O cavaleiro das trevas contra o povo


                                                                          
Yuri Pires (*)

O filme Batman: o cavaleiro das trevas ressurge (Christopher Nolan, 2012) confirma duas verdades da sétima arte. A primeira é que as superproduções hollywoodianas são armas de propaganda ideológica do sistema e a segunda é que os “investidores” preocupados com essa luta ideológica não jogam leve: foram gastos US$ 250 milhões nesse filme. Não por acaso, a trilogia (que pretende ser definitiva) Batman aparece ao púbico mundial em meio a uma das maiores crises econômicas da história do capitalismo e, consequentemente, em meio a diversas revoltas e rebeliões populares ao redor do mundo. Rebeliões que contam com um protagonismo da juventude, exatamente o público ao qual se destina, principalmente, a trilogia.

Em recente entrevista, o diretor Christopher Nolan dá a dica: “Não acho que exista uma perspectiva de esquerda ou de direita no filme. Ele faz apenas uma avaliação honesta, uma exploração honesta do mundo em que vivemos – de coisas que nos preocupam”.   O ambiente do filme é uma Gotham pacificada, onde os policiais quase não tem trabalho a fazer. A proeza se deve ao Ato Dent (surpreendentemente parecido com o Ato Patriótico de Bush), lei que permite à polícia prender sem mandado, punir sem provas contundentes, extingue o habeas corpus e institui a incomunicabilidade do preso pelo tempo “necessário”. Essa lei colocou na cadeia todos os criminosos de Gotham, à exceção de alguns ladrões de galinhas. Nesse contexto, Bruce Wayne descansa tranquilo em sua mansão, pois não precisa ser mais o Batman.

Porém uma conspiração acontece em meio a essa calmaria. Um vilão de nome Bane recruta centenas de degredados sociais para algum desígnio obscuro. E não são homens comuns os que ele recruta, pois mesmo ao serem torturados (ou interrogados, segundo linguagem do filme e da vida real da polícia) não falam nada, não entregam o esconderijo e sequer confirmam qualquer acusação. Simplesmente ficam calados. Qualquer semelhança dos “bandidos do mal” em questão com militantes políticos não parece mera coincidência. E quando se percebe a gravidade do caso, temos o ressurgimento do Batman para, mais uma vez, salvar Gotham. Mas não é assim tão fácil.

Bane é, na verdade, herdeiro de Ra’s Al Ghul e líder da Liga das Sombras, organização “terrorista” secreta, que pretende acabar com a hipocrisia e corrupção existentes no mundo, com métodos nada ortodoxos, tais como dizimar toda a população de uma cidade. Num determinado momento, depois de plantar explosivos por toda a cidade e dinamitar todas as pontes que ligam Gotham ao continente, Bane convoca o povo a assumir o poder, ou seja, lidera uma insurreição popular na qual o grupo de vanguarda são os prisioneiros do Ato Dent (claro que todos bandidos perigosíssimos). Aqui, é necessário entender a caracterização que Nolan dá ao vilão em questão.

No segundo filme da série (Batman, o cavaleiro das trevas), o vilão era o Coringa. Personagem de uma crueldade insana desde sua aparição em 1940, ele é a própria antítese do Batman, um vilão sem nenhum escrúpulo. É humanizado, porém, em suas características psicológicas (além de uma impressionante interpretação de Heath Ledger) nesta série, enquanto Bane é o vilão sem qualquer vestígio de humanidade ou compaixão, que não pensa duas vezes em assassinar friamente qualquer de seus colaboradores ou inimigos. 

Os dois representam, no fim das contas, uma crítica frontal e profunda ao sistema corrupto e hipócrita de Gotham City, ou seja, o capitalismo. Cada qual com sua característica, o Coringa é a revolta sem objetivos definidos, a anarquia em sua mais pura essência. A crítica à moral hipócrita burguesa é central nesse personagem desde sempre. Sua ação é sempre impulsiva, nunca arquitetada, a não ser para gerar o caos e a confusão; ao contrário de Bane, que representa a ameaça à própria existência do Estado burguês. Sua ação não é individual, ele não quer a glória para si. Ele é a própria representação da vanguarda organizada dos oprimidos e espoliados, é exatamente Bane que lidera a revolução popular que acontece na trama e institui a ditadura dos pobres e oprimidos. Ele representa o fim das instituições democráticas burguesas, é o poder do povo de Gotham. É sintomático o tratamento diferenciado para os dois personagens. É natural que Hollywood e seus financiadores prefiram e achem mais humano o primeiro ao segundo.

O fato é que Bane lidera uma insurreição popular que expropria os ricos e distribui a riqueza entre a população de Gotham. Mais: institui um tribunal revolucionário para julgar a burguesia.  Prende a polícia de Gotham nos esgotos da cidade e institui uma brigada popular que patrulha as ruas. Qualquer semelhança, novamente, não deve ser mera coincidência. Mas há resistência, e ela vem de Jim Gordon, o chefe policial e reserva moral de Gotham City. Ele começa a recrutar os policiais que não estão presos no esgoto para libertar seus homens e começar a luta contra a tirania de Bane.

No final, Batman forja a própria morte salvando Gotham de uma catastrófica explosão atômica, sacrificando a própria vida pela da cidade. Na verdade ele escapa e se esconde para viver em paz, sob a justificativa de que não precisamos de heróis. Pois sempre existirá mal e sempre existirá bem, e o ideal é o equilíbrio, ou seja, não vale a pena lutar. As últimas palavras de Bruce Wayne (supostamente morto na rebelião popular por ser um dos ricaços) são lidas por um emocionado Jim Gordon e são as últimas palavras do Conto de duas cidades, de Charles Dickens: “Essa é a melhor coisa que faço e que jamais fiz, este é sem dúvida o melhor descanso que terei e que jamais tive”. Exatamente porque os extremos sempre carregam em si alternativas antidemocráticas e totalitárias aos defeitos e erros da democracia instituída.

A última frase do segundo filme da trilogia (Batman, o cavaleiro das trevas) pode resumir todos os três filmes: “A verdade às vezes não é o suficiente. Por vezes as pessoas precisam mais que a verdade, precisam ver sua fé recompensada”. Ou seja, o povo precisa ser protegido de si mesmo, porque sem as instituições democráticas (polícia, bancos, Estado etc.) em que ele tem fé, e as quais escondem a verdade, a tendência é que esse mesmo povo siga líderes cruéis e sanguinariamente igualitaristas e totalitários. Toda essa lição de moral nos é dada por um milionário que faz fortuna com fabricação de armas e especulação financeira.

(*) Yuri Pires é crítico de cinema de A Verdade

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