Tarsila do Amaral na Casa Fiat de Cultura



Obras da pintora guiam mostra em Belo Horizonte, que busca delinear a “brasilidade” pelos artistas do século passado. Por Willian Vieira. Imagem: Fundação José e Paulina Nemirovsky (Um texto de Carta Capital desta semana)

Há um pão de açúcar em cada canto. Em primeiro ou segundo plano, ele divide espaço com os negros músicos dos morros cariocas, com o carnaval e com a apropriação antropofágica da Torre Eiffel. Surgem então índios idealizados, órfãos do romantismo. E palmeiras, palmeiras diversas, mirradas ou frondosas, negras no traço simples da gravura ou roliças na exuberância verde que Tarsila do Amaral usou para cravar o modernismo no imaginário popular brasileiro. Mas nem só de formas, cores e estereótipos se nutre a “brasilidade” de Tarsila e o Brasil dos Modernistas, até 10 de junho na Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte.
Passeando ainda entre Goeldis e Guignards, Segalls e Nerys, a exposição oferece um diálogo entre os recorrentes símbolos do modernismo e artistas que não partilharam de suas propostas conceituais, para traçar um panorama das representações visuais, nem sempre nacionalistas, deste país de índios e palmeiras.
“É a luta do peso contra a leveza. Tarsila é limpa, calma, serena. Goeldi traz a dor e a morte”, diz a curadora Regina Teixeira de Barros, ao explicar o que as cenas sombrias das xilogravuras de Oswaldo Goeldi, prenhes de um expressionismo oposto à vivacidade estética do modernismo nativo, fazem ao lado dos desenhos singelos repletos de palmeiras de Tarsila, seu feliz e colorido Religião Brasileira I, seus lassos e orgânicos Sol Poente e Floresta.
E o que dizer de Ismael Nery, um universalista filho do expressionismo e surrealismo que nunca propôs uma noção de identidade nacional, cujo cadáver simbólico jaz no topo de um prédio na Baía de Guanabara?
É a paisagem-tema que surge em obras como Rio de Janeiro, de Nery, e Lagoa, de Goeldi, a base para uma justaposição tão insólita com Tarsila e o modernismo. Não é o estilo ou a forma, mas a temática iconográfica o que os aproxima. Os símbolos são os mesmos: as paisagens cariocas ou o interior mineiro, as festas populares, a cultura festiva do negro ou a natureza tropical. Segall tem seu Favela. Cícero Dias, Saudades e Sonho Tropical. É o mesmo Rio. A mesma palmeira. O mesmo carioca festivo. O que muda é o objetivo encerrado na apropriação simbólica. E o que emerge é um Brasil cheio de contradições que o modernismo hegemônico geralmente não traz.
Foi após um mergulho de três anos na obra de Tarsila que resultou na organização de seu catálogo raisoneè para a Pinacoteca do Estado, que a curadora aceitou o convite para selecionar telas e gravuras para uma exposição sobre o modernismo.
 Oito meses de buscas, contatos e pedidos de coleções privadas resultaram em uma mostra com 139 obras, que cobre o período de 1920 a 1958. Tarsila, claro, é a estrela da festa. São 29 suas obras amealhadas Brasil afora e trazidas com destaque a Belo Horizonte. Rio de Janeiro, de 1923, paroxismo do verde e ensaio dos valores modernistas, abre a exposição, que segue com 19 gravuras em grafite e nanquim da artista. Antropofagia, desenho de 1929, encerra a mostra. O Abaporu, obra mais conhecida de Tarsila e do próprio modernismo brasileiro, imprime sua ausência.
“Eu não queria reproduzir os manuais sobre o modernismo. Queria propor um diálogo mais abrangente sobre os temas e espaços que marcaram a arte brasileira no período”, diz a curadora.
Assim, a mostra abriga três grupos de artistas. O primeiro bebe diretamente na fonte da antropofagia. São telas de Tarsila, de Di Cavalcanti, de Portinari, artistas que traçaram sua trajetória tendo como espinha dorsal a proposta de construir uma ideia de brasilidade, uma identidade nacionalista que se apoiava nos símbolos eleitos. Um segundo grupo teria transitado pela vanguarda em uma etapa de suas carreiras. Cícero Dias, Victor Brecheret (e suas esculturas rupestres), Lasar Segall e Vicente do Rego Monteiro (e suas iconografias amazônicas em composições geométricas) chegaram a se aventurar pela senda modernista, mas logo seguiram seu caminho.
Por fim, viriam artistas que apenas vivenciaram lampejos modernistas e que compartilharam os mesmos símbolos, os mesmos temas, ainda que sem ligações formais e estéticas quaisquer: Oswaldo Goeldi, Flávio de Carvalho, Alberto da Veiga Guignard e Nery.
Fato é que a ampliação do escopo trazida pela exposição joga luz sobre o caráter muitas vezes edulcorado das propostas de brasilidade do modernismo. O Manifesto Antropofágico de 1928 propunha a deglutição da herança europeia e dos símbolos anteriores, mesclando nacionalismo e cosmopolitismo numa salada à brasileira que desse conta de criar uma identidade cultural para a nação. Oswald de Andrade solucionava, assim, o impasse dos artistas que queriam romper com o passado, mas acabavam sorvendo a criação de um imaginário brasileiro feito antes, no século XIX.
A antropofagia era a redenção. E uma nova identidade, filha de estéticas e temas sincréticos, surgia. Carnaval em Madureira é o paroxismo disso. A Torre Eiffel é aqui tomada pelos símbolos da brasilidade: bandeirolas que enfeitam, negros que a circundam, um zepelim e um disforme Pão de Açúcar que a observam de longe.
Mas a “brasilidade” que imperou desde então, e a exposição oferece tal constatação, calcou-se muitas vezes em uma visão dócil, onírica da realidade, como a “exuberância desconectada da realidade social” dos poucos tipos de Tarsila, teoriza Regina.
É o que mostra a comparação sobre duas telas presentes. Flautista, de Candido Portinari, retrata o típico negro “brasílico”, que faz música no morro carioca, sua pele imitando a cor da terra, com o Pão de Açúcar derretendo-se ao fundo. Já Família do Fuzileiro Naval, de Guignard, traz esse negro para um contexto burguês, adicionando símbolos que rompem o discurso tradicional. O negro não dança e canta somente. Ele sai da identidade cristalizada para adentrar espaços restritos. E não é menos brasileiro por isso.
Análises à parte, o modernismo é uma festa para os olhos tão farta que a exposição foi dividida em quatro eixos temáticos. No começo impera o Rio de Janeiro, dileto entre as paisagens naturais, em gravuras, desenhos, pinturas. No segundo figuram os tipos brasileiros: o negro musicista, a baiana dançarina, o índio contemplativo, seja na versão de Vicente do Rego Monteiro ou com o tipo que Portinari parece ter feito brotar de uma obra de José de Alencar. Com as mulatas de olhos lânguidos e pouca roupa de Di Cavalcanti e os heroicos trabalhadores braçais de Portinari percorre-se o hall dos brasileiros eleitos pelo modernismo para retratar o País,- não sem as provocadoras investigações antropológicas de Flávio de Carvalho.
Uma seção com paisagens interioranas, principalmente as colinas bucólicas de Minas Gerais, ganha força com as Paisagens de Guignard, não sem referências modernistas óbvias, como palmeirinhas que sobem a serra até Ouro Preto. E a mostra termina com obras mais abstratas do período, alegóricas, que vão da escultura de uma onça de Victor Brecheret ao excesso kitsch de Floresta Tropical, de Guignard.
O fio é sempre Tarsila. É a fertilidade cega de sua vegetação, o quase erotismo de suas cores e formas, o Brasil exótico de natureza farta que engole o indivíduo na solidão ensolarada da artista que servem como baliza. Da aproximação temática com essas obras-chave brilha o cerne da proposta modernista: forjar uma “brasilidade” coe-rente, pragmática, viva. Só que mais vívidos são os cactos, as palmeiras e as flores pintados pela filha de fazendeiros de café que ganhou os salões de arte de Paris em plena década de 1920 e voltou para redesenhar, com vanguardistas como Mário de Andrade, um capítulo inegável da construção da identidade visual brasileira. (Com Carta Capital)



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