Uma espécie de radiografia do movimento estudantil

                                                                               
                                                          Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Brasil - EPSJV 

André Antunes 

Num contexto de retirada de direitos e de crise de representatividade no movimento estudantil, jovens criam novas formas de organização e mobilização política.

No momento em que esta reportagem está sendo escrita, Wendel, um estudante secundarista do colégio Francisco Maria Dantas, na periferia de Goiânia, está saindo da cadeia, onde ficou durante cinco dias. O adolescente foi um dos 16 manifestantes – entre eles três menores de idade – detidos durante uma manifestação contra o aumento da tarifa do transporte coletivo na capital goiana no dia 17 de fevereiro. 

O jovem foi o último manifestante preso a ser liberado. O motivo? Wendel foi acusado, juntamente com outros dois manifestantes adultos, de lesão corporal grave a um policial não fardado que atuava na repressão aos manifestantes. Gustavo Sabino, advogado da comissão de Direitos Humanos da seção de Goiás da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-GO), que acompanhou o caso, criticou, no Facebook, a atuação da polícia e do aparato judicial, tachando de “surreal” e “kafkiano” o cenário em que se deu a prisão do jovem. 

Segundo ele, os argumentos da defesa foram “solenemente ignorados”: Wendel estava tentando ajudar uma manifestante, também adolescente, a se desvencilhar do policial que a agredia depois de já tê-la derrubado e imobilizado. Além disso, para Sabino, o laudo médico do policial não apresentou provas conclusivas da gravidade da lesão sofrida por ele. E pior: a justificativa dada pelo promotor responsável pelo caso para manter o jovem menor de idade preso – sob protestos do advogado de defesa, para quem aquela seria uma prisão ilegal, uma vez que não cumpria os requisitos previstos na lei para justificar a internação compulsória de um menor de idade – foi de que Wendel deveria “servir de exemplo para todos que se manifestassem dali por diante”, pois “não seria justo desguarnecer a população em geral com a alocação de grande parte do efetivo da polícia no acompanhamento das manifestações cada vez mais frequentes” em Goiânia, dada a “situação de colapso” da segurança pública no estado. 

“Esse enredo parece tratar-se de mais uma tentativa orquestrada pelo Governo de Goiás e instrumentalizada pelo seu braço forte, a Polícia Militar, de criminalizar os movimentos sociais críticos e combativos aos desmandos da administração pública em nosso estado”, desabafou Sabino. 

A prisão de Wendel fez dele um símbolo de uma luta que vem se desenrolando desde o ano passado, mobilizando milhares de estudantes de várias partes do Brasil. Num movimento que tem sido chamado de “Primavera Secundarista”, jovens de estados como São Paulo, Goiás, Espírito Santo e Minas Gerais vêm se organizando para fazer oposição a medidas que têm como pano de fundo a luta pela educação pública e melhores condições de vida nos centros urbanos. 

O fenômeno das ocupações acontece em um contexto de acirramento da retirada de direitos sociais em meio à crise econômica e às medidas de ajuste fiscal, que atinge em cheio os mais jovens. Para muitos deles, as instâncias de representação políticas tradicionais, incluindo as entidades do próprio movimento estudantil, vistas como reféns da institucionalidade, não são mais capazes de dar respostas frente a esse quadro. 

Desafiando o senso comum que vê os jovens como ‘individualistas’ e ‘despolitizados’, os estudantes vêm dando uma lição de organização e mobilização coletiva. Em troca, têm aprendido na prática que o Estado brasileiro não faz distinção de idade na hora de defender seus interesses.


O caso de Wendel foi apenas o mais recente de uma sucessão de episódios de violência contra estudantes e professores de Goiás protagonizados pelo aparato policial do estado. A manifestação na qual o secundarista foi preso se deu no mesmo dia de uma audiência de custódia que determinou a liberação de 31 pessoas, entre elas 13 menores, que haviam sido detidas durante a desocupação do prédio da Secretaria de Estado da Educação, Cultura e Esporte (Seduce), em uma ação que contou com a participação de efetivos da Polícia Militar, Batalhão de Choque e até do Grupamento Aéreo da Polícia Militar (Graer). 

O prédio foi ocupado no dia 15 de fevereiro. A ação foi um protesto dos estudantes por terem sido impedidos de entrar no local onde ocorria a abertura dos envelopes com as propostas enviadas pelas Organizações Sociais (OSs) que participaram da licitação para gerir 30% das escolas estaduais de Goiás, de acordo com a determinação de um decreto (8.469) assinado pelo governador do estado, Marconi Perillo, em outubro do ano passado. 

Vários dos estudantes que ocupavam a Seduce já haviam sido retirados de escolas estaduais que vinham sendo ocupadas desde dezembro em protesto contra a proposta, num movimento que, em seu auge, totalizou 29 ocupações em cinco cidades do estado. A Justiça goiana havia determinado, em janeiro, a reintegração de posse de três delas: José Carlos de Almeida, Lyceu e Robinho Martins Azevedo. Atualmente apenas uma escola permanece ocupada. Para os secundaristas, a desmobilização foi resultado da repressão da polícia, que, contam, desocupou à força, sem mandados de reintegração de posse, muitas das escolas ocupadas. 

Segundo o estudante goiano Lucas Walker, 17 anos, foi isso que aconteceu no Colégio Estadual Ismael Silva de Jesus, em Goiânia, que estava ocupado desde o dia 16 de dezembro. No dia 25 de janeiro, relata, os estudantes foram retirados à base de socos e pontapés por 15 policiais fardados. “Acordei com três me agredindo, chutando minha cabeça, me xingando. Foram arrastando todo mundo pra fora, com arma de fogo em punho. 

Mandaram ficar de cabeça baixa dizendo que iam socar quem olhasse pra cara ou pra identificação deles”, denuncia Lucas. Para surpresa dele, nem as meninas que participavam da ocupação foram poupadas das agressões. “Entraram batendo em todo mundo, não teve nenhum diálogo. Quando eu perguntei para um policial se eles tinham mandado de reintegração de posse ele me mandou calar a boca e ameaçou me socar”, relata.   

Para tornar a situação em Goiás ainda mais preocupante, a mesma PM que vem reprimindo as mobilizações de estudantes está, desde 2014, assumindo a gestão de diversas escolas no estado: atualmente são 26 as unidades que foram militarizadas a mando do governo Perillo.  Rebeca Peres, estudante de 17 anos que participou da ocupação do Colégio Estadual Lyceu de Goiânia, explica por que o processo de militarização preocupa os estudantes do estado. “A gente sabe de casos de professores que estão sofrendo ameaça dentro da escola militar. Tem censura com relação ao conteúdo pedagógico, principalmente na hora de falar da ditadura”, critica. Segundo Rebeca, os alunos são obrigados a bater continência e não podem entrar com piercings e nem com cabelos e unhas pintadas. 

“A regra é clara: ou você se adéqua ao sistema ou não se encaixa na escola. Isso é inadmissível numa escola pública”, sustenta. A cobrança de taxas de mensali-dade e a exigência do uso de fardas são outro problema, principalmente para os alunos de menor renda. “Tem uma escola chamada  Waldemar Mundim, que foi militarizada no ano passado. É uma escola de periferia. O que os estudantes de lá estão dizendo é que houve uma evasão enorme porque a farda custa R$ 300. Em uma escola onde ninguém tem dinheiro nem para levar lanche, as pessoas não têm como pagar”, denuncia. 

Rebeca também não poupa críticas à proposta de terceirização da gestão por meio de OSs, que, aliada ao processo de militarização, serviu de estopim para o início das ocupações em Goiás. “Os professores não vão ser concursados, vão ganhar menos e vão ter instabilidade. Sem contar que facilita o nepotismo, a perseguição dos professores e a corrupção, já que as OSs não precisam fazer licitação pra nada, podem fazer o que quiserem com o dinheiro da escola”, enumera. 

A jovem afirma que, a partir das ocupações, os secundaristas despertaram para a necessidade de se articular para continuar pressionando pela revogação do decreto das OSs. O governo estadual, no entanto, não dá sinais de que deve ceder, mesmo após o recebimento, pela secretaria estadual de Educação, Cultura e Esportes, Raquel Teixeira, de uma  assinada pelo Ministério Público estadual, Ministério Público de Contas de Goiás e o Ministério Público Federal pedindo o adiamento do edital de chamamento para escolha das OSs.

Reorganização silenciosa em São Paulo

“Histórico”. O uso do adjetivo para descrever a mobilização dos secundaristas de São Paulo no final do ano passado não é um exagero. Protagonizado por jovens entre 15 e 17 anos, o movimento, em seu ápice, se espalhou por 213 escolas da rede estadual paulista e obteve sua maior vitória no dia 5 de dezembro, quando o governador Geraldo Alckmin suspendeu a reorganização escolar no estado, que previa o fechamento de 93 escolas, afetando mais de 300 mil alunos. Herman Voorwald, então secretário de Educação de São Paulo, pediu exoneração. O índice de aprovação do governo Alckmin caiu para seu nível mais baixo, 28%, segundo o Datafolha. Isso sem falar no impacto cultural: vários artistas, como Criolo e Maria Gadú, fizeram apresentações em escolas ocupadas. Chico Buarque, Arnaldo Antunes e Zélia Duncan, entre outros artistas, gravaram uma música em homenagem à mobilização, que  ainda deve render um documentário e pelo menos um livro.

Mas tudo isso não foi suficiente para fazer com que a proposta fosse abandonada, segundo o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp). Em levantamento divulgado no início do ano letivo de 2016, no dia 15 de fevereiro, o sindicato revelou que o governo do estado fechou 1.112 salas de aula em várias regiões de São Paulo. O sindicato acusa o governo de realizar uma “reorganização silenciosa”. Reportagem do jornal Folha de S. Paulo (18/02) denunciou os transtornos causados pelas mudanças, que incluíram, além do fechamento das salas, alterações nos horários das escolas e a transferência de alunos para perío-dos e colégios diferentes. Tudo feito sem consulta prévia. A Secretaria Estadual de Educação, por sua vez, afirmou que o fechamento de salas decorre de uma diminuição no número de matrículas em 2016. Segundo o órgão, foram 143 mil matrículas a menos em relação ao ano passado. 

Para Jonas Medeiros, doutorando da Faculdade de Educação da Unicamp, que está escrevendo um livro sobre as ocupações, a nova conjuntura traz desafios para a continuidade da mobilização dos estudantes. Ele alerta que a vitória do movimento foi apenas parcial. “O governo Alckmin errou ao tentar implementar a reorganização como um grande pacote de uma vez só, mas o projeto permanece. O governo aprendeu que a maneira mais efetiva é tocar a reorganização de forma subterrânea”, alerta.

                                                                                    
                                                          Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil


Estudantes reivindicam maior participação

No entanto, ainda que seja necessário ter claro que as mobilizações não foram suficientes para acabar de vez com a ameaça representada pelas OSs e militarização em Goiás e pela reorganização escolar em São Paulo, é preciso ressaltar a importância histórica da mobilização, segundo Jonas. “O grande saldo é o ressurgimento do movimento popular de educação. Na década de 1980 ele era formado por pais e mães, com apoio das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica, e foi muito atuante na luta pela abertura de novas creches e escolas, mas ele se desmobilizou nos últimos 20 anos. Hoje o que as ocupações revelam é que tem uma quantidade enorme de alunos dispostos a lutar pela escola pública”, avalia. 

No cerne desta luta está a reivindicação dos estudantes por uma maior participação em todos os processos que envolvem sua escola, desde a escolha do diretor até o conteúdo curricular e pedagógico. Para muitos estudantes que participaram das ocupações, a mobilização foi um momento de discutir coletivamente propostas nesse sentido. A principal delas é a organização de grêmios livres. Nas entrevistas que realizou durante as ocupações, Jonas ouviu dos estudantes inúmeras reclamações de direções que tentam esvaziar esse espaço de representação política. 

Em algumas escolas, são os diretores quem determinam os alunos que vão dirigir os grêmios. É o caso da Escola Estadual Diadema, na região metropolitana de São Paulo, primeira do estado a ser ocupada, no dia 9 de novembro. “O nosso grêmio nem participou da ocupação. É totalmente ‘pelego’”, critica Fernanda Freitas, 17 anos, aluna e ex-ocupante do colégio. Em outras unidades, como a Escola Estadual Plínio Negrão, no bairro paulistano de Santo Amaro, esses espaços sequer existiam antes das ocupações. 

“Uma das condições pra gente desocupar foi a criação de um grêmio na escola”, revela Gislane Gomes, 17 anos. Suzanne Freire, de 17 anos, que até fevereiro desse ano compôs a direção do grêmio da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) no Rio de Janeiro, considera que esse espaço foi fundamental para sua formação. “Fazer parte do grêmio é muito bom, mas é desesperador, principalmente quando você se depara com vários problemas para resolver. Mas foi um crescimento político enorme, você aprende a lidar com os problemas, aprende a pensar sobre como resolver os problemas, quando, com quem. Ajudou muito na minha organização e foi um crescimento muito grande”, avalia.

Desconfiança nos espaços institucionais

Os grêmios, porém, muitas vezes são o máximo de institucionalidade desejada pelos estudantes que participaram das ocupações. Na medida em que se sobe na hierarquia de representatividade do movimento estudantil, do grêmio para centros e diretórios acadêmicos e, daí, para as entidades de representação nos níveis municipal, estadual e nacional, cresce o grau de desconfiança dos estudantes com relação à capacidade de representação que essas instituições proporcionam. 

Nas ocupações, era comum o receio de que elas tentassem tomar à frente do movimento e negociar em paralelo com o governo. “Nós achamos que eles realmente não nos representam pela questão da ‘pelegagem’, que é incrivelmente grande. Nas plenárias a gente colocava a todo momento que não podia ter líderes, ninguém podia nos representar falando por um todo. E o que a gente via é que essas entidades não davam muita importância pra isso, algumas vezes elas até se colocavam como líderes do movimento. E a gente ficou irritado com isso”, lembra Fernanda. 

Segundo ela, os estudantes se articularam em um coletivo, o Comando das Escolas Ocupadas, como forma de impedir que as entidades representativas falassem em nome do movimento. Em Goiás, as críticas são semelhantes. “Nunca tivemos apoio de ninguém desse pessoal. Mas assim que as escolas foram ocupadas eles apareceram levantando bandeiras. Esse é o problema que a gente vê: não dormem na escola, não ajudam e ao mesmo tempo querem levantar suas bandeiras”, reclama Rebeca.

A presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Camila Lanes, discorda das críticas. Segundo ela, a entidade esteve presente em várias ocupações e pautou o tema no seu congresso, que aconteceu uma semana após o início da mobilização. “A Ubes reflete a opinião do movimento estudantil secundarista. Nós nunca nos propusemos a protagonizar ou nos colocar acima dos estudantes, porque não temos esse papel. Nosso papel é construir coletivamente em todos os espaços do movimento estudantil”, diz Camila. 

Como exemplo de uma bandeira defendida pela entidade que vai ao encontro de algumas das propostas discutidas pelos estudantes durante as ocupações, ela cita o debate sobre a Base Nacional Curricular Comum, capitaneado pelo Ministério da Educação (MEC) desde o final do ano passado. Segundo ela, esse é o principal item da pauta da Ubes atualmente. “Há muito tempo a gente tenta discutir a renovação do ensino básico, e não tem conseguido. Para além dos problemas com relação à gestão democrática das escolas, as ocupações demonstraram o quanto os estudantes como um todo estão dispostos a discutir uma nova escola, sem machismo, racismo, LGBTfobia, transfobia, qualquer opressão que possa dificultar o desenvolvimento crítico. O governo federal está tentando se esforçar pra fazer esse debate agora com a base curricular”, acredita Camila. 

A Base Nacional Curricular Comum, documento previsto pelo Plano Nacional de Educação (PNE), deve fixar conteúdos mínimos obrigatórios em cada etapa da educação básica. No final do ano passado, o MEC divulgou uma versão preliminar do documento, que foi posto em consulta pública na internet. Entidades como o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), entretanto, expressaram preocupação em relação às propostas de reformulação contidas no documento preliminar.  

Em janeiro, durante o congresso do Andes, a entidade prometeu encaminhar ações políticas e jurídicas para barrar a proposta de reforma curricular da educação básica materializada no debate da Base Nacional Curricular Comum. A entidade criticou o “caráter tecnicista e pragmático” do documento que apresentaria uma concepção de educação voltada para os interesses imediatos do mercado de trabalho “em detrimento aos interesses da formação humana da classe trabalhadora”. Para seus críticos, a BNCC vem materializar em política pública as concepções de educação que vem sendo defendidas por entidades empresariais, que têm tido cada vez mais influência sobre o governo, como a Fundação Lehmann e o Movimento Todos pela Educação. 

Camila Lanes sinaliza que há, na Ubes, uma preocupação com o resultado da consulta pública sobre o documento da BNCC, mas ressalta que não tem opinião formada sobre as questões levantadas pelos setores críticos à proposta. A presidente da entidade, que desde a década de 1990 é presidida pela União da Juventude Socialista (UJS), corrente ligada ao PCdoB, ressalta que a Ubes não reflete a opinião de nenhum partido e que tem autonomia e independência para avaliar as propostas que saem do governo. 

Mas essa autonomia é questionada por setores do movimento estudantil e da academia, que acusam a Ubes, assim como a UNE, de, ao longo dos últimos anos, ter se tornado cada vez mais um canal de legitimação, e não de discussão, das políticas voltadas para a educação. Para Luiz Antonio Groppo, professor da Universidade Federal de Alfenas (Unifal), as entidades de representação nacional apresentam dificuldades de construir pautas que articulem os problemas específicos de suas bases sociais com as políticas mais gerais, que são determinantes para muitas dos problemas enfrentados pela juventude no Brasil. 

Groppo entende que essas entidades acabaram se afastando de um trabalho de base junto aos estudantes, contribuindo para criar um vácuo que no caso dos secundaristas tem sido preenchido por movimentos autonomistas e anticapitalistas, como o Movimento Passe Livre (MPL). “Não é à toa que as ocupações compartilharam algumas das características desses movimentos. Elas não foram totalmente espontâneas, tiveram a colaboração e o apoio desses grupos, que há algum tempo vem atuando nas escolas junto aos estudantes, como é o caso do MPL”, diz Groppo. 

A militante do MPL Luize Tavares concorda: “Uma grande parte dos militantes do MPL hoje veio do trabalho do movimento nas escolas, de conversar com os alunos, apresentar a pauta do movimento. Com as ocupações, não só o MPL, mas um grande número de movimentos deu apoio”. Essa articulação pôde ser vista nos atos do MPL contra o aumento da tarifa em São Paulo em janeiro, que contaram com um grande número de secundaristas de escolas ocupadas. E assim como nas ocupações, os atos contra o aumento da tarifa expuseram divergências entre o movimento estudantil institucional e os grupos autonomistas. 

De acordo com matéria do jornal El País (15/01), o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, reuniu-se com representantes de entidades estudantis como a UNE e a União Estadual dos Estudantes (UEE) na tentativa de esvaziar os protestos puxados pelo MPL, que foi excluído da negociação. “Foi uma manobra interesseira dessas organizações, que sentaram com a prefeitura para decidir coisas sem as pessoas que estavam nas ruas protestando”, critica Luize. Na reunião, as entidades teriam recebido de Haddad o compromisso de ampliar o acesso à gratuidade para os estudantes no transporte coletivo, bem como a possibilidade de utilização do serviço nos finais de semana. “O que nós defendemos é a tarifa zero no transporte coletivo, não só a gratuidade para os estudantes”, distingue ela.

Blindagem

Já nas universidades, quem tem ampliado sua atuação no trabalho de mobilização política junto aos estudantes são as executivas de curso, de acordo com Luiz Antonio Groppo. “Elas têm conseguido fazer um pouco mais essa ligação das questões políticas mais gerais e as específicas dos estudantes”, avalia. A estudante de Medicina Suelen Nunes, que em 2015 ocupou o cargo de coordenadora-geral da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (Denem), sustenta que a falta de distanciamento crítico da UNE em relação ao governo gera hoje alguns dos principais focos de divergências entre a entidade representativa e setores do movimento estudantil que têm procurado construir projetos alternativos. 

“As grandes entidades, que tiveram papel histórico no movimento estudantil, não se colocam mais no processo de enfrentamento direto. A gente vive uma situação em que essas entidades, para ir às ruas, primeiro blindam o governo federal. Se não existe possibilidade de ataque direto, os movimentos se colocam na rua. Do contrário, eles se eximem do debate e do compromisso com a sua base”, critica. 

Para ela, exemplo disso foi o que aconteceu durante a 15ª Conferência Nacional de Saúde. Suelen representou a Denem como delegada no evento, que aconteceu no final do ano passado, na mesma semana em que o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, aprovou o pedido de abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Por conta disso, os debates acabaram sendo atropelados por manifestações contrárias ao impeachment (leia mais sobre isso na cobertura da 15ª CNS, na Poli nº 43). 

“A gente precisava debater coisas centrais, como a entrada do capital estrangeiro [na assistência à saúde], o leilão ministerial que colocou Marcelo Castro no Ministério da Saúde, a privatização da gestão dos hospitais universitários pela Ebserh; todas pautas relacionadas diretamente ao governo federal. Só que, ao invés disso, se optou por fazer da conferência um ato contra o impeachment, a partir de uma falsa dualidade que coloca que ou você está ao lado do governo Dilma e defende o governo em si, ou está do lado dos conservadores a favor do golpe”, analisa. O descontentamento com os rumos do evento foi expresso no coro de ‘Cadê a conferência?’, puxado principalmente pelas executivas de cursos da saúde presentes. 

“Existem, sim, pessoas que querem defender os processos democráticos, mas isso não significa que a gente deva blindar o que o governo vem fazendo. Pelo contrário. O governo vem fazendo grandes ataques à classe trabalhadora, à educação, à saúde, e não pode ser blindado. Muito menos pelos movimentos sociais e pelo movimento estudantil. Tem que ser pressionado por esses movimentos, porque foram eles que, em parte, não permitiram que os setores conservadores assumissem o governo”, defende Suelen.

Ampliação via universidades privadas é foco de divergências

A presidente da UNE, Carina Vitral, se defende das críticas, afirmando que a entidade tem uma posição de independência em relação a governos ou partidos políticos. “Isso significa que quando o governo erra a gente crítica e quando o governo acerta a gente precisa também ter a capacidade de reconhecer”, ressalta ela, completando em seguida: “E o fato é que nos últimos dez anos a universidade avançou muito. 

A UNE, que sempre lutou pela democratização da universidade brasileira, não poderia se eximir de se posicionar a favor dessas políticas que democratizaram a universidade”. Durante o último Fórum Social Mundial, em janeiro deste ano, no entanto, Carina defendeu a necessidade de combater a “mercantilização” da educação superior no país. Segundo ela, essa não é uma incoerência. “Nosso debate estratégico é pela universidade pública, gratuita e de qualidade, mas a realidade no Brasil é que 80% dos estudantes universitários estudam na universidade privada. 

E lá, infelizmente, a nossa luta é bastante inicial, porque nem os mínimos direitos estudantis existem e muitas delas oferecem uma educação de baixa qualidade”, explica Carina. Em decorrência disso, explica, uma das principais reivindicações da UNE hoje é por uma maior regulação do setor privado na educação superior. “Uma bandeira é a criação do Instituto Nacional de Supervisão e Avaliação do Ensino Superior, o Insaes, que seria como o Inep, só que pra fiscalizar, cobrar e multar as universidades que não tiverem qualidade”. 

Mas o debate em torno das políticas de expansão do ensino superior através da ampliação do número de vagas em universidades privadas, por meio de programas como o ProUni e o Fies é um ponto de divergência entre representantes do movimento estudantil. 

“O governo fala que esse é um modelo de inclusão. Mas que modelo de inclusão é esse em que estudantes são submetidos a escolas que têm uma hierarquia muito forte, não têm processo democrático, não têm nenhuma perspectiva de assistência e permanência estudantil, trazem modelos mais tecnicistas de formação, a extensão universitária e a parte de pesquisa não é valorizada porque é apenas um gasto para aquela universidade?”, questiona Suelen.

Aprendizados

As notícias mais recentes não compõem um quadro muito animador: ao que tudo indica, a reorganização escolar continua em São Paulo – na base do sigilo – e a terceirização da gestão escolar também segue seu rumo em Goiás – na base do rolo compressor. A repressão policial continua sendo a principal arma empregada pelo Estado para tratar as mobilizações de rua, mesmo aquelas protagonizadas por adolescentes. Sem falar nos desafios colocados por uma conjuntura econômica e política adversa e pelas contradições no interior do movimento estudantil. 

No entanto, o balanço das mobilizações recentes, que proporcionaram uma oportunidade de politização para uma parcela grande de jovens e sinalizaram seu potencial como catalisadores de transformação social, é, para os entrevistados ouvidos pela Poli, motivo mais do que suficiente para otimismo. “São vários os desafios, mas o que me deixa esperançoso é que há um frescor nesses estudantes que estão mobilizados e abertos a diferentes formas de lutas políticas”, aponta Jonas Medeiros. 

Nas suas falas, os estudantes listam o que aprenderam durante as ocupações. A goiana Rebeca Peres, 17 anos, destaca a autonomia adquirida pelos jovens. “Autonomia no sentido de o estudante entender que a escola é dele. É ele limpar a escola para sentir na pele o que é isso; é o estudante ter acesso aos documentos da escola, entender o que se gasta na escola, poder saber o que se passa com sua escola e pra onde ela vai. É incrível”, resume. Já para a paulista Fernanda Freitas, a mobilização ajudou na construção de um projeto diferente de educação: “Tivemos atividades culturais, conhecemos pessoas que nos ajudaram a formar uma opinião política. Fizemos várias coisas que não havia antes na escola. E a gente viu que essa seria uma escola que gostaríamos de ter na nossa vida”.

(Com o Diário Liberdade)

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