Brasil derrete em meio a dois clãs em disputa pelo aparelho de Estado’

                                                                 
                                                                     

Valéria Nader e Gabriel Brito (*)

Lula virou ministro e a reação conservadora não tardou a voltar às ruas de várias cidades brasileiras. Dias de muito frenesi são líquidos e certos e não sabemos até onde vai a polarização que registra cada vez mais cenas de ódio Brasil afora. Para falar um pouco desse primeiro impacto da nomeação de Lula, o Correio conversou com o cientista político Jose Correia Leite, que fez questão de desqualificar os dois lados em contenda.

“Obviamente, tudo isso ocorreu sob o impacto da Lava Jato, mas a presidente não foi capaz de sinalizar uma saída progressiva da crise econômica e foi andando de capitulação em capitulação - aos mercados, aos partidos de direita, até chegar numa situação onde não fazia tanta diferença ter ela, Temer ou mesmo Aécio na presidência, do ponto de vista de um programa”.

Na conversa, o entrevistado é categórico em afirmar que questões éticas são irrelevantes quanto à nomeação de Lula para a Casa Civil, diante do modus operandi de todos os setores dominantes da política nacional. Ademais, reitera que no fim das contas está em disputa a chave do cofre entre duas facções que não têm nenhum programa a oferecer como saída para a crise, fenômeno verificado em diversos países ao mesmo tempo.

“Se falarmos de ética não existe política no Brasil, exceto por no máximo 20 deputados. Não é o parâmetro relevante na situação atual em que se encontram as disputas entre o petismo e a direita. Todo mundo está na mesma lama, até os últimos fios de cabelo. Os partidos recebem parcelas de poder a fim de azeitar carreiras políticas e enriquecimentos pessoais. É assim em relação ao PMDB, ao malufismo e não difere nada do que o tucanato faz. Esse ponto unifica situação e oposição conservadora”.

A entrevista completa pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como você recebeu o impacto da nomeação de Lula para a Casa Civil? Seria o fim, na prática, do mandato de Dilma?

José Correia Leite: Em primeiro lugar, não me sinto impactado. Acho esse um movimento bastante lógico da política. O dado básico é que na semana passada o PMDB sinalizou que estava desembarcando do governo, quando os caciques deles se reuniram com os do PSDB pra preparar uma saída, pouco antes da convenção do PMDB.

A tentativa de aceleração do impeachment foi feita no domingo, pela força das massivas manifestações. Portanto, a Dilma não tinha alternativa e jogou a última cartada possível a ela e ao PT. Até então, havia certa independência entre Dilma e Lula/PT, por conta de cálculos eleitorais. Mas à medida que Lula também é arrastado pela Lava Jato, passa a ter interesse em se envolver, por conta do foro privilegiado e do julgamento pelo STF.

Assim, a indicação do Lula pra Casa Civil no lugar de Jacques Wagner surge nesse contexto. Não penso que seja uma medida desesperada, mas lógica, do ponto de vista de dar uma guinada na política. É evidente que sinaliza a entrega do governo de Dilma para Lula. Mas ela nem tinha condições de governar, francamente. E chegamos a tal ponto em grande parte por conta de decisões tomadas por ela.

Obviamente que tudo isso ocorreu sob o impacto da Lava Jato, mas a presidente não foi capaz de sinalizar uma saída progressiva da crise econômica e foi andando de capitulação em capitulação - aos mercados, aos partidos de direita, até chegar numa situação onde não fazia tanta diferença ter ela, Temer ou mesmo Aécio na presidência, do ponto de vista de um programa.

Por fim, o PT tinha a cartada do Lula, que foi jogada no último momento possível. Vamos ver se funcionará.

Correio da Cidadania Acredita na capacidade do ex-presidente de reaglutinar grupos de poder político e econômico em favor de uma mínima estabilidade até 2018, destravando em parte a crise econômica?

José Correia Leite: Antes de aceitar a indicação, o Lula se reuniu com o Renan Calheiros, um elemento importante. Isso sinaliza que ele tem pelo menos um voto de confiança do PMDB, para no mínimo adiar o que “já está em andamento”, como disse FHC em relação ao impeachment. É verdade que está em andamento, mas Lula negociou com o Renan como pré-condição pra aceitar o cargo.

O segundo aspecto é que ele joga com aquilo que o Valor chamou de plano de reanimação, centrado em reativar a construção civil, porque seria uma maneira rápida de recuperar o emprego. Faz sentido. De outro lado, teria compromisso de não mexer em pilares do mercado, como a taxa de juros e a política de austeridade em geral. Ele não tem uma margem de manobra muito grande, mas tem alguma, de modo que negociou no Senado.

Ele também tem clareza da necessidade de um plano econômico. Articulação política ele faz com sobras, mas na economia é mais duvidoso. E também chega com proposta de mudança ministerial, mexendo mais amplamente no governo. Não vai deixar tudo igual. Está trazendo personagens antigos para postos chave, a exemplo do Franklin Martins na Comunicação Social; de Henrique Meirelles no BC, ao passo que Dilma é mais alinhada ao Tombini; do Celso Amorim, que voltaria ao Ministério das Relações Exteriores; e do Ciro Gomes (PDT), que ocuparia o lugar do Mercadante na pasta da Educação. São as especulações que mostram que a equipe petista não chegaria simplesmente pra ocupar o espaço pela inércia.

Trata-se de articulação política, plano econômico provavelmente limitado e mudança na equipe de governo, com gente mais experiente e confiável aos olhos de Lula. Não se resolvem, porém, obviamente, os problemas estruturais, pois a crise tem forte dimensão internacional, como a queda de preços das commodities e perspectivas de estagnação da economia mundial.

A crise tem um fator particular de agravamento, que foi a completa incapacidade da Dilma em lidar com a montagem do seu segundo governo, ao qual ela gostaria de dar uma cara mais própria. Isso se revelou um desastre, a começar pela perda imediata de legitimidade, no dia seguinte das eleições, ao polarizar com o Aécio à esquerda e aplicar o programa do capital internacional. Fato que, aliado ao crescimento de Cunha, mostrou uma articulação desastrosa da parte da Dilma.

Com Lula, desse ponto de vista, temos elementos novos. Não é capaz de reverter a recessão econômica, mas pode ganhar algum voto de confiança momentâneo, a fim de iniciar um novo recomeço do governo. Agora não mais governo Dilma, mas governo Lula-Dilma.

Correio da Cidadania Como acredita que essa novidade vá impactar tanto as estratégias da oposição quanto o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff?

José Correia Leite: Ninguém hoje tem condições de avaliar o impacto geral. A curto prazo toda a inércia se manterá. Mas a médio prazo, se houver recomposição com o PMDB, o impeachment morre, por mais que as outras forças políticas não queiram. O impeachment tem um nome: Renan. Ou o PMDB no Senado, se preferir. Se o Lula fechar com o PMDB no Senado, podem fazer guerra civil que não tem impeachment.

Tal novidade chegou muito tarde, mas pode reverter alguma coisa. Não significa recuperar legitimidade e dinamismo do governo, mas bloquear a queda do governo, que era o objetivo.

Outro ponto é que a Lava Jato continua em curso e é imprevisível. Virão mais delações, agora de políticos. Não temos ideia do que pode vir. Avalio que a delação do Delcídio não é muito forte, embora tenha jogado lama pra todo lado, passando por Temer, Renan, Aécio etc. Mas vamos ver as provas, porque, se for palavra contra palavra, não se sustenta. Ou seja, temos de evitar o impressionismo.

Ou seja, a Lava Jato pode produzir muita coisa, mas talvez faça apenas barulho. Acredito, de todo modo, que vá dar em algo, como começa a ser  visto no que diz respeito ao setor elétrico e Belo Monte, onde rolou muito dinheiro. Se ficar claro que entrou muito dinheiro associado ao setor elétrico na campanha de reeleição, novas brechas jurídicas podem ser abertas para a retomada do impeachment.

Outro aspecto é a massa que foi à Paulista domingo, expressão de um fenômeno novo. Temos visto pelo mundo a formação de movimentos de extrema–direita, autoritários, que colocam em questão a democracia em favor de saídas autoritárias. Até agora não conseguiram ameaçar o sistema na Europa e EUA, apesar de forçarem uma guinada à direita. O mesmo se vê no Brasil, num processo fora do controle dos partidos neoliberais tradicionais. Como o demonstrou a vaia a Aécio, Alckmin e Marta na Paulista. Assim como também o demonstra a pesquisa que indica 6% de intenções de voto em Bolsonaro.

A manifestação de domingo mostrou que há uma massa conservadora despolitizada. Depois de junho de 2013, apareceu um setor que passou a compreender que botar milhões de pessoas na rua pressiona o poder constituído, uma lição aprendida também por setores da direita. Tais setores não representam junho, mas são parte da expressão política desencadeada por esse momento. Faço distinção clara entre junho e o que vimos no último domingo. Mas ambos são manifestações relativamente despolitizadas, com algumas bandeiras muito chamativas e que trazem às ruas milhões de pessoas.

No caso de domingo, os manifestos foram encampados por gente que tem ódio profundo pelo PT, o lulismo, Dilma, e quer fortalecer a tese do impeachment. Não é o mais decisivo, mas ajuda a mover a balança política do país para a direita. Trata-se de um pessoal sem sintonia com partidos, seu ideal é o de ter um justiceiro. No momento, o Moro, amanhã pode ser um Bolsonaro, um delegado de polícia ou radialista qualquer. É um fenômeno perigoso e tem autonomia em relação a recentes movimentações dentro do sistema político. Estão mais à margem.

E a mídia corporativa tem responsabilidade, porque criou e alimenta, mesmo de forma caricatural, esse processo. Alguns mais, como a Veja, e outros menos, como a Globo. Todos alimentam a visão política de turba, de linchadores. E nisso os petistas contribuem, com sua visão maniqueísta do cenário, conspirativa, basicamente só falam de golpe, como se questionar a Dilma fosse golpe, quando não é.

Correio da Cidadania: Do ponto de vista ético e pensando nos desdobramentos da Operação Lava Jato, como você avalia Lula na Casa Civil?

JCL: Se falarmos de ética não existe política no Brasil, exceto por no máximo 20 deputados. Não é o parâmetro relevante na situação atual em que se encontram as disputas entre o petismo e a direita. Todo mundo está na mesma lama, até os últimos fios de cabelo. São partes do sistema político corrompido, onde se compra a governabilidade, a exemplo do que fez o PT com parte dos partidos venais, cedendo parcelas da renda do Estado e fundos públicos pra isso. Significa a apropriação privada de fundos estatais, o famoso loteamento de cargos. Os partidos recebem parcelas de poder a fim de azeitar carreiras políticas e enriquecimentos pessoais. É assim em relação ao PMDB, ao malufismo e não difere nada do que o tucanato faz. Esse ponto unifica situação e oposição conservadora.

Não faz sentido, diante da disputa política que está estabelecida no Brasil, perguntar se o Lula, por ser acusado pelo sítio, pelo apartamento no Guarujá, o pedalinho, não teria condições de assumir o cargo de ministro. O dado objetivo é que ele estava sendo enredado na Lava Jato e entrando na mira do Sérgio Moro, com ou sem razão. Parte dos problemas que se atribuem a Lula vemos por igual se procurarmos no FHC. Não tem diferença, inclusive em relação a presidentes diversos mundo afora. Não é o ponto que define o jogo político brasileiro.

Tal jogo está sendo jogado por dois grandes clãs que disputam o poder. Esses clãs trabalham e alimentam, ou se beneficiam, de processos que correm por fora de suas disputas diretas, a exemplo das manifestações de domingo. Alckmin e Aécio foram vaiados, mas é evidente que seu partido se beneficia mais delas. A questão é que os dois clãs disputam o aparelho de Estado brasileiro.

O desfecho pode ser desfavorável a toda a esquerda, inclusive a que está fora do processo e já rompeu com o petismo há uma década. Mas é preciso um novo horizonte político pra esquerda brasileira se recompor da terra arrasada que é o legado do lulismo e do petismo. A esquerda brasileira precisa retomar um projeto de democracia radical no país. Retomar demandas históricas sobre o racismo, a soberania nacional, o direito à terra, a democratização da mídia... Precisamos de um horizonte de “construção nacional” – metáfora que descreve razoavelmente bem a necessidade – e outra institucionalidade.

O regime político instituído pela Constituição Federal de 1988 é oligárquico. Não é democracia. Não é a oligarquia da República Velha, que proibia 98% da população de votar, é um regime mais hábil, que trabalha a representação, mas a distorce enormemente, cria uma série de mecanismos de contrapeso pra esvaziar qualquer processo de mudança social efetiva e loteia o Estado entre dezenas de grupos de interesses particulares, que se reproduzem basicamente sobre o uso dos recursos públicos.

Correio da Cidadania: Apesar de toda essa complexidade, você já enxerga o ex-presidente candidato no pleito de 2018?

JCL: A eleição de 2018 está muito longe. Estamos completando pouco mais de um ano do segundo governo Dilma e já aconteceu tudo isso. Não sabemos se a entrada do Lula vai estancar o processo de impeachment, não sabemos qual será a repercussão da Lava Jato sobre o Lula, não sabemos se, em caso de queda do governo, Lula cairia direto nas garras do Sergio Moro, que pode fazer dele um caso exemplar, transformando o pedalinho no maior escândalo da República.

Existe uma quantidade gigantesca de elementos imprevisíveis, que tornam a eleição de 2018 algo muito distante. A questão a colocar é se o governo dura até o fim do ano e evita novas eleições presidenciais, em função de um possível impeachment da chapa Dilma-Temer.

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(*) Valéria Nader é economista e editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

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(Com o Correio da Cidadania)

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