Onze de setembro

                                                                                  
Correia da Fonseca

A data de 11 de Setembro só recorda aos grandes media os ainda muito inexplicados acontecimentos de Nova Iorque em 2001. Não se lembram do golpe fascista no Chile em 1973. A nossa televisão nunca nos disse que o número de assassínios cometidos por Pinochet & Associados USA foi superior ao enorme número de vítimas nas Twin Towers de Nova Iorque.

No passado sábado, a RTP2 transmitiu um documentário acerca da memória que a família de Salvador Allende guarda do presidente chileno. Foi um conjunto de depoimentos de carácter familiar, pouco tocados por implicações de ordem política e até pela tragédia acontecida há mais de quarenta anos em Santiago. 

Não foi, sequer, um trabalho tendente a exaltar a figura de Allende em qualquer plano: pelo contrário, uma ou outra alusão a aspectos da sua vida pessoal mais tendiam a uma desmistificação de pequeno grau. Porém, de quanto ali se foi vendo e ouvindo desprendia-se um hálito de ternura pelo presidente assassinado e uma certificação até não intencional da sua bondade e do imperativo sentido de justiça que o animava. 

Sabemos que, no quadro do nosso quotidiano, a memória de Salvador Allende se vai esfumando: talvez ainda nos lembremos dele quando a TV nos fala do Chile atual, o que não acontece muito; talvez nos indignemos quando, a 11 de Setembro de cada ano, a televisão e outros media nos recordam a tragédia ocorrida a 11 de Setembro de 2001 em Nova Iorque e omitem ou drasticamente minimizam o crime cometido a 11 de Setembro de 73 em Santiago, aliás logo tragicamente ampliado para a dimensão de todo o território chileno. 

Por isso, cabe a cada um de nós não esquecer Salvador Allende nem pelo menos alguns dos traços que marcaram a sua presença no Chile e que afinal se alargou um pouco a todo o planeta. Porque, embora esmagada, a sua tentativa para transformar o Chile numa pátria justa é verdadeiramente um património da humanidade, e a agressão norte-americana (embora praticada por militares chilenos) interessa ao mundo inteiro como lição de intensidade e clareza extremas acerca do verdadeiro rosto da política externa dos Estados Unidos.

Sem limites

Não sabemos, ou sabemos mal, o que na generalidade dos países americanos de língua castelhana ou portuguesa se pensa hoje sobre Salvador Allende e o modo como ele tentou saciar a sua fome e sede de justiça: sabemos que em diversos lugares da América Central ou do Sul vão decorrendo tentativas de construção de sociedades mais justas, mas do que aí vai acontecendo pouco ou nada nos é dito na generalidade da comunicação social a que estamos entregues. 

Falam-nos, é certo, de Cuba e da Venezuela, mas bem sabemos que para nos falarem de ambos os países é utilizada predominantemente uma espécie de cartilha da desinformação e da calúnia, como que alternativa «benigna» à brutalidade do método Pinochet que aliás produziu algum desgaste na imagem dos Estados Unidos, efeito que pouco importará aos de Washington mas ainda assim pode ser tido em conta.

 Não será talvez excessivo admitir que Salvador Allende, o homem bom e o médico generoso que nos foi recordado pelo documentário agora transmitido pela «2», foi demasiado ingénuo, ou apenas optimista, ao perscrutar como poderiam reagir os poderes fáticos dos Estados Unidos à opção do povo chileno por uma sociedade diferente e melhor. 

Porém não o censuremos excessivamente por isso: é uma tendência generalizada entre gente honesta e justa a de supor que os criminosos não o são tanto quando depois demonstrarão ser, a de crer que até para a dimensão do crime há limites quase naturais. O caso de Pinochet no Chile, aliás como décadas antes o de Hitler na Alemanha, veio provar que, quando desencadeada ao serviço de interesses sujos, a bestialidade pode não ter limites. 

A nossa simpática televisão nunca nos disse que o número de assassínios cometidos por Pinochet & Associados USA foi superior ao enorme número de vítimas nas Twin Towers de Nova Iorque, vinte e oito anos exactos mais tarde, no 11 de Setembro que, esse sim, os media ocidentais recordam em cada ano. Indirectamente, tudo isso e porventura muito mais nos foi recordado por este documentário sereno, pacífico, quase apenas familiar, acerca de um homem corajoso. Ele próprio também património da humanidade.

Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2198, 14.01.2016. (Com o diario.info)

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