De Rubens Paiva às Mães de Maio, a luta pela verdade

                                                                          
No próximo dia 12 de março, a Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva passará os trabalhos para a Comissão da Verdade da Democracia Mães de Maio, que visa investigar os crimes cometidos pelo estado democrático


Bruno Pavan

da Redação 

Deputado eleito pelo PTB paulista, Rubens Paiva foi uma das mais importantes e contundentes vozes contra o golpe militar que depôs o então presidente João Goulart em 1964. Ele realizou um discurso de cinco minutos na Rádio Nacional, ainda no dia 1º de Abril, pedindo aos trabalhadores que fossem às ruas defender Jango. 

Levado de sua casa no Rio de Janeiro em janeiro de 1971 por policiais portando metralhadoras, a família de Rubens, a sociedade e a história brasileira ficaram sem saber do paradeiro de seu corpo até fevereiro de 2014 quando a Comissão Nacional da Verdade denunciou que o assassino de Rubens foi o ex-tenente do exército Antonio Fernando Hudges de Carvalho.

Por conta de sua resistência e luta pela democracia, Rubens Paiva foi o nome próprio da Comissão Estadual da Verdade paulista. Sua história, depois de mais de 40 anos, conseguiu ter um final. Cinquenta e um anos depois da queda de Jango o país deveria viver uma situação distinta. 

Porém, mesmo com uma Constituição escrita sob óticas democráticas, eleições regulares para os cargos executivos e legislativos e instituições para defender a sociedade de qualquer intenção autoritária, o Estado ainda é responsável por inúmeras mortes e desaparecimentos sem que haja uma investigação séria. 

Em maio de 2006, sob a justificativa de que a cidade de São Paulo estava sob ataque do Primeiro Comando da Capital (PCC), a Polícia Militar executou 493 jovens, a maioria deles negros, por toda a periferia paulistana. 

Desde então, Débora Silva fundou o grupo Mães de Maio, que será o nome próprio da Comissão da Verdade da Democracia instalada na sexta-feira, 20 de fevereiro, na Assembleia Legislativa de São Paulo. 

“A comissão é uma grande vitória e o caminho para uma democracia verdadeira. Precisamos terminar de fazer a transição pra acabar com o resquício que ainda temos da ditadura militar no país”, explicou Débora. 

O militante da Uneafro, Douglas Belchior, pontua a importância que o grupo tem na formação de novos grupos na luta contra a violência policial por todo o Brasil, mas lamenta que o assunto ainda esteja em voga em 2015.

“Seria bom a gente se preocupar com problemas relacionados a garantia de mais direitos e não ter que se dedicar a questões que são elementares pra um momento que a gente vive em 2015. Ter que voltar a falar da necessidade do direito a viver, pelo direito de vida de pessoas por meio de sua origem racial e social é terrível”, disse.

A intenção da comissão

Planejada para trabalhar nos moldes da Comissão Nacional da Verdade, a Comissão da Verdade da Democracia não terá poder punitivo nem para o Estado nem para os agentes responsáveis pelos crimes. De acordo com o representante da Comissão da Anistia, Dario de Negreiros, a Comissão Mães de Maio nasce para investigar os crimes e a estrutura repressiva do Estado e poderá fazer recomendações aos governos durante o seu trabalho.

Além disso, ele afirma a importância que terá se mais estados pelo Brasil conseguirem formar as suas próprias comissões sobre os abusos do Estado no regi-me democrático. A comissão contará com o auxílio técnico de dois representantes da Comissão da Anistia, mas De Negreiros reforça que os movimentos sociais serão os principais protagonistas nas escolhas das pautas e reivindicações. 

“Temos que ressaltar o papel fundamental e inicial daqueles que nunca deixaram essa bandeira cair por mais difícil que fosse a luta dos familiares. Não é possível pensar em qualquer tipo de comissão da verdade que não aconteça horizontalmente com a participação intensa de todos os movimentos sociais”, esclareceu. 

Ganhar a opinião pública

Pesquisa Datafolha publicada em agosto de 2014 mostra que a segurança é apontada por 25% dos entrevistados como a sua principal preocupação. Junto com isso, o número de políticos eleitos com bandeiras como a redução da maioridade penal e de endurecimento das leis aumentou consideravelmente nas últimas eleições. 

Por outro lado, a Polícia Militar de São Paulo nunca matou tanto quanto em 2014. E isso não significou queda no número de crimes. Entre janeiro e novembro do ano passado, 816 pessoas foram mortas por policiais militares em todo o estado. Na outra ponta, 69 PMs foram mortos estando eles no trabalho (13) ou fora do expediente (56). 

“Em 2014 no estado de SP uma pessoa foi morta pela polícia a cada 9 horas e 45 minutos. Esse massacre consegue ter essa proporção e, ao mesmo, ser invisível. Temos que tirar esse massacre da invisibilidade, conseguir construir uma narrativa para podermos atuar sobre isso”, avalia De Negreiros. 

A opinião de muitos especialistas é que um debate mais avançado que jogue mais luz na questão da violência policial, passa pela imagem que a imprensa faz dos movimentos sociais e sua cobertura das chacinas. De Negreiros afirma que a sociedade tem que criar um discurso que sensibilize a opinião pública da realidade das mortes que são cometidas pelo Estado. “Existe alguém que puxa o gatilho, mais existe alguém que pede o arquivamento do processo, alguém que arquiva o processo, o jornal que apoia e a população que aplaude”, lamentou.  

Impunidade policial 

Em 2014 a imprensa e a opinião pública mundial viram mobilizações nos EUA pela morte de Michael Brown e Eric Garner. Os dois eram negros e foram assassinados por policiais brancos. De acordo com testemunhas, Brown foi alvejado por dois tiros quando estava de joelhos com as mãos pra cima. Já Garner foi sufocado até a morte pelo policial Daniel Pantaleo. Astros do esporte estadunidense como Lebron James usaram camisa com as ultimas palavras de Garner “eu não consigo respirar”. Um júri resolveu não indiciar Panteleo pela sua morte.

Douglas Belchior, da Uneafro, aponta que o que aconteceu com Brown e Garner acontece com centenas de jovens negros em São Paulo por ano e se pergunta: o que falta pra que a gente pare tudo no Brasil e revolva as questões de assassinatos promovidos pela polícia?”

“Tem um monte de coisa que acontece que não é crime aqui. Matar preto e pobre numa sociedade como a nossa não é crime, porque se fosse a gente já teria dado um jeito nisso. É considerado crime só pela mãe que chora, pela família e amigos mas não para quem está nos espaços de poder”, disse. 

Débora Silva aponta que a criação da comissão já pode ser um alerta para grande parte da população sobre a violência e o sofrimento que as mães de todos os jovens mortos passam. “As mães são as vítimas diretas desse Estado que mata nossos filhos, nos mutila. E não só mata nossos filhos, ele arranca o nosso útero, a nossa trompa e o nosso ovário nos mutilando como mulher fértil. Nós não podemos aceitar que pagamos com nossos impostos a bala que matou os nossos filhos”, analisou.

O ontem e o hoje.

A falta de punição para os responsáveis pelos crimes da ditadura no Brasil é sempre apontada como um dos principais responsáveis pela postura repressiva do Estado e pela estrutura militar da segurança pública. 

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade, publicado no final de 2014, orienta que se transforme as polícias em corporações mais voltadas aos direitos humanos e que as estruturas militarizadas são incompatíveis com o exercício da segurança pública no Estado.  

“Não foi por um capricho histórico e acadêmico que os Estados repararam os crimes do seu passado autoritário, foi porque esses crimes ressoam no presente. O passado não passou, principalmente em algumas regiões da cidade. A gente sabe que a violência não aparece aleatoriamente, tem o antes da ponte e o depois da ponte. A dignidade no Brasil tem CEP”, criticou De Negreiros. 

Para o representante da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, Rafael Schincariol, as comissões que foram criadas para lidar com a violência na ditadura precisam ampliar o trabalho. Essas comissões de anistia estão tendo hoje que rever esse trabalho, rever a extensão de seus poderes, rever a sua pauta no sentido de entender o legado em que foram criadas. Para que não se repita um autoritarismo e uma violência de Estado, essas comissões tem que ampliar a sua pauta política. (Com o Brasil de Fato)

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