Quem conta um conto...

                                                                 
TOCO E MARIA SOPRADA

 Lucas Donizete da Silva


Tinha o Toco e a Maria Soprada. E tinha as madames da alfabetização, sempre gostava de começar assim. 

Ele vendia lenha. Vem daí seu apelido. Não podia ver um toco de pau seco. Até raiz ele jogava na carroça. Tinha duas.Tinha uns animais também. O Burrim Branco,um cavalo e uma égua que, diara, estava produzida e amojando já de novo. 

Achava que o cavalo era inteiro. Para ocupar a égua e aumentar a tropa. E o Toco colocava o burrinho branco numa carroça.Amarrava a égua na frente dele. O poldrinho ali do lado, remedando a mãe. Com o tempo ele aprendia a andar de guia, na frente da égua.Quando pegava era, já era amansado. Aí, era só treinar ele na carroça uns dias e podia vender pra outro carroceiro, que já tinha outro poldrinho nascido e outro na barriga da égua. O cavalo, ele colocava na outra carroça. E amarrava atrás da outra. E colocava aquela tralha na estrada. Imitava um trem. O burrinho branco era a locomotiva. Empurrava a égua com o poldrinho e puxava a carroça como cavalo e a outra carroça. Mas quando o peso pesava nos morros,todo mundo fazia força, que o Toco era sujeito ruim. Mau mesmo.Metia o couro. Batia pra machucar. Pra matar. Só o poldrinho que não puxava, porque não estava trelado. Caía na quiçaça. Derretia.Medo de sobrar pra ele também. Vez em quando até o Toco tinha de ajudar, fazendo força numa das rodas. Aí é que ele ficava enfezado direito.

Afirmava que um dia tinha visto ele assim. É... Era pra garantir a credibilidade no caso. Foi aqui dentro da rua. Estava só  com a carroça do burrinho. Não devia estar muito pesada não, porque todo mundo sabia que ele comprava duas carroçadas de lenha lá no mato. Colocava os paus bem arrumadinhos, pra caber muito. Mas,quando chagava ali no aterro da saída de Abaeté... Isso, da Biquinha. Ali mesmo, na entrada da Morada, ele jogava tudo no chão erecarregava. Agora, colocando tudo encruzado. Aproveitando os paus tortos pra carga ficar fofa. Parecendo um queijo de tão cheia de buracos. Se tinha uns dois paus mais grossos, então, aí é que ele caprichava. Colocava eles assim de banda, no fundo da carroça. Punha outro pau atravessado, assim, lá na frente e outro cá atrás e deitava os outros, assim, por riba, formando um jirau. É... um outro fundo, na carroça, e o resto da lenha enriba. Das duas carroçadas fazia umas três ou quatro. E vendia a lenha “baratinha” na cidade.

Pois é, como estava contando, a carroça não devia estar muito pesada não. Mas era das antigas, de roda de pau e ferro:de antes do Paulo do Dico inventar de fazer carroça de eixo de caminhão, com rolamento, e peneu.Então, podia não estar muito pesada, mas também não era das mais maneiras não. Ele foi colocar ela, de fasto, dentro de um quintal, pra descarregar. Mas... Nem toda casa tinha passeio, mas a roda pegou num barranquinho, ou no meio-fio, que o progresso já estava chegando, e começou a tocar uma sinhana e tanto. Aí, o burrico não conseguia fastar a carroça, que rabeava, assim, avançando mais aroda que estava solta. O Toco ralhava com o burro, puxava o freio pra trás, batia com as rédeas nas costelas dele, chupava os muxoxosmais depressa e mais com força, e nada. Ele tinha um piraí grandão assim, com umas tampinhas de garrafas achatadas e amarradas na ponta do cabo. Chacoalhava as tampinhas no ar, pro burro escutar. E nada.Dava umas chicotadas no burro, e nada. A sinhana continuava. Garrou a fazer força na roda engastalhada, e nada. Ficou mais enfezado ainda. Começou a bater no burro com a vara do cabo do piraí. Nas costelas, nas talas do pescoço, nos peitos, nas canelas, nas orelhas, na cabeça. O burrinho desembestou a fazer força de fasto e a balangara cabeça. Até sapateava de tanta força. A carroça começou a empinar e assungou o burrinho, que ficou piabando os pés, assim, noar. O burro dobrou o pescoço pra banda direita e deitou a cabeça,assim, enriba da zapá. A carroça fincou o recavém no chão, com os dois cabeçalhos espetados pra riba e o burrinho ali no meio deles,fungando com dificuldade. Pendurado na rabicha, na chincha e na barrigueira. (Dizem que o butão dos burros é estufado por causa de que os carroceiros vão atrás chupando os muxoxos pra tocar os burros). Pois o do burrinho branco estava mais espichado ainda com o peso do fato pesando pra baixo... E com os muxoxos mais fortes que o Toco tinha dado. A cada esperneada que o burrinho dava no ar, soltava um horror de peidos.

O Toco ficou apertado e garrou a pular e dependurar nos cabeçalhos da carroça, puxando pra baixo, pra fazer ela baixar.Numa hora em que o burrinho conseguiu encompridar o pescoço pra frente, deu uma calibrada no peso; mais a força e o peso do Toco, a carroça desempinou, e o burrinho botou os pés no chão de novo. Aí,o Toco arranjou um não sei quê de calma, tirou metade da lenha da carroça e o burrinho conseguiu colocar a carroça, mais maneira, pra dentro do quintal.

Mas não era só com os animais que o Toco era ignorante não – alertava com um jeito sério na voz. Com as filhas também.E explicava: dizem que vivia incestando elas. E ainda justificava,com a barriga cheia de razão: “Roça que eu memo pranto, eu memo é que  coio, umai!”

Alguém perguntando ou não, retomava o tom de voz prafalar da outra figura do caso. 

É... Tinha também a Maria Soprada, né? Era uma moça pobre, lá da Varginha, muito bonitinha – de cara e de corpo –séria, honesta, trabalhadeira, mas muito brejeirinha e sem mãe, que morreu quando ela era pequititinha ainda. Quando foi ficando mocinha,começaram a aparecer as manchas brancas. Uma jibóia soprou nela.Dizem. Ficou pintada. Feito a cobra. Não perdeu as belezas, não; mas ficou meio enjeitada. A rapaziada respeitava ela, reconhecia que ela era uma moça boa, mas achava meio esquisito namorar com ela. Por causa das pintas. Mas não é que mesmo assim começou um fuxico,enredando que ela já estava até esperando menino?

Ã? As madames da alfabetização? Onde é que entram? Pois é. É aí. Eram umas professoras e umas outras mulheres importantes aqui de Morada. Tinham fundado o AA (Alfabetização deAdultos). Tinham muito orgulho disto e mandavam muito na cidade por causa da importância que tinham, ajudando os mais velhos a aprenderem a ler. Resolveram, então, saber se era divera memo o mexerico da Maria Soprada. Com o povo enredeiro mais elas especulando tanto a coitada, ela acabou contando que tinha mesmo pegado filho. Então garraram a sovelar tanto, pra ela contar quem era o pai, pelo menos a primeira letra do nome dele,que ela, toda encabulada, agachou a cabeça e balançou, fazendo que sim, suspirou fundo e soltou que a premera letra é... “Toco”! 

Comentários

O Lucas sempre se arriscou nas letras.É isso companheiro.Espaços democráticos, socializados como este blog dão chances a bons autores. Muito bom Alexandre,