas alternativas para crimes não-violentos. Na mesma noite, porém, o plenário do STF suspendeu a medida. Enquanto isso, Sergio Moro, para variar, afirmava que a recomendação soltaria traficantes nas ruas e colocaria a população em risco. 

Os sinais contraditórios dos poderes federais têm levado a uma esquizofrenia nas diferentes esferas. Enquanto o estado de Santa Catarina decidiu acatar a recomendação do CNJ e libertar quase mil presos, outros, como Rio de Janeiro e São Paulo, proibiram todas as visitas e saídas temporárias. 

A proibição angustiava a mãe de um preso com quem eu conversava, pelo telefone, porque ela não podia nem entregar o remédio de sinusite do filho. 

Mas meia hora depois, eu voltava a falar com ela ao telefone e desta vez ela estava às lágrimas. Na tarde de ontem, a Juíza Marilena Bittencourt, da 4ª Auditoria da Justiça Militar do Rio, se juntou aos corajosos juízes que decidiram, diante da calamidade que se aproxima, soltar seus presos. Ela pediu a libertação de sete jovens que foram torturados dentro da Vila Militar durante a intervenção, antes de serem acusados de tentativa de homicídio contra dez soldados. 

Na decisão, Marilena explica que os rapazes, que já estavam presos há mais de 500 dias, não têm culpa se os prazos de julgamento foram mudados por causa do vírus – o julgamento deveria ter acontecido no último dia 19, mas foi transferido para dia 2 de junho. 

Marilena Bittencourt, vale dizer, é a mesma juíza que inocentou o soldado do Exército que deixou paraplégico um morador da Maré em 2015 sob a alegação de “legítima defesa imaginaria”. 

Até a noite de ontem, dois jovens tinham sido libertados e outros aguardavam procedimentos judiciais. Não acho exagero dizer que a juíza salvou a vida desses rapazes ao decidir pela sua liberdade.

(*) Natalia Viana é codiretora da Agência Pública

Comentários