Pensando a longo prazo – Marx: demonstração histórica

                                                         
                                                                   
Wladimir Pomar (*)

Para entender a realidade do capitalismo, em qualquer lugar do mundo, inclusive no Brasil, a vida demonstrou que não existe instrumento de análise mais apropriado que O Capital, de Marx. Diante da prolongada crise atual do capital, até mesmo antimarxistas empedernidos passaram a buscar entender, através dessa obra, as tendências que esse modo de produção está lhes impondo. Procuram descobrir um modo de livrar-se da possibilidade de sua substituição histórica por outro modo de produção.

É verdade que nem sempre tem sido fácil a comprovação das tendências lógicas do capital, principalmente aquelas descobertas por Marx. No processo histórico real, tais tendências têm se desenvolvido de forma desigual e embaralhada, resultando em dúvidas e contratempos.

Tomemos como exemplo o processo de elevação da produtividade. As nações capitalistas mais avançadas impulsionaram suas indústrias por meio da crescente utilização das ciências e tecnologias como forças produtivas, ou ciências de resultados, na maior parte do tempo em virtude da brutal concorrência no mercado.

Em particular nos últimos 50 anos, após a Segunda Guerra Mundial, a elevação da produtividade foi impulsionada, como vimos em comentário anterior, por uma nova revolução científica e tecnológica, e pela ampliação da disputa comercial em âmbito internacional. Ou seja, tornou-se incontestável o que Marx denominou de “revolução constante das forças produtivas”.

Outro exemplo de comprovação relativamente fácil tem sido a centralização do capital em poucas mãos. Não é mais segredo para ninguém que 1% da população do globo concentra em suas mãos uma riqueza equivalente à renda de 3 bilhões de pessoas. Três bilhões... Ou que um pequeno grupo de grandes corporações transnacionais domina mais de 60% da produção mundial. A lista demonstrativa da tendência à centralização do capital já se tornou de domínio público, mostrando que Marx acertou o alvo.

Também são fatos relativamente incontestáveis as tendências de crises financeiras e econômicas, de caráter global. Elas vêm se repetindo desde 1837, atingindo um nível inigualável, a partir de 2007-2008, nos Estados Unidos, e após 2011, na Europa (para não falar no Japão, enterrado numa crise que parece infindável). O mesmo se pode dizer das tensões e guerras imperialistas, entre as nações desenvolvidas, por novas divisões do sistema colonial e/ou do mercado mundial.

Nem sempre ficou evidente a tendência de exploração crescente dos trabalhadores e sua consequente pauperização. Até os anos 1950 e 1960, as grandes nações capitalistas distribuíram, entre seus trabalhadores, parte dos lucros complementares extraídos da exploração das nações e povos colonizados. Isso funcionou como fator “amaciante” da luta de classes no interior os países capitalistas, dando surgimento aos Estados de Bem-Estar europeus, e ao American Way of Life norte-americano. E deu ensejo ao surgimento de inúmeras teorias sobre os “erros das previsões de Marx”, teorias em desuso em virtude da crescente pauperização causada pelo desemprego estrutural nos países centrais.

No entanto, há algo realmente não previsto por Marx na dimensão adequada. O processo de desenvolvimento desigual do capitalismo, a exploração das colônias e dos países atrasados, e a redistribuição, aos trabalhadores das nações desenvolvidas, das migalhas do bolo obtido naquela exploração colonial, fizeram com que o epicentro das lutas de classes, e dos movimentos revolucionários, fosse transferido dos países centrais para os países atrasados. O mesmo ocorreu, em grande medida, com a própria teoria marxista que, como guia para a ação, se expandiu mais rapidamente nos países atrasados.

Em plena Primeira Guerra Mundial, isso resultou na eclosão e vitória da revolução soviética. Logo a seguir, em revoluções de diferentes cunhos políticos e sociais, vitoriosas na Turquia e na Mongólia, derrotadas na Alemanha e na Hungria, e continuada na China. E, cerca de 30 anos depois, após o final da segunda grande guerra, o sistema de países capitalistas se confrontou com a expansão do socialismo de tipo soviético, no leste europeu, e na China e na Coréia, e com a emergência de revoltas e guerras anticolonialistas, principalmente na Ásia e na África.

Ou seja, o epicentro das lutas de classe e das revoluções continuou localizado nos países atrasados, que ainda não haviam ingressado no caminho capitalista, ou que tinham um pequeno desenvolvimento capitalista. Mas o capitalismo dos Estados Unidos, que além do dinamismo interno de suas indústrias, ciências e técnicas, havia alcançado a hegemonia mundial em virtude dos lucros obtidos nas duas guerras mundiais, sentiu-se ameaçado pelo “perigo comunista” daquela luta de classes e assumiu o enfrentamento ativo desse conjunto de problemas políticos em âmbito mundial.

O capital estadunidense investiu pesadamente na reconstrução do capitalismo de “bem-estar” da Europa Ocidental, de modo a manter como aliados seus trabalhadores, nas fronteiras ocidentais do chamado “campo socialista”. Ao mesmo tempo, tentou sangrar a revolução chinesa através da Guerra da Coréia, ao mesmo tempo em que criou as condições para a reconstrução capitalista do Japão, e para a emergência dos Tigres Asiáticos como países capitalistas emergentes.

Até então, a política de exportação de capitais do capitalismo avançado para os países atrasados restringia-se aos empréstimos a juros extorsivos e aos investimentos em estradas e portos que barateassem a exportação de matérias primas minerais e agrícolas demandadas por suas indústrias e sociedades. Os capitalistas dos países avançados opunham-se a qualquer industrialização dos países atrasados. Isso só começou a mudar a partir dos anos 1950, com a reconstrução capitalista da Europa e do Japão, e com o excedente de capitais propiciado pela crescente centralização do capital.

Afinal, o capitalismo avançado alcançara um nível de concentração e centralização da riqueza e de queda de sua taxa média de lucro que o obrigava a iniciar uma crescente exportação de capitais excedentes e, como previra Marx, a promover o desenvolvimento do modo de produção, circulação e distribuição capitalista no resto do mundo.

É verdade que tal investimento, em geral, impôs aos países atrasados uma industrialização subordinada. O Plano de Metas de JK, no Brasil, teria sido inviável sem essa política de exportações de capitais pelos países capitalistas avançados. Paralelamente, o capital avançado manipulou a implantação de ditaduras de diferentes tipos nos países atrasados, de modo a garantir o retorno de seus investimentos contra qualquer tentativa “nacionalista”. E, ao mesmo tempo, criou uma poderosa máquina de propaganda para disseminar a ideologia da democracia liberal de bem-estar social e do american way of life, como padrões políticos e de vida ideais.

Os que estão lendo este texto podem se perguntar: o que isso tem a ver com A Tolice da Inteligência Brasileira, de Jessé Souza? Por incrível que isso pareça, entre outras coisas este texto está relacionado a uma simples afirmação daquela obra. Isto é, a de que o “modo de produção que ocorre na Alemanha é o mesmo que ocorre no Brasil”. Para demonstrar que “o que ocorre” na Alemanha não é exatamente “a mesma coisa” que ocorre no Brasil (e em outros países atrasados do ponto de vista capitalista) é preciso mostrar como o capitalismo se desenvolveu historicamente desigual.

A suposição de Jessé é uma daquelas “visões distorcidas, conformistas e superficiais da realidade”. O capitalismo real não é bem o capitalismo weberiano de Jessé, e os economicistas nada têm a ver com o marxismo, embora seja possível que alguns que se autodenominam marxistas sejam economicistas.

O capitalismo avançado da Alemanha é alemão. Já o capitalismo atrasado do Brasil não é brasileiro. Ou seja, além de “atrasado” em relação à Alemanha e, também, em relação aos Estados Unidos, Japão, Inglaterra, França e Itália, o capitalismo do Brasil é profundamente “desnacionalizado” e “subordinado”. Em outras palavras, são capitalismos nacionais diferentes, desiguais, descombinados.

Para complicar, desde o final dos anos 1980, o capitalismo nacional subordinado brasileiro sofreu um processo de reversão em sua industrialização. Na nova onda globalizante dos capitais financeiros e industriais avançados, ao invés de completar sua industrialização, o Brasil assistiu à canibalização de seu parque industrial pelos capitais financeiros. Desse modo, tornou-se cada vez mais, além de subordinado, um capitalismo de produção de bens primários (agrícolas e minerais), e de produção de renda monetária para pagar juros ao sistema financeiro internacional e nacional.

O que exige que continuemos a procurar entender as descobertas de Marx sobre o capital, tanto para compreender o capitalismo avançado predador, suas forças e debilidades, quanto para ver se o Brasil tem futuro.

(*) Wladimir Pomar é escritor e analista político.

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