Há 500 anos, a reforma abriu o caminho para o mundo moderno

                                                               
Reprodução da pintura de Julius Hübner feita no século XIX que retrata a afixação das Teses diante de uma multidão. (Crédito: Domínio Público/Julius Hübner)

Rui Martins 

Terça-feira (31), o mundo protestante, cerca de 800 milhões de praticantes, comemoram os 500 anos da Reforma, tomando como ponto de partida as 95 Teses, que um monge agostiniano, de apenas 34 anos, Martinho Lutero, colocou nas portas da igreja de Wittenberg, denunciando o comércio da venda de indulgências para se sair do Purgatório. Foi um gesto de extraordinária coragem, pois acabou se transformando num confronto com o Papa Leão X, numa época em que as fogueiras da Inquisição ainda estavam acesas.

A Reforma não causou só o cisma que quebrou a unidade da Igreja Católica. Na verdade, Lutero nunca imaginaria que sua revolta contra a comercialização da salvação pelas indulgências assumiria a importância de um confronto político contra o Papado. No máximo, esperava uma pequena reforma dentro da Igreja, proibindo o negócio das indulgências e uma discussão sobre a salvação unicamente pela fé.

Mas ao morrer, 29 anos depois, Lutero pôde constatar a propagação de suas ideias, de nada adiantando ter sido excomungado, pois ele mesmo queimou em praça pública a bula da excomunhão. A reação de Roma foi o Concílio de Trento com a Contrarreforma e a criação da Companhia de Jesus, pelo jesuíta Inácio de Loiola. Houve mesmo perseguições e massacres, como a Noite de São Bartolomeu, na França, e a Guerra dos Trinta Anos, na Alemanha.

Nessa altura, a Reforma reunia movimentos diversos liderados por outros teólogos como Calvino, Farel, Zwinglio, mantendo as oposições básicas à Igreja Católica mas incluindo ligeiras diferençaas. Era a primeira consequência da livre interpretação das Escrituras, defendida por Lutero, e da divulgação da Bíblia graças às prensas de Gutenberg.

Quinhentos anos depois, a Reforma foi a detonadora junto com a Renascença e a tipografia de Gutenberg, de um movimento mais vasto que, a princípio tirou de Roma o monopólio das Escrituras, consideradas como a revelação divina, mas a livre interpretação acabou por abrir o caminho ao racionalismo, ao Iluminismo e ao laicismo.

Por isso não são só os protestantes que comemoram, mas todos que, mesmo ateus, são os herdeiros do movimento que levaria, com o passar dos séculos, à liberdade de expressão e ao desenvolvimento da cultura em todo mundo ocidental.

A Reforma foi muito além da religião que, neste começo de milênio, como previa Malraux, tenta retomar o controle da liberdade do pensar, num retorno ao fundamentalismo. O surgimento no Brasil do evangelismo vindo dos Estados Unidos, é bem a mostra desse retrocesso cultural com a revalorização dos velhos tabus, a condenação das conquistas laicas, como divórcio, aborto, homossexualismo, e a tentativa de se apossar do poder político para censurar o ensino, a cultura, agora nos museus, mas logo nos teatros, nos livros e cinema.


(*) Rui Martins é jornalista, escritor e correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil, e RFI.

(Com o Observatório da Imprensa)

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