Um mundo seletivo e hierárquico

                                                                     
  
 Patricia Fachin | Tradução: Luísa Flores Somavilla  


O debate acerca da biopolítica se intensificou nos últimos anos. Com este termo, conforme a professora Laura Bazzicalupo, “designamos a importância crescente da vida e do corpo na gestão política”. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, ela destaca que, com a modernidade capitalista, “o poder político está instalado nas vidas para fortalecê-las e governá-las, para ganhar produtividade máxima”. Com isso, o poder acaba tomando conta dos corpos e de sua regulação.

Bazzicalupo trata destes temas em seu livro Biopolítica. Um mapa conceitual, lançado no ano passado no Brasil pela Editora Unisinos. Nesta obra, afirma que as formas e as mediações jurídicas tradicionais são inadequadas. “Os pilares jurídicos da teoria liberal-democrática – o Estado, a cidadania, o sujeito autônomo, a igualdade formal – são inadequados para dar conta de um mundo que é seletivo e hierárquico, onde as diferenças estão profundamente instaladas em corpos e vidas concretas”.

Na atualidade, a lei passou por uma transformação muito expressiva. “Leis brandas e negociações, arbitragens e contratos substituem o código e a lei universal, aplicada rígida e verticalmente erga omnes”, avalia Bazzicalupo. “Isso certamente não é em si algo positivo, mas expressa a necessidade de formas mais flexíveis de mediação, associadas a circunstâncias específicas.”
                                                                                              Cittadelle
Laura Bazzicalupo é professora de Filosofia Política na Universidade de Salerno, na Itália, e preside a Sociedade Italiana de Filosofia Política. Entre suas obras recentes estão Superbia (Bologna, 2008); Biopolitica. Una mappa concettuale (Roma, 2010, lançada pela Editora Unisinos em 2017 com o título Biopolítica. Um mapa conceitual); Eroi della libertà. Storie di rivolta contro il potere (Bologna, 2011); Dispositivi e soggettivazioni (Milano, 2013) e Politica. Rappresentazioni e tecniche di governo (Roma, 2013).

Confira a entrevista.


IHU On-Line – O que se pode entender pelo termo “biopolítica”? Como o sentido atribuído a ele tem se modificado desde que foi cunhado pela primeira vez em 1900?

Laura Bazzicalupo – Com o termo biopolítica – hoje muito difundido –, designamos a importância crescente da vida e do corpo na gestão política: com a modernidade capitalista (mas, para Agamben, sempre), o poder político está instalado nas vidas para fortalecê-las e governá-las, para ganhar produtividade máxima. Nesta perspectiva, o poder toma conta dos corpos e de sua regulação. Há algum tempo o termo biopolítica é utilizado para caracterizar as políticas tecnocráticas que atuam na vida humana para melhorá-la. Essas políticas caracterizaram tanto os anos de bem-estar (democrático e totalitário) como as políticas dos períodos liberais e neoliberais.

IHU On-Line – Por que razões tem se utilizado o termo “biopolítica” nos dias de hoje? Que tipo de fenômenos e eventos são expressos através desse termo?

Laura Bazzicalupo – Hoje, a partir dos estudos de Foucault, que o utilizou analítica e criticamente, o termo se espalhou, indicando tanto as políticas biotecnológicas de gestão da população e a governança econômica da vida. Corpo e vida são objetos de atividade política que busca governá-los e controlá-los, mas são em si mesmos protagonistas da ação política. O novo uso da palavra está ligado a um conceito de ambivalência e relações de poder: poder é uma relação entre forças, que não age apenas reprimindo e obstruindo, mas solicitando e conduzindo. Nesse sentido, a biopolítica refere-se ao conceito de governança (ou, como diz Foucault, governabilidade). As questões que a política deve administrar hoje têm que ver com a vida, com o ser humano, em vez de formas jurídicas.

O sucesso do conceito de biopolítica emerge principalmente da impossibilidade de reduzir a complexidade das questões atuais dentro das categorias liberais e democráticas tradicionais que se referem a um sujeito abstrato, desprovido de conotações concretas e materiais.

Questões biopolíticas são programas biotecnológicos, mas também a migração, o terrorismo, as doenças planetárias, as crises ecológicas – cada vez mais cruciais – e a economia.

IHU On-Line – Que tipo de fenômenos e problemas Foucault pretendia expor e resolver ao fazer uso do termo biopolítica?

Laura Bazzicalupo – Foucault refere-se ao termo biopolítica como a gestão da vida econômica e biomédica, uma forma de governo que é exercida sobre homens livres, a fim de aumentar a sua produtividade. Também acredita que as vidas governadas, por sua vez, podem ser capazes de resistir ao poder e exercê-lo.

O sucesso do conceito de biopolítica emerge principalmente da impossibilidade de reduzir a complexidade das questões atuais dentro das categorias liberais e democráticas tradicionais que se referem a um sujeito abstrato, desprovido de conotações concretas e materiais. Estas categorias, apesar de continuarem sendo utilizadas de forma eficaz ocasionalmente, desconsideram uma série de questões sociais que não têm solução jurídica e formal, mas exigem negociação econômica e pragmática, ou decisões morais e jurisprudenciais.

IHU On-Line – Em seu livro Biopolítica. Um mapa conceitual, você diz que as formas e as mediações jurídicas tradicionais são inadequadas. Que problemas se evidenciam nessas formas e mediações?

Laura Bazzicalupo – Os pilares jurídicos da teoria liberal-democrática – o Estado, a cidadania, o sujeito autônomo, a igualdade formal – são inadequados para dar conta de um mundo que é seletivo e hierárquico, onde as diferenças estão profundamente instaladas em corpos e vidas concretas. Hoje, a lei sofreu uma grande transformação. Leis brandas e negociações, arbitragens e contratos substituem o código e a lei universal, aplicada rígida e verticalmente erga omnes. Isso certamente não é em si algo positivo, mas expressa a necessidade de formas mais flexíveis de mediação, associadas a circunstâncias específicas.

IHU On-Line – Na obra, você comenta a existência de uma crise da separação entre o privado e o público. Em que consiste essa crise e como ela se manifesta?

“Problemas do corpo vivo são públicos e, ao contrário, atores políticos públicos – por exemplo, no populismo – contam com elementos privados para se afirmar”

 Laura Bazzicalupo – A teoria liberal baseia-se na separação entre o público e o privado. Muitas questões – desde o direito de família até a legislação trabalhista, de saúde ou de questões raciais e de identidade de gênero – demonstram que esta separação não resiste. Problemas do corpo vivo são públicos e, ao contrário, atores políticos públicos – por exemplo, no populismo – contam com elementos privados para se afirmar. O enfraquecimento desta separação, que fundamenta toda a teoria política moderna, manifesta-se tanto na crise do direito como na crise da representação política.

O enfraquecimento da separação público - privado, que fundamenta toda a teoria política moderna, manifesta-se tanto na crise do direito como na crise da representação política

IHU On-Line – No livro, são apresentadas algumas formas de governo nas quais há prevalência da biopolítica, como o governo pastoral e o liberalismo. Como a biopolítica se manifesta nessas formas de governo?

Laura Bazzicalupo – A biopolítica governa a vida. Por muito tempo, isso aconteceu sob a marca dessa disciplina cuja ascendência é pastoral: o pastor governante cuida das almas vivas em prol de seu desenvolvimento e segurança, baseando-se numa Verdade (primeiro religiosa e depois científica) que melhora seu funcionamento. Com o liberalismo e principalmente com o neoliberalismo, a biopolítica torna-se um sistema de governo ambivalente: por um lado, cada empresário de si mesmo se autorregula, melhorando seu capital humano; por outro, todos estão sujeitos ao controle e à gestão do mercado que dá um valor desigual a cada vida, avaliando-as pelo princípio da competição. A regulação pastoral persiste no papel que a especialização (econômica e biomédica) tem hoje como autoridade que detêm o verdadeiro papel de otimização.

Com o liberalismo a biopolítica torna-se um sistema de governo ambivalente: por um lado, cada empresário de si mesmo se autorregula, melhorando seu capital humano; por outro, todos estão sujeitos ao controle e à gestão do mercado que dá um valor desigual a cada vida, avaliando-as pelo princípio da competição


Vale destacar que, em ambos os casos, é o ser psico-físico que é governado.

IHU On-Line – Que tipo de governo seria uma alternativa aos anteriores?

Laura Bazzicalupo – Como o poder é sempre uma relação, o controle do biopoder às vidas (hoje os direcionando para a competição de mercado) sempre corresponde a uma biopolítica, que é uma política ativa de corpos governados, que os mesmos poderes biopolíticos demandam e que sempre excedem o endereçamento que lhes é imposto. Portanto, hoje podemos ver muitas formas de experimentação política de grupos autônomos, que tentam dar vida a subjetivações políticas antagônicas ou pelo menos alternativas, principalmente a partir da grande crise econômica da governança neoliberal.

Não é um caminho fácil, porque a alternativa deve ser operada em vários níveis: um nível geral (e ainda assim legal) e um nível biopolítico específico e local.

Seria importante criar uma nova forma de bem-estar: a gestão e o cuidado do bem-estar não devem ser providos de cima para baixo, mas organizados e geridos diretamente pelos governados, de baixo para cima, mesmo que à custa de baixa eficiência, para que o biopoder no bem-estar se tornasse uma forma de agência biopolítica.

IHU On-Line – Por que você entende o Walfare como um fenômeno biopolítico?

Laura Bazzicalupo – O estado de bem-estar também é um fenômeno biopolítico, porque a política toma conta da população do primeiro ao último suspiro: da saúde, do bem-estar e do empoderamento. Mas, diferente da gestão biopolítica apenas, no estado de bem-estar social-democrata, este cuidado é um direito constitucional, e os governados têm direitos sociais.

IHU On-Line – Qual é a influência da teoria darwinista e do positivismo na biopolítica?

Laura Bazzicalupo – Darwin exerce forte influência na governamentalidade biopolítica: um Darwin vulgarizado e simplificado, claro. A naturalização e a animalização do ser humano que tornam suas capacidades gerenciáveis e passíveis de melhoria vêm do darwinismo; assim como a ideia neoliberal e capitalista da competição como a principal ferramenta de otimização, que vem de um darwinismo simplificado.

IHU On-Line – Em que consistem as visões naturalística e deleuziana da vida, segundo Esposito? Essa lhe parece uma resposta adequada para responder ao fenômeno da biopolítica?

Laura Bazzicalupo – Para Deleuze, a vida é uma corrente impessoal de intensidade: uma repetição contínua e variada de fluxos desejantes. Esta metafísica evita a possibilidade de julgamento comparativo (e também qualquer competitividade) e impede a ideia de sujeito. Em uma fase de seus estudos sobre biopolítica, Roberto Esposito leva esta ideia de vida impessoal como uma abertura pré-política para a afirmatividade (affirmiveness) do ser.

IHU On-Line – Para os críticos da biopolítica, o que seria uma alternativa a ela?

Laura Bazzicalupo – Com Foucault, acredito que seja impossível extrair dispositivos linguísticos e sociais e acessar este fluxo vitalístico: estamos sempre dentro de dispositivos de poder que, no entanto, podemos modificar em novas formas, ampliando nossa capacidade de influenciar as coisas.

A biopolítica neodeleuziana (por exemplo, Negri) mitifica a capacidade libertária da Multidão: o desejo (e, portanto, as máquinas desejantes) é o que há de mais controlável

Também acredito que a biopolítica neodeleuziana (por exemplo, Negri) mitifica a capacidade libertária da Multidão: o desejo (e, portanto, as máquinas desejantes) é o que há de mais controlável.

IHU On-Line – Como, a partir da biopolítica, seria adequado, na sua avaliação, pensar questões de bioética, como o aborto e a eutanásia?

Laura Bazzicalupo – O ponto de vista biopolítico é muito diferente do bioético. O aborto e a eutanásia são batalhas empreendidas por vidas que pedem (citando Foucault) para que não sejam governadas em excesso, e não desta maneira. Os discursos bioéticos referem-se às Verdades em que dispositivos de poder e controle são encarnados: é necessário estar ciente delas.

Criticar os dispositivos de biopolítica significa exercer ativamente a biopolítica, nossa energia vital, dentro dos limites possibilitados pelas condições concretas e materiais.

(Com o IHU)

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