O “petismo” como problema moral

                                                                    


Mauro Luis Iasi (*)


“A vida ético-individual implica necessariamente uma responsabilidade histórico social nas decisões, nos comportamentos” – GYÖRGY LUKÁCS

Sempre afirmamos e continuamos acreditando que o drama da experiência petista não pode se reduzir a uma dimensão moral, isto é, a um mero problema de traição ou abandono de valores resultantes do transformismo que se operou. Preferimos centrar nossa atenção no estudo do comportamento da classe trabalhadora e nas determinações materiais e históricas do ser da classe e sua consciência. 

Nesta direção o transformismo verificado nas direções correspondem a um determinando momento histórico, marcado pelo processo de reestruturação produtiva do capital e de derrota na luta de classes no plano internacional com o desfecho dramático das experiências de transição socialista operadas no século XX, em especial a soviética.

No entanto, há inegavelmente uma dimensão moral e ética nesta tragédia, na medida em que há decisões que são tomadas, caminhos que são escolhidos em detrimento de outros, valores abandonados e valores aceitos, pequenas e grandes traições. Ainda mais que isso, a inflexão política operada na direção da conciliação de classes e a consequente perda de autonomia dos trabalhadores, acaba por incidir num fenômeno mais amplo no que diz respeito a moralidade social e sua eticidade. 

Evidente que o petismo (que é responsável direto por muita coisa) não pode ser responsabilizado pelo conservadorismo presente na sociedade e suas manifestações mais grotescas com as quais nos deparamos hoje. As raízes do conservadorismo são outras. No entanto, as manifestações reacionárias que presenciamos e sua forma, em grande medida, devem ser compreendidas no quadro geral da luta de classes e da crise.

Chama-me a atenção em determinados romances sobre a segunda guerra mundial, ou filmes que tratam do tema, como determinados comportamentos cotidianos insistem em se manter mesmo no caos provocado pelo conflito. Pessoas que sob escombros de cidades destruídas, ou na barbárie dos guetos ou campos de concentração, buscando água, conversando com colegas de infortúnio, apaixonando-se e outras coisas triviais, coisas como fazer uma sopa ou lavar roupas no filme A menina que roubava livros, ou um músico vestido de soldado que reencontra seu piano no filme O pianista, ou ainda um tenor, no filme Stalingrado, coberto de poeira e trapos que quase não fala por conta de um ferimento e, de repente, transborda sua alma em uma ária.

Tais fragmentos expressam, a meu ver, um mecanismo de defesa. Ou seja, uma ação que procura relativizar a desumanidade geral em que se inserem os personagens, uma afirmação, ainda que tênue, de que seguem sendo humanos mesmo num quadro dramático de desumanidade. Não é necessário um quadro tão drástico como uma guerra, a brutal exploração da classe trabalhadora nos dá exemplos cotidianos deste fenômeno. A mãe que prepara com zelo e carinho a pouca comida, veste com dignidade seus pequenos com as roupas que tem; a festa, a música, a dança que resiste alegre no corpo da cidade cinza, séria e triste; o amor que insiste em nascer em tempos de desamor.

Estes pequenos atos de sanidade em meio ao caos, ainda que essenciais para resistir e seguir vivendo, guardam um risco de grandes proporções: a naturalização da barbárie. O dilema que se coloca diante dos indivíduos é o de buscar os meios de seguir vivendo ou a recusa, a não aceitação, a revolta.

Peguemos um exemplo significativo nestes dias tão obscuros em que a presidente eleita foi deposta e um usurpador ocupa seu lugar. Jovens nas ruas são reprimidos com requintes de crueldade pela policia militar que já cotidianamente assassina jovens negros nas periferias e favelas na dimensão de uma verdadeira guerra civil. 

Uma menina é atingida por um estilhaço de bomba e perde a visão de um olho. Outra jovem faz pilhéria comemorando o ato nas redes sociais e cumprimentando o aparato repressivo por tê-la “curado de seu comunismo”. Um outro, este um professor universitário, afirma que caso a jovem ferida seja petista “se trata de uma boa notícia”, assim como um crápula desqualificado que se apresenta como jornalista emitiu o juízo segundo o qual se ela tivesse perdido os “dois olhos, seria ainda melhor para esquerda”.

Com exceção do suposto jornalista, que se especializou conscientemente em falar imbecilidades com fins políticos claros, não conheço as outras pessoas e não quero antecipar juízos. É possível que não sejam facínoras fascistas. Podem até ser pessoas com um certo grau de normalidade, que voltam de seus trabalhos para suas famílias, comem usando talheres, amam seus pares, festejam o natal, cuidam de seus filhos… Podem ser bons profissionais, competentes no que fazem e, em situações normais, não emitiriam qualquer juízo desrespeitoso para uma jovem que perdeu sua visão. No entanto, o fizeram, publicamente, parecendo se regozijar com seu ato e esperam reconhecimento de seus pares.

Assim como eles, que tinham a opção de emitir ou não aquele juízo terrível, nós também estamos diante da seguinte disjuntiva: mantermo-nos alheios a isso ou assumir algum tipo de indignação. A banalização da barbárie, por vezes, se esconde sob formas sedutoras. Tratar-se-ia de uma mera questão de opinião? Seria tudo uma questão de “narrativa”, como convencionou ser chamado? Nós achamos que o usurpador Temer deve dar o fora, e eles acham que a polícia deveria furar os olhos de meninas e espancar todo mundo que protesta. 

Nós acreditamos que atacar (mais uma vez) a previdência, aumentar a idade de aposentadoria, destruir a Universidade Pública, cortar os recursos da educação e saúde enquanto sangram recursos para os bancos e grandes empresas são crimes contra os direitos dos trabalhadores. E outros acreditam que são medidas sensatas que poderão organizar a economia e voltarmos a crescer até ultrapassar os EUA se tornando a maior potencia da terra.

Não compartilhamos desta compreensão. Não se trata da relatividade das opiniões e do direito de expressá-las. Estamos diante de algo distinto. Ao que parece, a agudização da luta de classes suprime certas travas morais, desperta ódios irracionais e primitivos. O que parece paradoxal é que isso se expressa após um período em que a principal força de esquerda se esforçou em se apresentar moderada e responsável, empenhada na conciliação de classes, abdicando de qualquer resquício revolucionário.

Parece paradoxal, mas não é. O ódio de classe é o resultado dos limites do pacto. O antagonismo entre as classes, se tomado pelas suas raízes, está longe de ser um fenômeno meramente moral. Ele tem suas bases nas formas de propriedade, nas relações sociais de produção e nas formas de poder que daí derivam. A ideologia burguesa unifica no âmbito ideal o que inconciliável no plano material, daí sua universalidade inevitavelmente abstrata. A contradição objetiva, constrangida pela forma política da conciliação, sempre explode em um conflito ainda maior.

A crise da democracia de cooptação, do pacto de classes operado pelos governos petistas, cria o cenário no qual os comportamentos individuais podem encontrar as condições favoráveis para se expressar coletivamente. Uma pessoa isolada, por mais que tenha convicções conservadoras, não se sentiria a vontade em expressar pensamentos tão cruéis. Uma senhora, paramentada com a camisa da CBF, junto de outros que vociferam impropérios, alegrava-se em expressar a opinião segunda a qual a presidente Dilma deveria ter sido morta pelos militares quando estes tiveram a chance depois do golpe de 1964.
                                                            
Ocorre aqui um fenômeno que se remete àquilo que Freud estudou em seu trabalho sobre a psicologia de massas. Não é, como acreditava Le Bon, simplesmente um “contágio”, mas algo mais profundo ligado ao processo de constituição de identidades projetivas e introjetivas, ou seja, o processo pelo qual cada um numa situação de massas projeto seu ideal de ego para o líder e, desta forma, introjeta as características do líder formando sua própria personalidade.

Isto não ocorre apenas no calor das manifestações de massa, como o próprio Freud argumentou, mas cotidianamente através daquilo que denominou de “grupos organizados” que produzem as condições para orientar a ação dos indivíduos numa determinada direção, fazendo com que eles acreditem ser suas próprias opções pessoais. Assim, operam como mediadores entre as classes e segmentos de classes e os indivíduos que a compõem, algo que se aproxima da noção gramsciana de aparatos privados de hegemonia.

Mas é exatamente aqui que incide nossa reflexão. Não podemos compreender este momento, ou seja, aquele em que o indivíduo se vê diante de valores, princípios morais e decisões a serem tomas, atitudes e comportamentos, como se fosse um processo dual entre o indivíduo de um lado e as determinações mais gerais e sociais de outro. Se assim fosse, como argumenta com razão Lukács, “toda conexão entre a existência interior (ética) e a exterior (natural, social) do homem parece romper-se”. Por isso, ele como nós, acreditamos que a vida ético-individual implica necessariamente uma responsabilidade histórico-social.

Visto sob este ângulo não se trata de mera postura individual diante do mundo e do universo aleatório de valores que a sustenta. Trata-se da adesão, consciente ou não, às classes em luta e as perspectivas abertas no devir. Olhando sob o ponto de vista estritamente racional não há sentido em uma senhora querer matar a presidente, uma jovem querer cegar uma menina ou um professor universitário ficar contente com isso. Mas quando olhamos na perspectiva das classes em luta, percebemos a necessidade das classes dominantes de eliminar fisicamente seus opositores, destruir por todos os meios a classe que pode, ao se afirmar, destruir as bases de seu domínio.

O mistério é a mediação. Afinal, como é que os interesses das classes dominantes aparecem tão naturalmente como se fosse próprio da consciência destes indivíduos que se orgulham de sua postura reacionária? A mediação que aqui opera é a ideologia. As pessoas vivem as relações que constituem a sociedade e as interiorizam na forma de valores, o que implica que os valores que constituem a visão de mundo dominante são a expressão das relações sociais dominantes, portanto, compartilhados entre as classes que são as personificações das diversas posições presentes nestas relações.

Quando as classes dominantes operam um valor ideológico, encontram a correspondência nos valores que constituem a consciência imediata dos membros de uma determinada sociedade. Uma vez que esta sociabilidade é cortada por contradições, as diferentes posições de classe podem levar ao desenvolvimento de processos de consciência que se choquem com a ideologia dominante, levando à possibilidade de uma consciência de classe.

Ocorre que tal processo não é linear nem homogêneo. Ele depende da luta de classes e de seu desenvolvimento, das determinadas configurações das classes e segmentos de classe, assim como as disposições dos indivíduos em cada momento, que encontram certas condições que podem formar suas consciências no sentido da adequação ou da ruptura com o universo ideológico estabelecido. Quando as direções da luta de classes optam pelo pântano da conciliação de classes, elas desarmam os trabalhadores, que perdem sua autonomia e independência e se tornam presa da ideologia.

Os segmentos médios atuam de forma muito particular nesse processo. Por sua natureza de classe de transição, que oscila entre a burguesia e o proletariado, as camadas médias desenvolvem a curiosa percepção de que estando acima dos radicalismos das classes em luta representam a abstração da sociedade em seu conjunto. 

Na luta concreta, entretanto, acabam sempre assumindo ora a posição dos trabalhadores em luta, ora a necessidade conservadora das classes dominantes. Um cenário no qual os trabalhadores abdicam de sua radicalidade, aceitando a premissa pequeno-burguesa da “nação” ou do “povo”, ao contrario de atraí-los, produz exatamente o momento que empurram os segmentos médios para a reação.

Estas considerações implicam em um posicionamento diante da conjuntura política e as decisões a serem tomadas. A luta necessária pelo “Fora Temer”, implicará, num primeiro momento, na luta pela antecipação das eleições, a não ser que alguém em sã consciência queira Rodrigo Maia na presidência. No entanto, diante de tudo que foi aqui argumentado, devemos nos preocupar muito com o caminho que nos conduzirá neste campo de opções táticas. As eleições, sejam antecipadas para 2017 ou realizadas em 2018 como o previsto, não tem o condão de legitimar o governo que virá, seja qual for, e enfrentar as bases do problema que fratura a sociedade e a coloca a beira do confronto.

É fundamental buscar recriar as condições para recuperar a autonomia de classe dos trabalhadores, condição essencial para disputar as consciências e a sociedade. A simples demanda pela alteração do calendário eleitoral, ainda que necessária, não nos leva a isso. É necessário uma recusa, uma atitude de avaliação profunda dos limites da democracia representativa e a forma que constrange os processos eleitorais na forma como estão sendo realizados, uma mudança radical nas regras do jogo político, mas isso não é possível na atual correlação de forças o que leva ao risco de novas eleições serem o caminho para legitimar o governo usurpador ao contrário de questioná-lo.

Por isso, acreditamos que lutar pelo Fora Temer e a antecipação das eleições deve, necessariamente se articular com a Greve Geral contra o ajuste e as medidas que atacam diretamente os direitos dos trabalhadores e ameaçam a nossa existência imediata e futura. Desta maneira estaríamos não apenas criando as condições para uma possível reorganização de uma consciência de classe dos trabalhadores, como diminuiríamos o espaço que o conservadorismo logrou impor nos segmentos médios.

As manifestações e protestos, por mais importantes que sejam, não têm a força necessária para impor o “Fora Temer” com esta qualidade necessária que a recusa dos trabalhadores em greve geral pode gerar. Ou o próximo período se abre como uma consolidação da derrota, ou abrem-se duas possibilidades, uma por concessão do Estado e buscando manter o desfecho nos limites da reprodução do existente, ou um novo ciclo que se inicia sob a retomada da iniciativa dos trabalhadores redescobrindo sua força. Esta última possibilidade implica na greve geral e em sua força.

O resultado imediato esperado, muito além da eventual vitória barrando uma ou outra medida, é a criação das condições sociais e políticas que torne possível que os indivíduos de nossa classe se sintam parte de algo maior e que lhe forneça as condições para as escolhas éticas capazes de enfrentar a barbárie e voltar a sonhar com um futuro emancipado, ao mesmo tempo que reduza o espaço para que manifestações gritantes de desumanidade e arbítrio possam frutificar e lançar raízes abrindo um período de retrocesso com consequências trágicas.

(*) Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.


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